Diário de Classe

O Constitucionalismo Contemporâneo como argumento político da CHD

Autor

  • Victor Bianchini Rebelo

    é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio Sinos (Unisinos-RS) bolsista Proex/Capes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

1 de outubro de 2022, 8h00

Em mais de trinta anos de história, a Crítica Hermenêutica do Direito (CHD), matriz teórica desenvolvida pelo maestro Lenio Streck, sobreviveu a muitas incursões na teoria do direito. Como todo marco teórico e obra de determinado autor, o pensamento streckiano evoluiu ao longo das inúmeras demandas histórico-epistêmicas ao qual foi submetido.

Talvez uma das mais célebres delas tenha sido o reposicionamento em relação ao neoconstitucionalismo. De início alvissareiro no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o movimento neoconstitucionalista parecia ter pego o bastão do antigo Movimento do Direito Alternativo, agora a favor de uma interpretação concretizadora e substantiva dos direitos fundamentais, em prol de uma normatividade constitucional, que à época ainda era um ideal a ser conquistado, tendo em vista a recente promulgação da Constituição de 1988.

Acontece que o neoconstitucionalismo avançou como doutrina de maneira descontrolada, sem qualquer rigor epistêmico, para ao fim desenvolver "condições patológicas" [1] ao constitucionalismo compromissório que ainda engatinhava no Brasil.

Nesse contexto, importações teóricas equivocadas ganharam espaço na doutrina e jurisdição constitucional (caso de Dworkin e Alexy, para citar apenas dois nomes), tudo isso para avalizar condições retóricas para uma jurisdição solipsista, que apenas nos legaria uma concretização ad hoc, isto é, concretizando os direitos fundamentais na medida que o judiciário assim entendesse por correto. Uma concretização de acordo com a subjetividade dos juízes, de acordo com seus interesses e intenções particulares.

Daí a virada conceitual streckiana, que a partir de uma série de textos e reedições de suas obras, abandonou sua filiação prévia ao rótulo neoconstitucionalista [2] e passou a adotar sua filiação teórica (e a da CHD, por conseguinte) ao Constitucionalismo Contemporâneo, termo cuja definição adotaria um constitucionalismo compromissório nos moldes do pós-guerra, insistindo na visão constitucionalista dirigente adotada pelo primeiro Canotilho [3].

Por essa viragem teórica ser tão relevante à obra streckiana — e à teoria da constituição como um todo —, tentaremos esboçar neste texto o que seria uma possível face filosófico-política para este conceito de Constitucionalismo Contemporâneo defendido pela CHD.

Nota-se que a CHD já de há muito torna claro um posicionamento em relação ao que seria o Constitucionalismo Contemporâneo no plano jurídico, delimitando sua defesa da autonomia do direito, da recusa a qualquer tipo de discricionariedade judicial, reafirmando a responsabilidade política dos magistrados já presente em Dworkin e, por fim, reivindicando o resgate da modernidade, que desde Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, demonstra, junto a alguns outros trabalhos [4], a vertente política da CHD.

Streck, portanto, parece acreditar numa visão holística das humanidades, onde filosofia política e filosofia do direito se confundem, mas cidadãos de uma comunidade política comprometidos com o Constitucionalismo Contemporâneo precisam, num contexto de Estado democrático de direito e rule of law, garantir a autonomia do Direito.

Isso se dá porque a CHD atribui um papel "duplo" à política: enquanto política e o Direito são fundados no plano filosófico (e por isso eles não podem ser separados, muito menos categorizados neste primeiro plano), já no plano hermenêutico (applicatio) a política pode se tornar uma predadora do direito, junto à economia e à moral. Todas essas "ciências do espírito" (Geistenwissenschaften) se fundam no plano filosófico, e também são "cooriginárias" e "criadoras" do Direito, mas precisam ser controladas pela comunidade para que não se tornem predatórias do próprio sistema, solapando a democracia.

Acontece que essa "divisão" rechaçada por Streck no plano filosófico, que encontra uma necessária garantia da autonomia do direito pela própria hermenêutica, não é vista da mesma forma entre todos os filósofos.

