Direito Civil Atual

Préjudice d'affection: como o direito francês indeniza os danos reflexos

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3 de outubro de 2022, 10h07

Os danos reflexos, espécie de dano indireto, têm origem na jurisprudência francesa, que, em algumas decisões do final do século 19, passou a reparar o préjudice d’affection (prejuízo de afeição)[1], embora não se possa ignorar que já no ano de 1685 o Parlamento de Paris concedeu compensação financeira ao membro de uma família em luto pela morte de ente querido. Segundo Vernon Valentine Palmer, a prática existia muito antes do século 19 e os juristas da época eram cônscios de que seus tribunais tratavam la perte d’affection (perda de afeição) como um dano reflexo, de uma certa forma que os romanos não teriam tolerado, dada sua interpretação de que o corpo humano não seria estimável e, assim, também não o seriam a dor e o sofrimento decorrentes de danos causados a esse corpo[2].

ConJur
Em relatório sobre a indenização decorrente dos danos corporais, escrito em 2003, Yvonne Lambert-Faivre classifica os danos das vítimas por ricochete em préjudice d’accompagnement (prejuízo pela perda de acompanhante) e préjudice d’affection (prejuízo de afeição): o primeiro refletiria a perturbação na vida diária daqueles que realmente compartilham com a vítima sua dolorosa sobrevivência desde o evento danoso até a morte, de modo que estaria ligado ao conforto moral da presença afetuosa dedicado à vítima direta; o segundo guardaria relação com a compensação por dano ao afeto no caso da perda de um ente querido[3].

Precisamente pela afeição como elemento caracterizador do dano reflexo é que a jurisprudência francesa passou a reparar o préjudice d’affection (prejuízo de afeição), confirmando seu protagonismo na acepção da reparação do dano moral reflexo. Segundo Rafael Peteffi da Silva e Guilherme Henrique Lima Reinig, essa tendência jurisprudencial foi confirmada pela Corte de Cassação em aresto de 1923 e, anos depois, em 1931, a mesma Corte limitou a responsabilidade à verificação de um lien de parenté ou d’alliance (relação de parentesco ou de aliança) entre as vítimas direta e indireta. Em 1970, esclarecem, a orientação jurisprudencial passou a ser no sentido de que toda pessoa que comprovasse sérios sentimentos de afeição estaria legitimada a invocar um prejuízo moral[4]. Além disso, em 11 de novembro de 1897, o Tribunal de Nîmes reconheceu a possibilidade de reparação de danos por ricochete em favor de familiares de vítima fatal, considerando o prejuízo de natureza moral experimentado pelos parentes[5].

A partir de busca jurisprudencial junto à Cour de Cassation (Corte de Cassação) francesa, por seu sítio eletrônico, utilizando-se a expressão préjudice d’affection (prejuízo de afeição) incluída entre aspas e sem inserção de limitação temporal, encontrou-se dois julgados: um datado de 5 de fevereiro de 1969 (Pourvoi nº 68-91.349) e outro de 1º de março de 1973 (Pourvoi nº 72-92.319). No primeiro caso, a Corte de Cassação francesa reformou sentença do Tribunal de Apelação de Lyon que havia reconhecido a coabitante da pessoa falecida o direito à indenização pelo dano ao afeto, com base, dentre outros dispositivos, no artigo 1382 do Código Civil francês[6], sob o fundamento, utilizado pela Corte de Cassação, de que o caráter do vínculo seria precário e ilícito, considerando que a pessoa falecida era casada[7]. No segundo aresto, de 1973, afirmou a Corte o entendimento de que a lei não permite distinção entre as pessoas que pleiteiam a reparação pelo dano, qualquer que seja sua natureza, desde que haja uma relação causal direta com a ofensa, pontuando, na ocasião, que têm direito a uma compensação aqueles que sofrerem dano pelo afeto oriundo da mesma causa[8].

A posição assumida pela Corte neste segundo julgamento, posteriormente adotado em outros julgamentos[9], traduz o que caminho por que passou a jurisprudência francesa. Para Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rafael Peteffi da Silva, este caminho engloba três etapas: a primeira era mais permissiva ao estabelecer extenso rol de legitimados ativos a pleitear a reparação, dada a abertura do sistema francês — ou sua atipicidade — em relação à responsabilidade civil e à cláusula geral constante no artigo 1382 do Código Civil francês de 1804, ao passo que a segunda era mais restritiva, eis que limitava a reparação e selecionava cuidadosamente os legitimados. A terceira etapa, finalmente, amenizou barreiras na medida em que se passou a presumir a afetação das pessoas que guardavam com a vítima principal um lien de parenté ou d’alliance (relação de parentesco ou de aliança), considerando a ausência de restrição contida no Código Civil francês[10]. No caso Dangereux, julgado em 1970, por exemplo, concedeu-se indenização a uma pessoa que mantinha com a vítima direta vínculo afetivo, ainda que sem relação matrimonial[11].

