Opinião

Subsídio cruzado: cobrança compulsória e falta de transparência

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1 de outubro de 2022, 6h31

A título de subsídio cruzado são exigidos pagamentos compulsórios além daqueles necessários para cobrir os custos e a universalização dos serviços e para garantir a margem de lucro das concessionárias de serviços públicos.

Os incisos do parágrafo único do artigo 175 da Constituição estabelecem que a lei disporá, dentre outras, sobre "o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos", "os direitos dos usuários" e a "política tarifária".

Em relação à política tarifária, o artigo 13 da Lei Federal nº 8.987/1995 dispõe que "[a]s tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários".

Ocorre que independentemente das características técnicas e dos custos específicos decorrentes do atendimento aos distintos segmentos de usuários, é comum a cobrança de tarifas diferenciadas com base unicamente em faixas de consumo ou categorias de usuários.

Como exemplo, considere-se a seguinte tarifa fictícia: o valor do metro cúbico pelo consumo de água é R$ 1 até o limite de 100 metros cúbicos, assim, será cobrado o valor de R$ 100 pelo consumo de 100 metros cúbicos. Contudo, se o consumo superar 100 metros cúbicos será cobrado o valor de R$ 1,20 pelo metro cúbico e não mais R$ 1. Isso sem qualquer característica técnica ou custo específico decorrente do aumento do consumo.

O Enunciado de Súmula 407 do Superior Tribunal de Justiça [1] estabelece ser "legítima a cobrança da tarifa de água fixada de acordo com as categorias de usuários e as faixas de consumo".

O Supremo Tribunal Federal, quando provocado a decidir sobre constitucionalidade da sobretarifa ou progressividade da tarifa de energia elétrica estabelecida no auge da crise hídrica e "apagão" no setor elétrico de 2001, decidiu que a cobrança era constitucional, sendo consignado no voto vencedor da ministra Ellen Gracie que os "valores arrecadados como sobretarifa permanecem com as distribuidoras de energia e, como em um sistema de vasos comunicantes, o que os mais gastadores pagarem  a maior  será utilizado para custear despesas adicionais, decorrentes da implementação do próprio plano (adoção de procedimentos adicionais e novas rotinas; revisão de programas de informática; renovação de instrumentos de controle de dados; cruzamento de dados dos consumidores; ampliação das equipes de leitura, corte, ligação e atendimento; ampliação ou instalação de serviços telefônicos de informação ao consumidor; introdução de contabilidade específica e diferenciada para a tarifa especial etc.), e beneficiar aqueles consumidores mais poupadores, que serão merecedores dos bônus" [2].

A cobrança de sobretarifa por faixas de consumo ou categoria de usuários geralmente é justificada como mecanismo de política extratarifária, tendo a finalidade de supostamente reduzir o consumo, bem como mecanismo de financiamento (subsídio cruzado) da tarifa reduzida para as pessoas mais pobres.

A Lei Federal nº 11.445/2007 (diretrizes nacionais para o saneamento básico) dispõe como diretriz tarifária a "inibição do consumo supérfluo e do desperdício de recursos" e que "[p]oderão ser adotados subsídios tarifários e não tarifários para os usuários que não tenham capacidade de pagamento suficiente para cobrir o custo integral dos serviços" [3].

Considerando que as tarifas visam a cobrir os custos da prestação dos serviços, prover recursos para sua ampliação e melhoria, bem como remunerar a concessionária, podem ser cobrados valores extraordinários, i.e., além dos custos da prestação dos serviços, dos recursos para investimentos e da margem de lucro da concessionária?

E ainda, a cobrança de sobretarifa é eficaz quanto à finalidade de reduzir o consumo?

O primeiro grande problema é em relação à transparência da política tarifária das concessionárias de serviços públicos.

Não se sabe ao certo o "valor base" da tarifa que seria suficiente para garantir a margem de lucro, cobrir os custos da prestação dos serviços e prover recursos para investimentos.

