Ambiente Jurídico

Particularidades do acordo de não persecução penal nos crimes ambientais

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

1 de outubro de 2022, 8h00

O denominado Pacote Anticrime, instituído pela Lei Federal nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, inovou substancialmente o ordenamento jurídico brasileiro com o objetivo de aumentar a eficácia no combate à criminalidade, além de reduzir pontos de estrangulamento do sistema de justiça criminal, assoberbado com o enorme acervo de demandas.

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Como destacada novidade exsurgiu do texto normativo o acordo de não persecução penal (ANPP), inserido no artigo 28-A do Código de Processo Penal e que se coloca como mais um instrumento de justiça penal negocial em nosso país, ao lado de outros já largamente utilizados, a exemplo da transação penal nos crimes de menor potencial ofensivo (artigo 76 da Lei 9.099/95) e da suspensão condicional do processo nos crimes cuja pena mínima seja igual ou inferior a um ano (artigo 89 da Lei 9.099/95).

O acordo de não persecução penal constitui negócio jurídico de natureza extrajudicial, necessariamente homologado pelo juízo competente, celebrado entre o Ministério Público e o agente que tenha praticado o fato criminoso (devidamente assistido por seu advogado ou defensor), na fase de apuração de um ilícito penal, em que o investigado confessa formal e circunstanciadamente a prática do delito, aceitando voluntariamente cumprir determinadas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Parquet requerer o arquivamento do feito, caso o acordo seja totalmente cumprido.

O instituto do ANPP, aplicável aos crimes de médio potencial ofensivo, se revela como uma forma consensual de alcançar resposta penal mais célere ao comportamento criminoso, por meio da mitigação da obrigatoriedade da ação penal, com inexorável redução das demandas judiciais criminais, sobretudo em situações em que a pena privativa de liberdade tenha remota chance de ser aplicada, como nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça em que a reprimenda abstratamente prevista seja inferior a quatro anos.

De acordo com o artigo 28-A do CPP, não sendo o caso de arquivamento (exige-se a justa causa para a propositura do ajuste) e tendo o investigado confessado formal e circunstanciadamente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor o acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante determinadas condições ajustadas entre as partes.

Em uma análise perfunctória sobre o novel instituto, é possível visualizar um amplo espectro de hipóteses de cabimento do ANPP em matéria de crimes cometidos contra o meio ambiente natural, cultural e urbanístico. De fato, tanto crimes tipificados na Lei 9.605/98 (artigos 30, 32, 33, 34, 35, 38, 38-A, 39, 40, 41, 42, 45, 54, 56, 61, 62, 63, 66, 67, 68, 69 e 69-A da Lei de Crimes Ambientais), quanto outros previstos em leis especiais (artigos 15 e 16 da Lei 7.802/89 — Lei de Agrotóxicos; artigo 50 da Lei 6.766/79 — Lei do Parcelamento do Solo Urbano), atenderiam aos principais requisitos objetivos para o cabimento da solução penal negocial.

Contudo, questão inicial que suscita dúvidas na área do direito penal ambiental é se o ANPP seria aplicável aos crimes cometidos com violência contra os animais, a exemplo de maus tratos contra cães e gatos (artigo 32, § 1º-A, da Lei 9.605/98) e a pesca mediante explosivos (artigo 35 da Lei 9.605/98).

Entendemos que, objetivamente, a violência impeditiva do ANPP diz respeito apenas àquela praticada contra a pessoa e que afastaria a possibilidade da aplicação de penas alternativas à prisão, nos termos do art. 44, I, do Código Penal Brasileiro.

Entretanto, o membro do Ministério Público poderá recusar fundamentadamente o ANPP em crimes cometidos com violência contra a fauna baseado em situações concretas que demonstrem ser o instrumento negocial insuficiente para a reprovação e prevenção da criminalidade ambiental (artigo 28-A, caput, do Código de Processo Penal).