Atualmente, a jurisprudência francesa presume a legitimidade dos filhos e do cônjuge não separado, atribuindo aos demais parentes e às pessoas fora do núcleo familiar da vítima direta o ônus de comprovar mais solidamente o dano sofrido para fazerem jus à reparação[12]. É passível de crítica, nesse sentido, a abertura jurisprudencial no que diz com a legitimidade para requerer a indenização: é possível, ao menos hipoteticamente, a causação de prejuízo, ou mesmo de insatisfação ou insegurança jurídica, às pessoas mais próximas à vítima direta do evento danoso, considerando a tendência de se reconhecer o direito à reparação a pessoas mais distantes afetivamente. Essa abertura, se desmedida, pode conduzir a um estado de incerteza e, então, à instabilidade jurídica.

Nesse particular aspecto, é curioso o posicionamento da jurisprudência francesa no diz respeito à reparação oriunda do préjudice d’affection (prejuízo de afeição) quando a vítima por ricochete é amiga da vítima direta. Inobstante não haver obstáculo legal à indenização, a jurisprudência vem autorizando-a nos casos em que evidenciados o vínculo emocional real ou a presença do amigo no momento da causação do dano à vítima direta, especialmente quando deste dano resulta o falecimento[13].

Retome-se, em conclusão, a possibilidade de crítica à abertura da jurisprudência francesa no que concerne às hipóteses indenizáveis: há risco, pelo menos a priori, de interpretações equivocadas a respeito dos danos efetivamente indenizáveis, considerando a atribuição à responsabilidade civil de função que não lhe cabe. Em última instância, pode-se colocar em risco a estabilidade conceitual da responsabilidade civil, maximizando-se o risco de insegurança jurídica. Os conceitos jurídicos, segundo Judith Martins-Costa, ainda que flexíveis e mutáveis, devem ser identificáveis, de modo a não corresponder a rótulos vazios a se preencher com qualquer conteúdo[14].

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] REINIG, Guilherme Henrique Lima; SILVA, Rafael Peteffi da. Dano reflexo ou por ricochete e lesão à saúde psíquica: os casos de “choque nervoso” (Schockschaden) no direito civil alemão. Civilística.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 3 mai. 2022. p. 3.

[2] PALMER, Vernon Valentine. Danos morais: o despertar francês no século XIX. Traduzido por Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Thalles Ricardo Alciati Valim. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 9, a. 3, p. 225-241, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, out.-dez. 2016. p. 236.

[3] LAMBERT-FAIVRE, Yvonne. Rapport sur l’indemnisation du dommage corporel. Disponível aqui. Acesso em: 28 maio 2022.

[4] REINIG, Guilherme Henrique Lima; SILVA, Rafael Peteffi da. Op. cit., p. 3.

[5] SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 149.

[6] No original: "Tout fait quelconque de l’homme, qui cause à autrui um dommage, obligue celui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer". Em tradução livre, significa que qualquer fato do homem que cause dano a outrem obriga o causador do dano a repará-lo.

[7] FRANÇA. Cour de Cassation – Pourvoi n° 68-91.349. Disponível aqui. Acesso em: 29 maio 2022.

[8] FRANÇA. Cour de Cassation – Pourvoi n° 72-92.319. Disponível aqui. Acesso em: 29 maio 2022.

[9] A título de exemplo, mencione-se os seguintes julgados da Corte de Cassação: Pourvoi nº 86-16.376, de 10 de março de 1988, e Pourvoi nº 99-13.589, de 13 de fevereiro de 2001.

[10] RODRIGUES JR., Otavio Luiz; SILVA, Rafael Peteffi da. Daño reflejo o por rebote: pautas para un análisis de derecho comparado. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 7, a. 3, p. 205-238, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, abr./jun. 2016. p. 220-221.

[11] ANDRADE, Fábio Siebeneichler; FACCIO, Lucas. Notas sobre a legitimidade para o dano moral por ricochete em perspectiva comparada: em favor de uma interpretação ampliativa no direito civil brasileiro. Civilística.com. Rio de Janeiro, a. 10, n. 3, 2021. p. 12.

[12] RODRIGUES JR., Otavio Luiz; SILVA, Rafael Peteffi da. Op. cit., p. 220-221.

[13] LALANNE-MAGNE, Margaux. Responsabilité délictuelle et amitié: l’ami, une victime par ricochet toujours pas légitime. Disponível aqui.. Acesso em: 5 jun. 2022.

[14] MARTINS-COSTA, Judith. A linguagem da responsabilidade civil. In: ALVIM, Teresa Arruda; BIANCHI, José Flávio; PINHEIRO, Rodrigo Gomes de Mendonça. Jurisdição e direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 391-392.

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