Opinião

Política criminal da tolerância zero e direito penal do inimigo

Autor

  • Hugo Jordane Lucena Costa

    é advogado bacharel em Direito pós-graduado em Direito Processual Civil pós-graduando em advocacia cível pela Escola Superior do Ministério Público e secretário-adjunto da Comissão de Diversidade da OAB – Subseção Guará (triênio 2022/2024).

3 de outubro de 2022, 7h04

Muito se ouve falar acerca da tolerância zero, seja com algum comentário na fila de um banco tanto quanto "agora com meu filho é tolerância zero", ou ainda "o governo deveria ter tolerância zero com os criminosos".

Afinal, o que seria essa chamada "tolerância zero" em que são ilustradas?

Para compreendermos a política criminal da tolerância zero não basta apenas obtermos sua significância, mas, a priori, compreender o que é política criminal.

Segundo o professor doutor Paulo Pinto Albuquerque:

"A política criminal strictu sensu consiste no programa de objetivos, de métodos de procedimentos e de resultados que o Ministério Público e as autoridades de política criminal prosseguem na prevenção e repressão da criminalidade. A política criminal tem, pois, dois pilares, o preventivo e o repressivo" [1].

No ano de 1982, James Q Wilson em parceria com George Kelling, intitulou a concepção do programa de tolerância zero, em que se baseia grande parte na teoria das janelas quebradas.

Benoni Belli, 2004, estreita o tema no tocante ao entrelaçamento das ideias:

"O argumento principal da teoria é o de que uma pequena infração, quando tolerada, pode levar a um clima de anomia que gerará as condições propícias para que crimes mais graves vicejem. A metáfora das janelas quebradas funcionaria assim: se as janelas quebradas de um edifício não são concertadas, as pessoas que gostam de quebras janelas admitirão que ninguém mais se importa com seus atos de incivilidade e continuarão a quebra mais janelas."

O resultado seria um sentimento gral de decadência e desamparo em que a "desordem social" encontraria terreno fértil para enraizar e gerar seus frutos maléficos [2].

Nesse sentido, podemos extrair que uma pequena infração, mesmo quanto tolerada, pode gerar uma sensação de anomia que compreende, segundo Durkhein, no que "faltará uma regulamentação durante certo tempo. Não se sabe o que é possível e o que não é, o que é justo e o que é injusto, quais as reinvindicações e esperanças legítimas, quais as que ultrapassam a medida" [3], levando, assim, ao cometimento de crimes mais graves em função dessa sensação de desamparo.

A teoria possui quatro fundamentos que Sérgio Salomão elenca:

(1) Ao lidar com a desordem e com pequenos desordeiros, a polícia fica mais bem informada e se põe em contato com os autores de crimes mais graves, prendendo também os mais perigosos;

(2) A alta visibilidade das ações de polícia e de sua concentração em áreas caracterizadas pelo alto grau de desordem, protege os bons cidadãos e, ao mesmo tempo, emite mensagem para os maus e aqueles culpados de crimes menores no sentido de que suas atitudes não serão toleradas

(3) Os cidadãos começam a retomar o controle sobre os espaços públicos, moendo-se para o centro dos esforços de manutenção da ordem e prevenção do crime;

(4) Na medida em que os problemas relacionados à desordem e ao crime deixam de ser responsabilidade exclusiva da polícia e passam a envolver toda a comunidade, todos se mobilizam para enfrentar tais questões de uma forma mais integrada [4].

Podemos arrancar que com a política de tolerância zero, ou seja, não permitido nenhum tipo de delito, a sociedade estaria mais segura na medida em que a política protege os bons cidadãos e ao mesmo tempo pune aqueles que cometem quaisquer tipo de ilicitude coma ajuda da própria comunidade.

A política criminal da tolerância zero nos traz uma série de indagações acerca do tema. O primeiro deles, podemos propor: a conduta policial em determinados crimes de menor gravidade deve ser igualada aquela conduta de gravidade maior?

A desigualdade social é outro tema em que elenca o pensamento de Shecaira em que indubitavelmente de maneira negativa não concorda com a colocação desta política no Brasil o que poderia gerar uma maior desigualdade social.

Noutro giro, Cezar Bittencour, 2014, elenca que direito penal apresenta-se como o conjunto de normas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e sua sanções correspondentes.

Visto isto, no ano de 1985, a Gunther Jakobs, na jornada de direito penal, propôs do direito penal no inimigo como contraposto ao direito penal do cidadão. Seus pilares se deram na criminalidade internacional, assim com a nacional de seu país de origem, Alemanha. Essa proposta, conhecida como direito penal de terceira velocidade, tem a premissa que a punição deve ser considera apenas o autor e não o ato praticado por ele.

O professor Ulfrid Neumaan atesta que o conceito de direito penal do inimigo foi compreendido pelo auditório como categoria analítica com potencial crítico.

Alguns autores dizem que Jakobs pretende um tratamento diferenciado aos criminosos de alta periculosidade visto que o direito penal do cidadão não se propõe tão eficaz. Nesse sentido o direito penal do inimigo baseia-se em combater determinadas classes de criminosos com um tratamento diferenciado, como dito, considerando o autor e não a ilicitude praticada.

