A Nova Constituição

A defesa democrática das eleições

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2 de outubro de 2022, 8h00

Em 2022 celebra-se o bicentenário da independência brasileira em pleno ano eleitoral, o que se apresenta como um convite à reflexão acerca da defesa da democracia. O Brasil conquistou sua independência no ano de 1822, mas a República só foi proclamada 62 anos depois e, ainda assim, por décadas imperou o modelo de eleições indiretas. Neste ano, porém, o Brasil tem um encontro marcado com a sua história, com a democracia e com a prevalência da vontade popular, trata-se da realização de eleições livres e transparentes.

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A Constituição que inaugurou a previsão de voto direto para presidente e vice-presidente no Brasil foi a Republicana de 1891, ela também atribuiu ao Congresso a regulamentação do processo eleitoral para os cargos federais em todo o país e, aos estados, a legislação sobre eleições estaduais e municipais[2]. Contudo, as fraudes eleitorais eram corriqueiras nesse período da República Velha. Predominava o coronelismo, o voto de cabresto e os detentores do poder econômico e político manipulavam o resultado das urnas. A desordem era tamanha que em uma eleição desse período, ocorrida no Rio de Janeiro, tantos eleitores votaram duas vezes que foi preciso empossar dois governadores e duas Assembleias Legislativas[3].

Essas questões seriam solucionadas apenas com a reorganização do sistema e a transposição de meros formalismos liberais. Foi nesse contexto de busca pela ruptura com a política coronelista que se originou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em consonância com as aspirações de renovação e progresso. No mesmo sentido, a Justiça Eleitoral foi criada — sob o slogan de "justiça e representação"[4] — no ano de 1932 pelo Código Eleitoral, que incluiu o voto feminino e introduziu na legislação brasileira o sufrágio universal, o voto secreto e o sistema de representação proporcional em dois turnos simultâneos. O Código também passou a regular as eleições federais, estaduais e municipais em todo o país e a ser responsável por todos os trabalhos eleitorais, já prevendo o "uso de máquina de votar"[5].

A história da democracia brasileira, porém, não é linear. A Justiça Eleitoral foi extinta cinco anos após sua criação, ocasionando a abolição dos partidos políticos então existentes e a suspensão de eleições livres[6]. Foi em 1945 que a Lei Agamenon a restabelece com algumas novidades – como a exclusividade dos partidos políticos na apresentação de candidatos – até o advento do Código Eleitoral de 1950.

Todavia, alguns anos depois, em 1964, um golpe militar estabeleceu uma ditadura fazendo retroceder, mais uma vez, os avanços democráticos, suspendendo as garantias da Constituição vigente e ampliando os poderes ditatoriais do presidente. Esse regime cassou direitos políticos, alterou a duração de mandatos, instituiu a candidatura nata e o voto vinculado, bem como decretou eleições indiretas para presidente da República, governadores dos estados, dos territórios e para prefeitos dos municípios considerados de interesse da segurança nacional e das estâncias hidrominerais, além de reforçar o poder discricionário do governo ao alterar o cálculo para o número de deputados na Câmara[7].

Em reverência ao seu compromisso democrático, a OAB teve papel fundamental na resistência institucional durante a ditadura. Na figura de Sobral Pinto e de tantos outros advogados memoráveis, a Ordem lutou pelo restabelecimento das garantias constitucionais e do regime democrático no país. Como alertou Ruy Barbosa, patrono da advocacia brasileira, "o advogado pouco vale nos tempos calmos; o seu grande papel é quando precisa arrostar o poder dos déspotas, apresentando perante os tribunais o caráter supremo dos povos livres".

A participação direta dos cidadãos foi fortemente reprimida nesse período, foram eleitos indiretamente cinco presidentes militares. Não por acaso, "o fim do regime militar foi construído com enorme apoio popular"[8] até resultar no restabelecimento das eleições diretas em maio de 1985. No final desse mesmo ano foi sancionada a lei que disciplinou a implantação do processamento eletrônico de dados no alistamento e na revisão do eleitorado, possibilitando o recadastramento de pouco mais de 70 milhões de eleitores em todo território nacional no ano seguinte, sob a supervisão e orientação do Tribunal Superior Eleitoral[9].

A Constituição de 1988 sobreveio para chancelar a redemocratização no Brasil, instalando a forma federativa de Estado, a separação dos poderes e um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, calcando-se no pressuposto de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. A soberania popular é um dos fundamentos do Estado democrático de Direito no Brasil e esta é exercida pelo voto direto, secreto, universal e periódico, que não pode ser abolido ou suprimido do texto constitucional.

O alargamento do contingente de eleitores é medida que amplia o regime democrático, pois o povo é o sujeito histórico da democracia, "sem a legítima participação popular não há regime que se diga democrático"[10]. A democracia, por sua vez, como ensina Giovanni Sartori, não se resume aos atos de votar e ser votado; para o estabelecimento do governo popular, as eleições, por óbvio, constituem uma condição necessária, porém não suficiente[11].

Demanda-se também engajamento social ativo e participação da vida pública para o fortalecimento da cidadania e distribuição de benefícios democráticos individuais e coletivos. A própria denominação eleitor-cidadão "assume importante caráter dúplice quando se percebe que, por um lado, chama-se eleitor aquele que comparece livre e conscientemente às urnas para registrar seu voto, e, por outro lado, chama-se de cidadão aquele que tem o poder-dever de fiscalizar as eleições"[12].

