Opinião

Será que agora as crianças terão acesso acesso à creche?

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2 de outubro de 2022, 13h34

No último dia 22 de setembro, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.008.116 em repercussão geral (acórdão ainda pendente de publicação), firmou a compreensão de que o direito à educação básica em todas as suas etapas  educação infantil, ensino fundamental e ensino médio  constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens. E, assim, pacificou a jurisprudência quanto ao direito de acesso à educação infantil, composta por creche na sua fase inicial [de 0 a 3 anos] e pré-escola [dos 4 aos 5 anos], bem como a possibilidade de se exigir, individualmente, sua concretização pelo Poder Público.

O ponto central da problemática submetida à jurisdição da Suprema Corte é a ausência de políticas públicas efetivas que garantam o amplo acesso à educação infantil tal como previsto na Constituição  em seu artigo 208, inciso IV. Um panorama geral do julgado foi bem abordado aqui e também aqui, não pretendendo a presente análise esgotar todas as linhas de argumentos jurídicos ali discutidos.

O direito à educação infantil, antes previsto constitucionalmente de forma geral no direito de acesso à educação básica, passou a constar expressamente no texto constitucional com a edição da Emenda à Constituição nº 53, de 2006, sendo de atuação prioritária dos municípios (artigo 211, §2º, da CRFB). Apesar da demora em integrar o texto constitucional, já constava da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394, de 1996) como dever do Estado.

No ano de 2014, foi editado o Plano Nacional de Educação (Lei 13.005), com vigência de dez anos até 2024, o qual possui dentre as suas 20 metas para a educação nacional, a universalização da educação infantil na pré-escola e a ampliação da oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até três anos até o final da vigência do Plano [Meta 1].

Nesse contexto, de necessidade de ampliação da infraestrutura da rede pública de educação infantil, pode-se citar o programa ProInfância, instituído pela Resolução nº 6, de 24 de abril de 2007, em que o Poder Executivo Federal repassa recursos aos municípios e ao Distrito Federal, por meio de convênios e de termos de compromisso, visando à construção de unidades de educação infantil e a aquisição de mobiliário para seu funcionamento.

Esse programa constitui um ótimo exemplo dos gargalos enfrentados pela administração pública na efetivação do direito fundamental, considerando, especialmente, a necessidade de atuação colaborativa entre o governo federal, detentor da maior parte do recurso orçamentário, e o governo dos municípios e do Distrito Federal.

Como bem aborda Leilane Barradas em seu estudo, a execução dessa política pública encontra diversos desafios no âmbito municipal, seja em relação à capacidade técnica, administrativa ou pedagógica. Já na esfera federal, as dificuldades estão diretamente relacionadas ao monitoramento e a burocracia na liberação de recursos.

Apesar da criação de iniciativas como a citada acima, a falta de acesso à educação infantil continua sendo um problema crônico na sociedade brasileira. Ora recebendo mais ou menos dedicação da administração pública, a criação de políticas públicas voltadas à educação básica brasileira oscila de acordo com o interesse do governo eleito, crítica do ministro Barroso na sessão plenária do dia 22/9/2022.

Imbuído na tarefa constitucional de fazer cumprir direitos e garantias fundamentais, o Supremo Tribunal Federal parece avocar para si a definição da agenda para a criação de políticas públicas. Isso porque, ao garantir a efetivação do direito à educação infantil por meio do ajuizamento de demanda judicial, o Judiciário provoca os municípios a adotarem medidas efetivas a fim de disponibilizar antecipadamente vagas em instituições de ensino infantil, ao invés de se verem compelidos a fazê-lo por outras medidas mais onerosas, como, por exemplo, o custeio de vaga em instituição privada de ensino.

Ocorre, todavia, que todo direito tem um custo para o Estado  tese sustentada pelo município de Criciúma/SC no RE 1008116 , e o Supremo Tribunal Federal, ao firmar a tese na repercussão geral, cria despesa sem que haja a indicação da respetiva fonte de custeio. O ente municipal apresenta uma preocupação legítima.

Como observam Holmes e Sustein, "[o]s direitos jurídicos têm um ‘custo de oportunidade’: quando são impostos, outros bens valiosos (inclusive outros direitos) têm de ser deixados de lado, pois os recursos consumidos na imposição dos direitos são escassos – não são superabundantes. A questão é sempre a seguinte: será que não seria mais sensato dispender os recursos públicos de outra maneira?".