Outro ponto importante em sede de ANPP sobre crimes ambientais é a possibilidade do ajuste ser firmado, também, com pessoas jurídicas, considerando a excepcional hipótese de responsabilização criminal dos entes morais que exsurge dos artigos 225, § 3º da Constituição Federal, complementado pelo artigo 3º da Lei 9.605/98.

No que diz respeito às obrigações a serem pactuadas, questão de relevo que se coloca é que a exigência de reparação do dano, em se tratando de crimes contra o meio ambiente, sempre será cláusula obrigatória e indeclinável em todo e qualquer acordo de não persecução penal, devendo o artigo 28-A, I, do CPP ser aplicado em conjugação com os preceitos insertos nos artigos 27 e 28 da Lei 9.605/98, que exigem a composição do dano cível ambiental como requisito essencial para a aplicação das medidas despenalizadoras envolvendo crimes ambientais.

É que a garantia da reparação cível dos danos causados em detrimento do meio ambiente é um dos princípios básicos da Lei de Crimes Ambientais, cujos efeitos se espraiam a todo o ordenamento jurídico, até mesmo porque, como bem leciona Alex Fernandes Santiago, de "nada servirá um Direito Penal que pretenda proteger o meio ambiente e não se ocupe da reparação do dano ambiental. A reparação é essencial, imanente a qualquer discussão sobre meio ambiente" (Fundamentos de Direito Penal Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey. 2015. p. 349).

Também não remanesce margem de discricionariedade ao Ministério Público quanto à inserção, no âmbito do ANPP versando sobre crime ambiental. da previsão do agente beneficiado pelo instituto renunciar voluntariamente a bens e direitos que sejam instrumento (ex: a motosserra utilizada para a supressão de vegetação do bioma Mata Atlântica), produto (ex: a madeira ilegalmente extraída) ou proveito do crime (ex: o lucro obtido com a venda da madeira). Com efeito, o princípio da reparação integral que vige em sede de direito ambiental veda que o agente aufira qualquer tipo de vantagem com a prática do ilícito emite comando no sentido de que os produtos e instrumentos dos crimes ambientais devem ser apreendidos e perdidos (artigo 25 da Lei 9.605/98) e os lucros ilícitos neutralizados.

Quando restar pactuada obrigação de prestação de serviços à comunidade (inciso III do artigo 28-A do CPP), vale lembrar que o tema é regrado pelo artigo 9º da Lei de Crimes Ambientais, segundo o qual a prestação de serviços à comunidade consiste na atribuição ao condenado de tarefas gratuitas junto a parques e jardins públicos e unidades de conservação, e, no caso de dano da coisa particular, pública ou tombada, na restauração desta, se possível.

Na mesma toada, quanto à prestação pecuniária prevista no inciso IV do artigo 28-A do CPP, descarta-se o artigo 45 do CPB e aplica-se, por especialidade, o artigo 12 da Lei 9.605/98. Vale destacar que, em razão do princípio da máxima coincidência possível, basilar em matéria de tutela do meio ambiente, a destinação social da entidade beneficiária da prestação pecuniária deve guardar pertinência com matéria de cunho ambiental. Ou seja, ela deve ter como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.

Com lastro no artigo 28-A, V, do CPP, mostra-se possível que o membro do Ministério Público estabeleça como cláusula do ANPP, valendo-se da sistemática do artigo 28 da Lei de Crimes Ambientais, que o agente beneficiado tenha que apresentar laudo de constatação de reparação do dano ambiental como condição para a extinção de sua punibilidade.

Verifica-se que o permissivo do artigo 28-A, V, do CPP mostra-se de extrema relevância prática para que todas as dimensões da lesão ou da ameaça ao meio ambiente ecologicamente equilibrado possam ser objeto do necessário tratamento jurídico, resgatando o cumprimento da lei e assegurando o alcance dos fins colimados pelo direito ambiental em sua inteireza.

Nesse sentido, será possível, por exemplo, impor no ANPP a suspensão de atividades econômicas ou industriais potencialmente degradadoras que estejam sendo desenvolvidas sem a autorização dos órgãos competentes, até que elas sejam regularmente obtidas.

