Segunda Leitura

Sugestões ao presidente da República sobre o que pode fazer pela Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

2 de outubro de 2022, 8h00

As atribuições de um presidente da República estão previstas no artigo 84 da Constituição Federal. Por óbvio, diretamente não lhe cabem ações envolvendo a Justiça. Contudo, indiretamente, grande é o seu poder de influência. Como hoje é o dia de eleições, sendo a de Presidente da República a de maior importância, vale aqui lembrar algumas coisas que podem ser feitas para aprimorar o sistema.

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A primeira delas, com certeza absoluta, é a escolha das duas vagas para o Supremo Tribunal Federal que surgirão no mandato. Estas duas indicações, por si só, dariam margem a um artigo. Em um momento em que a corte dirige os destinos da nação, decidindo os mais importantes temas de ordem política (v.g., STF libera candidatura de Paulinho da Força) [1]; e de interesse coletivo (v.g., ADPF 708/DF, j. 4/7/2002, sobre recursos para a adoção de medidas de mitigação às mudanças climáticas), a nomeação de um bom ministro, que nela permanecerá, em tese, até os 75 anos de idade, é essencial.

Ninguém espera, porque isto iria contra a natureza das coisas, que um presidente venha a nomear alguém que pense de forma diversa da sua. Isso não acontece em lugar nenhum do mundo. Mas, entre os que adotam o mesmo pensamento político, há profundas diferenças.

Algumas observações: a) ser experiente, respeitado e de indiscutível honestidade, em que pese a obviedade, são essenciais. Sem eles, de nada valem títulos acadêmicos, livros, magistério superior ou homenagens; b) a escolha de pelo menos um magistrado de carreira, como é praxe nos Estados Unidos, seria uma boa medida, porque este traria as virtudes da discrição e do saber conviver com as divergências; c) prestigiar a região Norte também seria oportuno, pois segue, por décadas, esquecida pela corte, apesar de, nela, encontrar-se a Amazônia.

Superado o aspecto da nomeação de dois ministros, vejamos outras formas de possível influência do chefe do Poder Executivo.

Dar início ao processo legislativo é uma delas. Um projeto de lei oriundo da Presidência da República, desde que conte com o apoio do Congresso, pode fazer muito pelo sistema de Justiça. Nenhum exemplo será melhor do que a execução da sentença condenatória criminal após o julgamento em segunda instância. Não é preciso sequer ser alfabetizado para entender que um sistema que aguarda decisão com trânsito em julgado da Suprema Corte não funciona. E por isso nenhum país, à exceção do Brasil, o adota.

Investir recursos e conhecimentos para estruturar o INSS, com empenho e gerência de alguém que já provou ser capaz de concretizar sonhos. Não é possível o poder público manter uma estrutura no Executivo e outra no Judiciário, para decidir a mesma coisa, transformando Varas Federais em verdadeiros ambulatórios médicos. A repetição fere o bom senso e significa gasto duplo em um país que tem necessidades básicas em vários setores. Além da estrutura, é preciso que na esfera administrativa, sob o comando do devido processo legal, se ofereça a possibilidade de produção de provas e de recorrer-se a uma Junta isenta, com membros internos e externos, para que a imparcialidade não só exista, como seja evidente. E, ao Judiciário, que caiba apenas o exame das garantias constitucionais dos beneficiários.

A área ambiental necessita de uma atenção especial, não só pela simples e flagrante necessidade de proteção dos recursos naturais, como pela pressão econômica internacional (que já resultou na suspensão de doações na Amazônia), seja pela União Europeia, seja pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Diferentes governos deram tratamento aquém do necessário à área. Por exemplo, no governo Lula da Silva foi construída a Usina de Belo Monte, cujos resultados são desanimadores. No atual governo os órgãos ambientais sofreram pela falta de estrutura, resultando no aumento do desmatamento, principalmente na região amazônica. Neste particular, a criação de uma Justiça Ambiental e Climática autônoma, composta por juízes formados em Direito, mas com assessores (ou quem sabe juízes mesmo) de áreas técnicas (economia, biologia, etc.), seria um avanço considerável.