O autor pontua, ainda, que o fato de os tribunais "não estarem bem posicionados para tomar decisões inteligentes sobre a distribuição de recursos públicos é um motivo de preocupação acerca das consequências que as decisões judiciais podem impor a um sistema responsável de finanças públicas […], como a lei confia aos juízes a tarefa de proteger os direitos custosos, os estudiosos da atividade judicial não podem ignorar essa questão dos custos dos direitos".

Merece atenção, ainda, o fato de que a instituição de políticas públicas passa por diversos processos pensados e processados por equipes técnicas multidisciplinares, baseadas em evidências e na avaliação de indicadores e resultados de programas anteriores, como, por exemplo, foi a instituição do ProInfância pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação [FNDE].

Esse processo de elaboração de políticas públicas, como Secchi (2013) elucida, também chamado de ciclo de políticas públicas, demanda a atuação de diversos atores institucionais, passando pela etapa de identificação do problema; formação de agenda; formulação de alternativas; tomada de decisão; implementação; avaliação; e sua eventual extinção.

Essa forma de pensar a política pública, apesar de se tratar de um assunto caro à sociedade brasileira como é o caso da educação, orienta a tomada de decisão pelo gestor público na repartição dos recursos estatais limitados.

Considerando todas essas variáveis, cabe o questionamento: Dada a necessidade de conhecimento técnico e prático para a instituição de um programa de governo, qual a correta medida para a intervenção do Poder Judiciário na criação ou na execução da política pública de educação infantil?

O caminho mais correto parece ser a solução proposta pelo ministro André Mendonça, que já adianto, ficou parcialmente vencido na deliberação do plenário do Supremo Tribunal Federal, aderindo posteriormente à solução proposta pelo ministro relator do processo.

Na sessão plenária, o ministro defendeu a fixação da tese segundo os seguintes passos para a efetivação do direito à educação infantil: a) imediato para todas as crianças a partir dos quatro anos; b) de forma gradual para crianças de até três anos, de acordo com o Plano Nacional de Educação, Meta 1, que, caso não seja cumprida por meio da aplicação de percentual mínimo orçamentário na educação, ensejará c) o direito imediato à implementação da universalização da educação infantil.

A proposta do ministro André Mendonça sugere a adoção de uma postura autocontida do Poder Judiciário em graus diferentes de deferência à escolha administrativa a depender das especificidades do caso concreto. Posicionamento esse que demonstra possuir conhecimento das implicações que envolvem o provimento jurisdicional de tamanha magnitude, assim como as peculiaridades da atividade típica do gestor público, ou seja, do Estado como um sistema único e integrado. Isso sem deixar desamparado o cidadão frente à inércia do Poder Público.

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Referências
BARRADAS, Leilane Mendes. Prinfância: uma política de acesso à educação infantil. Disponível em: http://anais.anped.org.br/regionais/sites/default/files/trabalhos/5/2577-TEXTO_PROPOSTA_COMPLETO.pdf. Acesso em 25/09/2022.

BRASIL. https://www.fnde.gov.br/programas/proinfancia. Acesso em 25/09/2022.

CARNEIRO, Luiz Orlando; MAIA, Flávia. STF: poder público deve assegurar creches e pré-escola a crianças de zero a cinco anos. Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-poder-publico-deve-assegurar-creches-e-pre-escola-a-criancas-de-0-a-5-anos-22092022. Acesso em 25/09/2022.

HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. O Custo dos direitos: Por que a liberdade depende dos impostos. São Paulo: Martins Fontes, 2019.

RODAS, Sérgio. Famílias podem exigir vagas em creches e pré-escolas do Estado, decide Supremo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-set-22/familias-podem-exigir-vagas-creches-estado-stf. Acesso em 25/09/2022.

SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: conceitos, esquemas de análise casos práticos. 2. Ed. São Paulo: Cengage Learning, 2013.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Sessão Plenária de 22/09/2022  Parte 1. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5xpjRGQ2x3Y. Acesso em 25/09/2022.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Sessão Plenária de 22/09/2022  Parte 2. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3PP8yowDEVc&t=1s. Acesso em 25/09/2022.

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