Com o exemplo de Matthew H. Kramer, há um argumento que a filosofia do direito e a filosofia política são campos distintos mesmo na filosofia "geral", ainda que suas intersecções sejam inúmeras. Kramer, um positivista inclusivista [5], tem nas suas obras sobre filosofia moral e política, um posicionamento não relativista, ou seja, acredita numa objetividade moral [6]. Isso faz dele, apenas nesse sentido, um teórico do direito natural. Mas isso não exclui, ou mesmo contradiz, nas palavras dele próprio, seu pensamento positivista, pois quando o termo "direito natural" é utilizado nas filosofias moral e política, ele denota preceitos de atemporalidade e universalidade, diversamente do sentido de "direito natural" utilizado dentro da filosofia do direito, que denota um número de teorias opostas ao positivismo jurídico, dentre elas o jusnaturalismo e as teorias não positivistas [7].

Sendo um inclusivista, Kramer crê que esse fenômeno empírico que é "a criação do direito" pode incorporar conexões morais. O que o jurista não aceita, entretanto, é que um fenômeno jurídico — sendo empírico — seja predeterminado inerentemente de acordo com a moralidade, como fazem crer autores não positivistas.

Streck, por outro lado, parece não acreditar no argumento de que a filosofia "do" [8] direito seja um ramo diferente da filosofia política e moral, tendo em vista o argumento de Kramer que afirma que essa diferença está justamente no caráter empírico dos sistemas do fenômeno jurídico, que cria sistemas de direito. Assim, Streck apoia-se muito mais na noção holística de Dworkin, que enxerga o direito como um "ramo" da moralidade, dentro de uma teoria unitária do valor [9], além do aporte hermenêutico-filosófico incorporado pela CHD, evidentemente [10].

Incluímos esse desacordo para explicar que o Constitucionalismo Contemporâneo, fazendo também parte da CHD, precisa ser interpretado — e assim o é por Streck, em certa medida, por uma questão de coerência — como um posicionamento filosófico político e moral, até porque a CHD parece mesmo rechaçar, com Dworkin, uma divisão estrita entre "ramos" da filosofia.

Por isso que, mesmo a CHD podendo (coerentemente) afirmar que a política, a economia e a moral, no plano hermenêutico, podem se tornar predatórias à autonomia do Direito, não há razão para que não possa haver uma faceta política na CHD no plano filosófico, e ela já está implícita, ao nosso ver, em várias obras citadas no presente artigo, previamente à inflexão de Streck, se reposicionamento, negando o neoconstitucionalismo e aderindo a um novo conceito, o Constitucionalismo Contemporâneo, que surge também como um "redimensionamento na práxis jurídica que passa pela teoria do Estado e da Constituição" [11].

Ao nosso ver, a face política da CHD já estava ali de há muito e só foi sistematizada pelo Constitucionalismo Contemporâneo. Ora, se há um "redimensionamento da teoria do Estado" por parte do Constitucionalismo Contemporâneo, esta teoria está associada — holisticamente — à política, à moral e à economia, junto com o Direito, todas encampadas por uma única filosofia.

Ainda que a filosofia seja uma só, não havendo espaços para uma filosofia do direito que não seja também abarcada pela moral e pela política, é justamente por esse motivo que um argumento político do Constitucionalismo Contemporâneo deve ser apropriado de modo coerente ao que já é apresentado em termos filosóficos pela CHD, garantindo a autonomia do Direito no plano hermenêutico (da applicatio), enquanto uma sustentação política é feita no plano (filosófico) de uma Teoria do Estado, dando base intersubjetiva à construção de argumentos de defesa do Constitucionalismo Contemporâneo democrático e adequado à facticidade do mundo da vida.

 


[1] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto — o Constitucionalismo Contemporâneo? Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional. Florianópolis, v. 1, nº 02, p. 27 – 41, out. 2014. p. 28.

[2] Um registro da antiga filiação de Streck ao neoconstitucionalismo pode ser vista em texto que data quase vinte anos: STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz. (org.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 153-185.