Trabalhar, através do Ministério da Justiça e Segurança Pública, com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em temas de interesse comum, ofertando toda a experiência colhida em décadas e possibilitando, da mesma forma, aos integrantes do Judiciário, o conhecimento das dificuldades existentes no Poder Executivo. Inserir os agentes públicos nos debates nas comissões do CNJ, certamente faria com que elas se tornassem mais próximas da realidade, evitando resoluções de difícil execução.

Implantar câmaras de conciliação em todos os órgãos públicos do Poder Executivo, compostas por pessoas da área jurídica e técnica, a fim de evitar a judicialização. Em outras palavras, disseminar o sucesso obtido na Advocacia Geral da União com a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal, destinada a conflitos entre diferentes pessoas jurídicas de Direito Público, internas e externas [2].

Aparentemente de menor relevância, mas importante para o estímulo do funcionalismo público, seria valer-se do artigo 84, inciso XXI, para conferir condecorações e distinções honoríficas a quem, no sistema de Justiça, prestou um relevante serviço ao Brasil. Dou um exemplo: o Serviço Eletrônico de Informações (SEI), criado no Tribunal Regional Federal da 4ª Região em 2009. O SEI é um sistema de gestão documental totalmente criado e desenvolvido por servidores da Justiça Federal da 4ª Região em 2009 que, a custo zero, permite transferir toda a gestão de processos administrativos para o meio eletrônico. Com a ferramenta, a tramitação de expedientes, desde a criação, a edição e a assinatura até o armazenamento, é realizada em ambiente virtual. Atualmente, está em uso em mais de 400 órgãos públicos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além de associações e outras entidades [3]. Dificilmente se encontrará exemplo mais eloquente, mas há muitos outros também expressivos.

Na segurança pública, que não fez parte de nenhum debate, apesar de afetar diretamente a vida das pessoas, propor, via projeto de emenda constitucional, a possibilidade de as guardas municipais passarem a fazer parte da segurança pública. Por não haver previsão no artigo 144 da Constituição, o STJ vem anulando sentenças baseadas na atuação desses servidores públicos, inclusive quando procedem revista, porque a busca pessoal só será válida se realizada pelos agentes públicos com atribuição para tanto, a quem compete avaliar a presença de tais indícios e proceder à abordagem do suspeito (REsp 1.977.119/SP, 6ª Turma) [4]. Ora, sabido que nenhum estado dispõe de policiais para fiscalizar todo o seu território, a seguir tal raciocínio os criminosos viverão tempos de muita tranquilidade, pois a guarda municipal só poderá revistá-los se tiverem agido contra o patrimônio do município. Por exemplo, se estiverem pichando um prédio público podem, se estiverem traficando cocaína não podem.

Como se vê, direta ou indiretamente muito poderá ser feito pelo primeiro mandatário para aprimorar o nosso moroso sistema, não se olvidando medidas isoladas, como reparos ao CPC, principalmente na fase de cumprimento de sentença. O tema não ocupa a agenda dos debates dos candidatos, mas interfere na vida de milhares de pessoas, na população em geral e nos profissionais do Direito em especial. Aguardemos, pois, esperançosos.

 


[1] CNN Brasil. Por unanimidade, Supremo libera candidatura de Paulinho da Força. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/por-unanimidade-supremo-libera-candidatura-de-paulinho-da-forca/. Acesso em 30 set. 2022.

[2] AGU, Cartilha, 3ª edição. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/composicao/cgu/cgu/manuais/cartilha_ccaf-indd.pdf. Acesso em 30 set. 2022.

[3] Portal unificado da Justiça Federal da 4ª Região. TRF-4 assina cessão do uso do SEI com seis instituições. Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=15524. Acesso em 29 set. 2022.

[4] Revista eletrônica Consultor Jurídico, 18 ago. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-18/stj-veda-atuacao-guarda-forca-policial-limita-busca-pessoal. Acesso em 30 set. 2022.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUC-PR, desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e ex-presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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