Quanto ao papel do Poder Judiciário na análise e homologação da proposta de ANPP, ele se destina a preservar a legalidade da utilização do instrumento e a voluntariedade das partes, não podendo o magistrado se imiscuir na dimensão negocial do acordo livremente firmado entre o titular da ação penal e o investigado, ou alterar cláusulas ex officio, por exemplo, sob pena de afronta ao princípio da imparcialidade, atributo indispensável do magistrado no sistema acusatório, que se pretendeu potencializar com o Pacote Anticrime.

Sobre o tema a jurisprudência já se manifestou:

"É vedada a substituição da figura do Ministério Público pela do juiz na celebração do acordo de não persecução penal, instrumento jurídico extrajudicial concretizador da política criminal exercida pelo titular da ação penal pública cuja homologação judicial tem natureza meramente declaratória. Agravo regimental desprovido" (AgRg no HC 685.200/RJ, rel. ministro João Otávio de Noronha, 5ª Turma, julgado em 24/8/2021, DJe 30/8/2021).

"CORREIÇÃO PARCIAL – ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL – MAGISTRADO QUE ALTERA, EX OFFICIO, CLÁUSULAS DA PROPOSTA OFERECIDA PELO PARQUET – PRELIMINAR DE DESCABIMENTO – REJEIÇÃO – MANIFESTO ERROR IN PROCEDENDO – NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA Á LITERALIDADE DO ART. 28-A DO CPP – PEDIDO PARA EXPEDIR NORMATIVA A FIM DE QUE O MAGISTRADO SE ABSTENHA DE ALTERAR FUTUROS PACTOS – INVIABILIDADE – CORREIÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. 1. O acordo de não persecução penal, constante do art. 28-A do CPP e introduzido naquele diploma pela Lei 13.964/19, é faculdade conferida ao parquet, não competindo ao Magistrado, no controle de legalidade, alterar ex officio cláusulas constantes do esboço e imediatamente homologá-lo. 2. O acordo de não persecução penal, constante do art. 28-A do CPP e introduzido naquele diploma pela Lei 13.964/19, é faculdade conferida ao parquet, não competindo ao Magistrado, no controle de legalidade, alterar ex officio cláusulas constantes do esboço e imediatamente homologá-lo. 3. Em sentido contrário, havendo dissidência por parte do Juiz competente, poderá somente determinar que o parquet reformule o esboço (§5º) ou, em último caso, até mesmo rejeitar o acordo (§7º), inexistindo previsão, contudo, para alterar cláusulas sem anuência do Órgão Ministerial. 4. Além disso, a homologação do pacto deve ser precedida de audiência para se verificar a voluntariedade da avença, na qual deve estar presente o defensor do acusado (§4º). 5. Verificadas irregularidades no processamento de acordo de não persecução penal, imperiosa a cassação da decisão recorrida. (…)" (TJ-MG — Correição Parcial (Adm) 1.0000.21.191055-9/000, relator(a): des.(a) Eduardo Machado, CONSELHO DA MAGISTRATURA, julgamento em 2/5/2022, publicação da súmula em 13/5/2022).

Logo, a possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal no âmbito dos delitos ambientais é promissora e o instituto penal negocial pode, se bem utilizado, contribuir para maior eficiência, eficácia e celeridade na repressão de condutas criminosas e na reparação de danos causados em detrimento do bem jurídico ambiental.

Para que isso ocorra de fato, entretanto, é necessário que o instituto do ANPP seja lido, interpretado e aplicado sob as luzes do direito penal e do direito processual penal ambiental, que possuem particularidades marcantes quando comparados com as ciências penais tradicionais.

Enfim, são essas as nossas considerações iniciais sobre as particularidades da aplicação do ANPP em matéria de crimes ambientais, feitas com o intuito de contribuir singelamente para o aperfeiçoamento da utilização do novo instrumento despenalizador.

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