 A relevância do processo eleitoral demanda também a participação direta de diversas instituições da sociedade brasileira, a Ordem dos Advogados do Brasil, que tem a defesa da democracia como um dos seus objetivos, por exemplo, integra o rol de entidades habilitadas a participar como fiscalizadora das eleições, atuando em todas as fases do processo eleitoral. Em homenagem ao juramento de defesa do Estado Democrático de Direito, a advocacia há de desempenhar relevante papel na contenção do abuso de poder e difusão de informações.

Junto ao Supremo Tribunal Federal, a OAB conquistou a proibição do financiamento empresarial de campanhas, partidos políticos e candidatos. Com o julgamento favorável à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.650 resguardou-se: (i) o princípio da isonomia; (ii) princípio democrático; (iii) princípio republicano; e (iv) o princípio da proporcionalidade, em sua dimensão de vedação à proteção insuficiente. Ante a comprovada dependência do poder econômico para a obtenção do sucesso na competição eleitoral, os políticos tenderiam a favorecer os interesses de seus financiadores tanto no em suas funções políticas quanto no uso da máquina administrativa. Dessa forma, a declaração de inconstitucionalidade do financiamento empresarial de campanhas restabelece que os votos devem ter o mesmo peso, independentemente da condição financeira.

No mesmo sentido, a Ordem alcançou, também no âmbito do STF, a proibição de doações ocultas a partidos para campanha eleitoral. No julgamento da ADI 5.394, ficou estabelecido que "o grande desafio da democracia representativa é fortalecer os mecanismos de controle em relação aos diversos grupos de pressão, não autorizando o fortalecimento dos 'atores invisíveis de poder', que tenham condições econômicas de desequilibrar o resultado das eleições e da gestão governamental"[13].

Neste ano eleitoral, considerando o caráter fundamental da parceria de entes compromissados com a construção de um ambiente democrático, a OAB e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) assinaram em junho de 2022 um acordo de cooperação para o enfrentamento da desinformação no processo eleitoral e para o fortalecimento da confiança nas instituições eleitorais. O TSE reconheceu a centralidade da Ordem para a preservação do Estado de Direito e reforçou a importância da união de esforços entre as entidades compromissadas com a divulgação de informações checadas e transparentes, a fim de combater fake news e discursos de ódio.

A OAB, por seu turno, compromete-se com a realização de atividades voltadas à conscientização a respeito da ilegalidade e da nocividade das práticas de desinformação, como a realização de entrevistas e publicação de artigos sobre a integridade das eleições, a tolerância política, a legitimação do pensamento divergente e o papel da Justiça Eleitoral como garantidora da democracia. Diante disso, tanto o Conselho Federal da OAB como as seccionais têm realizado inúmeros eventos públicos para defender a importância e indispensabilidade de eleições limpas, transparentes e para reafirmar que a informação genuína é a melhor resposta à desinformação.

Conforme foi registrado no manifesto da Ordem à nação em defesa da democracia, a OAB está acima dos interesses político-partidários, não é extensão de governos, tampouco auxiliar da oposição. A Ordem dos Advogados do Brasil tem o Estado democrático de Direito como seu único partido, sendo a Constituição a sua ideologia. Para a defesa do regime democrático, da supremacia das normas constitucionais e promoção de eleições livres e transparentes, a OAB caminha ao lado da sociedade, pois a construção de uma nação mais justa é objetivo comum.

Dessa forma, assim como cabe à Ordem estar à disposição da sociedade brasileira para ser o escudo da cidadania e o farol que aponta para o horizonte de transformações, "cumpre que os eleitores elejam, que se movam, que saiam de suas casas para correr às urnas, que se interessem, finalmente, pelo exercício do direito que a lei lhes deu, ou lhes reconheceu"[14].


[2] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. Art. 47.

[3] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Conheça a história do voto no Brasil. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/noticias/122465-conheca-a-historia-do-voto-no-brasil/>. Acessado em set. de 2022.

[4] FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III – O Brasil Republicano. Volume 10. Sociedade e Política (1930-1964). Introdução Geral de Sergio Buarque de Holanda, 9º ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. P. 22.

[5] Decreto n° 21.076/1932. Código Eleitoral de 1932. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21076-24-fevereiro-1932-507583-publicacaooriginal-1-pe.html>. Art. 57.

[6] TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. O Sistema Eleitoral Brasileiro: Síntese e História. Brasília: TSE, 2009.

[7] Idem. P. 31.

[8] ALMEIDA NETO, Manoel Carlos de. O colapso das Constituições do Brasil: uma reflexão pela democracia. Belo Horizonte: Fórum, 2022. Prefácio: p. 13.

[9] MACHADO, Marden. Memórias eleitorais: 35 anos do recadastramento nacional de eleitoras e eleitores. TSE, 2021. Disponível em: < https://www.tre-pr.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Julho/memorias-eleitorais-35-anos-do-recadastramento-nacional-de-eleitoras-e-eleitores>.

[10] COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. Eleições – Abuso de Poder – Instrumentos processuais e eleitorais. OAB Editora, 2006. P. 35.

[11] ARTORI, Giovanni. La democracia en 30 lecciones. Ciudad de México: Taurus, 2009, p. 108.

[12] PITTA, Guilherme Regueira. O papel do eleitor-cidadão. Tribunal Superior Eleitoral. Disponível em: <https://www.tse.jus.br/o-tse/escola-judiciaria-eleitoral/publicacoes/revistas-da-eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-3-ano-5/copy_of_por-que-a-urna-eletronica-e-segura>.

[13] STF. ADI n° 5394/DF. Relator o Ministro Alexandre de Moraes. Plenário, 31.03.2018. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4860251 >.

[14] MACHADO DE ASSIS. APUD Migalhas. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/quentes/373607/machado-de-assis-e-a-abstencao-eleitoral >.

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