Opinião

Considerações a respeito da cooperação policial internacional

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30 de novembro de 2022, 14h27

Recentemente, com muita difusão se noticiou na imprensa nacional a operação promovida pela Polícia Federal carioca em 23 de novembro do ano corrente, no âmbito da qual prendeu-se provisoriamente o filho do ex-governador Sérgio Cabral, ante indícios de sua participação em um estratagema criminoso voltado ao comércio ilícito de cigarros [1]. Nessa toada, com o costumeiro sensacionalismo que é afeto a empreitadas policiais dessa natureza, a operação foi batizada de "Smoke Free", tratando-se de apenas um dos braços de uma perquirição ainda maior, de nível transnacional, que continua em curso.

Entretanto, não obstante a repercussão pública da operação compreensivelmente ter se centrado no suposto envolvimento de parente do ex-chefe do Executivo estadual do Rio de Janeiro nos fatos apurados, uma circunstância interessante também veio a lume quando de sua deflagração: as autoridades federais brasileiras, para o desenrolar do caso, contaram com a ajuda do setor de investigações do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, i.e, o Department of Homeland Security, na colheita de informações. Cuidou-se de situação exemplificativa emblemática do que, no âmbito do processo penal, se insere na pouca explorada seara da cooperação policial internacional.

Ora, diferentemente da cooperação jurídica internacional que, por sua vez, é regulada pelos tratados de assistência internacional mútua em matéria penal firmados entre o Brasil e outras nações — mais conhecidos como MLATs (mutual legal assistance treaties) — ou, na sua ausência, pelo ordenamento jurídico pátrio e/ou por acordos de reciprocidade entre países, a cooperação policial, pouco abordada pela doutrina, é dirigida diretamente pelos órgãos de polícia que estabeleceram entre si normas de parceria em termos de investigação e repressão de delitos.

Conforme expõe a própria Polícia Federal (autoridade central no Brasil sobre a matéria em cotejo) em sua página no sítio eletrônico do governo federal, ela "se utiliza da cooperação internacional como instrumento para combater de maneira eficaz a criminalidade organizada transnacional e para preservar a segurança interna" [2] do país, para tanto formalizando parcerias diretas com instituições estrangeiras, através, por exemplo, do que chama de "Memorandos de Entendimento" [3] (MdEs), em que se pactuam os termos da coadjuvação entre as respectivas entidades de polícia de cada país.

Em 2019, por exemplo, o ex-ministro da Justiça e ex-juiz declarado parcial pelo STF no julgamento dos processos criminais movidos contra o ex-presidente Lula, Sergio Moro, encabeçou negociações dessa natureza, justamente, com o Homeland Security estadunidense [4] e, também, com o FBI — sendo que este último atuou ativamente na "lava jato" [5], por decorrência de desdobramentos da operação que, àqueles tempos, eram interessantes a sua jurisdição natal.

De modo geral, cuida-se de importante instrumento do arcabouço legal e regulamentar pátrios no que tange à repressão da criminalidade diante de uma realidade cada vez mais candente de crimes transfronteiriços, cuja investigação, portanto, demanda uma atuação conjunta das nações, envolvidas caso a caso — o que se dá de forma muito mais eficiente quando é realizada diretamente através do intercâmbio de informações entre instituições e órgãos de polícia e investigação.

Afinal de contas, a dinamicidade que organizações criminosas atingem ao se internacionalizar, como é o notório exemplo da traficância de entorpecentes, exige a prontidão e a execução de respostas eficazes das autoridades de, em muitos casos, diversas jurisdições. O desmantelamento dessas estruturas ou até mesmo somente a mitigação das consequências danosas que resultam de seus crimes pode, inclusive, contribuir para o relacionamento entre potências, no combate a problemas domésticos comuns.

Por outro lado, em igual tempo, diante de um mundo cada vez mais globalizado, liquidante das fronteiras entre nações — e favorecedor daquelas mais afortunadas —, pode se esconder por detrás de atividades estatais como a cooperação policial internacional uma série de questões adversas, que variam desde incompatibilidades processuais entre jurisdições e, consequentemente, problemas inafastáveis quanto ao tratamento que cada uma dispensa às metodologias de obtenção e preservação de elementos probatórios, até formas veladas de intervencionismo e dominação por parte de potências estrangeiras.

Afinal, em que pese diversas garantias processuais do investigado terem atingido o grau de consenso entre as nações do mundo ocidental, sempre haverá as particularidades legais que irão de encontro entre as jurisdições, em virtude de suas respectivas tradições históricas e sistemas jurídicos. Ora, regras sobre cadeia de custódia, confissão e investigações preliminares, por exemplo, variam de país para país.

Outrossim, no campo das relações de poder entre potências, a título exemplificativo, tem-se as amplamente conhecidas críticas feitas à já mencionada operação "lava jato". Certas nações, no curso de referida empreitada, obtiveram vantagens quase que inestimáveis, oriundas do recolhimento de valores de empresas nacionais obtidos através de multas criminais, administrativas e cíveis, decorrentes de fatos a respeito dos quais dificilmente se consegue construir algum argumento legal que as justificasse, que não qualquer retórica que culmine, essencialmente, na lógica da "lei do mais forte". Ora, em muitos casos, os fundamentos da vis attractiva utilizados pelas jurisdições alienígenas processantes de fatos ocorridos no Brasil e investigados pela operação "lava-jato", mesmo que previstos em leis nelas existentes, eram completamente artificiais, somente cumprindo o propósito de extensão dos braços punitivos e de interesse geopolítico daquele Estado.

Nesse conduto, essencial é que, para que exsurjam os verdadeiros benefícios da cooperação policial, assim se faça condicionando essa atividade aos preceitos de ordem pública e interesses nacionais.

Tal quadro proporciona um dos grandes desafios desse século, no sentido de conciliar a repressão à criminalidade com a promoção e proteção da soberania, nos mesmos moldes em que originariamente formulada. Percebe-se com facilidade que o Poder Judiciário e todas as instituições que lhe dizem respeito, se carentes de tal tipo de proteção, são a porta de entrada da nova era de intervencionismos. Ao mesmo tempo, deve-se promover a capacitação dos órgãos policiais em face de crimes transnacionais, o que exige a cooperação conjunta de instituições dessa natureza, em fase investigativa.

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