[3] O professor emérito da Universidade de Coimbra J. J. Canotilho elaborou ao longo de sua carreira uma tese que se tornou famosa no Brasil pós-88, que era a da constituição dirigente (cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001). Nessa tese, o mestre elabora uma teoria da constituição geral, que proclamaria um dirigismo estatal todo voltando a concretizar o texto compromissório constitucional, que englobaria, entre outros direitos fundamentais, os de cidadania pregados pela CHD em seu Constitucionalismo Contemporâneo. Acontece que, em tempos mais recentes (cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. O Estado adjectivado e a teoria da Constituição. Rev. da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, v. 3, 2003), Canotilho revisou sua tese, a partir do argumento de que o texto básico, representado pela Constituição compromissória e dirigente, não pode "servir como fonte jurídica única […], normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias" (p. 52-53). Desse modo, o autor optou por se filiar a uma nova tese: a da constituição moralmente reflexiva. Streck concorda com Canotilho no sentido de considerar impossível uma "teoria geral da constituição" com uma "pretensão universalizante, que busque uma espécie de fundamento de identidade para [todas] as Constituições" (p. 50-51), mas alerta Streck que um constitucionalismo adequado (depois reformulado como Constitucionalismo Contemporâneo) "procura resgatar as especificidades das Constituições e a sua capacidade dirigente e compromissória, apontadas para o resgate das promessas da modernidade, circunstância que assume papel fundamental em países como o Brasil" (p. 51). Assim, o professor defende ainda a tese do "primeiro" Canotilho, mesmo que admita que a teoria da Constituição precisa dessa "adaptação" fática, histórica e institucional, que garanta a intersubjetividade de uma teoria do Estado e da Constituição que seja adequada para cada realidade vivida por determinada comunidade política. No Brasil, essa realidade é de um país explorado, ainda em vias de cumprir as promessas da modernidade. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Uma abordagem hermenêutica acerca do triângulo dialético de Canotilho ou de como ainda é válida a tese da Constituição dirigente (adequada a países de modernidade tardia). In: LEITE, George Salomão; SARLET, Inglo Wolfgang. (coord.). Direitos fundamentais e Estado constitucional: estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 50-78.

[4] Além dos já citados artigos "O que é isto — o Constitucionalismo Contemporâneo?" e o primeiro capítulo de Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, cf. também STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8ª ed., rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014; STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013; e STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, jurisdição e decisão: diálogos com Lenio Streck. 2ª ed., ampl. e rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020.

[5] Para uma explicação acurada do positivismo jurídico e suas correntes contemporâneas, ver o verbete "Positivismo Jurídico" em STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito; Letramento, 2020. p. 263-328.

[6] Cf. KRAMER, Matthew H. Moral Realism as a Moral Doctrine. Hoboken, NJ.: Wiley-Blackwell, 2009, passim.

[7] Sobre a posição inclusivista do positivismo jurídico do autor, ver KRAMER, Mathew H. In Defense of Legal Positivism: Law Without Trimmings. Oxford: Oxford University Press, 2003, especialmente o capítulo 3 da obra, "Scrupulousness without Scruples: A Critique of Lon Fuller and his defenders". p. 37-77, e passim, onde o autor também aborda outros filósofos do direito natural(istas), como John Finnis.

[8] Não olvidemos da famosa conferência para o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, no ano de 2003, ministrada por Ernildo Stein e Lenio Streck, onde cunhou-se o termo "filosofia no Direito", afirmando-se que a didática da filosofia e do direito não poderiam estar à parte uma da outra e que não haveria possibilidade de se discutir o Direito separadamente da filosofia. Por isso o descabimento do nome "filosofia do direito", como é tradicionalmente denominada a disciplina que estuda o entendimento da natureza e do contexto do fenômeno jurídico.

[9] Cf. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Mass.: The Belknap Press, 2011, passim, onde o filósofo defende uma "antiga tese filosófica: a unidade do valor" (p. 1).

[10] A CHD se considera "antropofágica", no sentido modernista do termo, porque apesar de se utilizar dos aportes do direito como integridade e da unidade do valor, em Dworkin, da hermenêutica filosófica de Gadamer e da filosofia e método fenomenológico-hermenêutico, de Heidegger, não se apropria "integralmente" desses aportes teóricos integralmente, construindo uma reflexão e recepção crítica, em busca de uma construção de uma teoria verdadeiramente adequada ao Brasil. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica – Livro carta n.1. São Leopoldo: Edição do autor, 2017. p. 23-24.

[11] STRECK, O que é isto — o Constitucionalismo Contemporâneo?…, p. 29-30.

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    é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio Sinos (Unisinos) como bolsista Proex/Capes, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

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