Assim, também se desconhece qual o custo do financiamento da tarifa das pessoas pobres (subsídio cruzado) e se efetivamente estão sendo subsidiadas ou se a sobretarifa estaria sendo desvinculada para finalidades diversas.

Ademais, as concessionárias de serviços públicos não estão submetidas à fiscalização dos Tribunais de Contas [4] ou às regras da Lei de Responsabilidade Fiscal [5].

Considerando ainda que o valor da sobretarifa não depende de qualquer atividade específica para o usuário que a paga, há grande semelhança com a cobrança de um tributo, uma vez que deve ser paga compulsoriamente junto com a tarifa, que efetivamente garante a margem de lucros, os recursos para investimentos e o pagamento pelos custos da concessionária [6].

A política tarifária e a cobrança de sobretarifa também não fornecem as mesmas garantias para o obrigado como ocorre em relação aos tributos.

Portanto, a cobrança de sobretarifa, ainda que louvável sob a justificativa de seus fins (preservar recursos naturais e subsidiar as tarifas dos mais pobres), abre espaço para que sejam cometidos abusos de toda ordem, inclusive onerar demasiadamente os usuários, que geralmente dependem de único prestador de serviços em decorrência do monopólio natural.

Ademais, a cobrança de sobretarifa pode impactar negativamente sobre aqueles que apresentam menor capacidade de pagamento pelos serviços.

Há equivocada presunção de que aqueles que mais consomem têm maior capacidade de pagar pelos serviços.

Geralmente ocorre o contrário, os que têm menos capacidade de pagamento acabam consumindo mais, provocando uma regressividade da política tarifária, onde os pobres pagam um valor maior.

As pessoas com melhor capacidade de pagamento investem em painéis solares, em cisternas para captação de água das chuvas ou em miniestações para reuso de água.

Logo, consomem menos e deixam de pagar as sobretarifas, que acabam sendo suportadas justamente pelos mais pobres.

Enquanto isso as concessionárias de serviço público aumentam seus lucros de modo exponencial [7] [8].

[1] "SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ENUNCIADO DE SÚMULA 407

É legítima a cobrança da tarifa de água fixada de acordo com as categorias de usuários e as faixas de consumo".

[2] (ADC 9, relator(a): NÉRI DA SILVEIRA, relator(a) p/ Acórdão: ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 13/12/2001, DJ 23-04-2004 PP-00005 EMENT VOL-02148-01 PP-00001)

[3] "LEI FEDERAL Nº 11.445/2007
Artigo 29. Os serviços públicos de saneamento básico terão a sustentabilidade econômico-financeira assegurada por meio de remuneração pela cobrança dos serviços, e, quando necessário, por outras formas adicionais, como subsídios ou subvenções, vedada a cobrança em duplicidade de custos administrativos ou gerenciais a serem pagos pelo usuário, nos seguintes serviços:
(…)
§1º Observado o disposto nos incisos I a III do caput deste artigo, a instituição das tarifas, preços públicos e taxas para os serviços de saneamento básico observará as seguintes diretrizes:
(…)
IV – inibição do consumo supérfluo e do desperdício de recursos;
(…)
§2º Poderão ser adotados subsídios tarifários e não tarifários para os usuários que não tenham capacidade de pagamento suficiente para cobrir o custo integral dos serviços".

[4] "CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Artigo 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder".

[5] LEI FEDERAL Nº 101/2005
Artigo 1º Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.
§1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar".

[6] "CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
Artigo 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
(…)
Artigo 16. Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte".

[7] "Cedae eleva lucro mesmo com queda de receita. Empresa fechou primeiro trimestre com lucro líquido de R$ 220,5 milhões, alta de 342,6% na comparação com igual período do ano passado". https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/05/18/cedae-eleva-lucro-mesmo-com-queda-de-receita.ghtml

[8] Sabesp tem lucro de R$ 2,31 bilhões em 2021, 136,9% acima de 2020. https://www.istoedinheiro.com.br/sabesp-tem-lucro-de-r-231-bilhoes-em-2021-1369-acima-de-2020/

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