O objetivo é compreender duas categorias de seres humanos: cidadãos e o inimigo. Nesse sentido decorreria no que aclara Juarez Cirino dos Santos, seguidas de citações dadas por Jakobs no livro Burgerstrafrecht und Freindstrafrecht, 2004, que diz

a) A pena para o cidadão seria uma reação contra-fática dotada do significado simbólico de afirmação da validade da norma como contradição ao fato passado do crime, cuja natureza de negação da validade da norma a pena pretende reprimir – conforme declara: "o fato, como fato de uma pessoa racional significa algo, ou seja, uma rejeição da norma, uma agressão à sua validade, e a pena significa igualmente algo, ou seja, a imposição do autor seria incompetente e a norma continuaria valendo inalterada, portanto, a configuração da sociedade continuaria mantida. Tanto o fato como a coação penal são, neste ponto, meios de interação simbólica e o autor é tomado seriamente como pessoa…".

b) A pena para o inimigo seria uma medida de força dotada do efeito físico de custódia de segurança, como obstáculo antecipado ao fato futuro do crime, cuja natureza de negação da validade da norma a pena pretende prevenir — segundo propõe: "Em lugar de uma pessoa competente, que é contraditada com a pena, portanto, coloca-se o indivíduo perigoso, contra quem — aqui: como um medida preventiva, não como uma pena — é procedido de modo fisicamente efetivo: combate ao perigo, em lugar de comunicação, direito penal do inimigo (…), em vez de direito penal do cidadão…" [5]

Essa consideração em dividia a sociedade em duas categorias antagônicas de cidadãos e de inimigos permitiriam fundamentar as qualidades de casa uma dessas classes, percebendo assim o modo de tratamento dentre eles.

Mas, indaga-se: qual o perfil se traça do cidadão para o criminoso inimigo? Tal questionamento pode ser traçado no sentido de que o cidadão é autor de crimes corriqueiros, ou nas palavras de SANTOS "crimes normais (…) capaz mantém as expectativas normativas da comunidade, conservando a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque não desafia o sistema social".

Nesse sentido podemos entender que o cidadão é aquele que comete crimes relacionados ao cotidiano ou por legítima defesa ou até mesmo por necessidade.

Em contrapartida o inimigo é aquele "autor de crimes de traição (…) capaz de produzir um estado de guerra contra a sociedade (…) perdendo a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque desafia o sistema social".

Nessas considerações o direito penal do inimigo seria uma maneira de existir dois direitos: o do cidadão e o do inimigo. O primeiro, se houvesse alguma infração teria direito a um julgamento dentro do ordenamento jurídico com a oportunidade de retornar a sociedade. Já o segundo, que seriam os inimigos, devido a serem autores de delitos, tais como, delitos sexuais, criminalidade econômica, tráfico de drogas, participação em organização criminosa e terrorismo, receberiam um tratamento diferenciado onde perderiam garantias legais, ficando sob custódia do Estado, perdendo o status de cidadão.

Moura complementa Jakobs dizeruqe que "tudo se reduz na consideração de pessoas ou não pessoas, de forma que para ele o inimigo não é uma pessoa" eis que o sujeito infringiu normas de direito do estado democrático, perdendo o privilégio de ser adjetivado como pessoa.

Jakobs tenta preservar a legitimidade do Estado Democrático de Direito já que é dever do Estado proteger seus cidadãos dos inimigos, a fim de que se prevaleça a paz e o bem comum.

Portanto, ao fazer uma confrontação entre o princípio da tolerância zero e o direito penal nota-se que ambos enxergam o criminoso e não o crime. Não interessa o crime que tenha cometido, ambos irão, segundo seus critério próprios, intermediar, tendo como prioridade o agente.

O princípio da tolerância zero olha-se para o criminoso e não havendo em aceitar qualquer ato por ele praticado, mesmo que seja uma ilicitude simples e desconexa. Deferentemente do direito penal do inimigo, que deve-se olhar para o criminoso como um antipessoa, não havendo e nem aceitando qualquer tipo de reincidência ou desatenção aos atos praticados, em especial aos reinfratores.

A par disso, confrontamos o caput do art. 5º da Constituição Federal:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:"

Nesse aspecto, um tratamento desigual entre aqueles que cometeram alguma ilicitude poderia acarretar uma espécie de anomia, ocasionando em insegurança jurídica e, em último aspecto, uma inconstitucionalidade.

Outro fator que deve ser levado em consideração que "não haverá juízo ou tribunal de exceção" (artigo 5º, inc. XXXVII, CRFB/88) e, portanto, um tratamento desigual deságua em juízo de exceção pelo crime cometido, não podendo legitimar o estado democrático como de direito.

A sociedade tem o dever de não aceitar seus ofensores e puni-los pelos caráteres retributivos e pedagógicos pela infrações cometidas diante da própria sociedade, não podendo ignorar preceitos constitucionais para usurpar interpretações ilegais objetivando estabelecer critérios inconstitucionais para legitimar afrontas ao estado democrático de direito, olvidando-se da importância de seus nacionais e do princípio da dignidade da pessoa humana.

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Bibliografia
ALBUQUERUQE, Paulo Pinto: Artigo: O que é política criminal, porque precisamos dela e como podemos construir?

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Artigo: Tolerância zero.

BELLI, Benoni. Tolerância zero e democracia no Brasil: visões da segurança pública na década de 90. São Paulo: Perspectiva, 2004. P. 64

NEUMANN, Ulfrid. Direito Penal do Inimigo.

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual.

 


[1] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto: Artigo: O que é política criminal, porque precisamos dela e como podemos construir?

[2] BELLI, Benoni. Tolerância zero e democracia no Brasil: visões da segurança pública na década de 90. São Paulo: Perspectiva, 2004. P. 64

[3] DURKHEIM, Emilie. 1974.

[4] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Artigo: Tolerância zero.

[5] SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo — ou o discurso do direito penal desigual.

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    é advogado, bacharel em Direito, pós-graduado em Direito Processual Civil, pós-graduando em Advocacia Cível pela Escola Superior do Ministério Público e secretário-adjunto da Comissão de Diversidade da OAB – Subseção Guará (triênio 2022/2024).

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