Opinião

Diversidade e tecnologia: os deveres dos estados no mercado

Autores

  • Anna Sambo Budahazi

    é advogada das áreas de proteção de dados e tecnologia mídia e entretenimento do Opice Blum Bruno & Vainzof Advogados Associados e e co-fundadora de Núcleo de Proteção de Dados Pessoais da Universidade de São Paulo (USP).

  • Ingrid Fischer Carvalho

    é advogada das áreas de proteção de dados e tecnologia mídia e entretenimento do Opice Blum Bruno & Vainzof Advogados Associados.

28 de novembro de 2022, 16h10

Século 21: metaverso, transição da Web 2.0 para a Web 3.0, inteligência artificial, mas a luta contra o racismo no mundo tecnológico ainda tem muito a avançar.

Apesar dos diversos tratados e convenções internacionais que tratam sobre o combate ao racismo e buscam a igualdade de oportunidades, como a Carta de Constituição das Nações Unidas e a Declaração Universal de Direitos Humanos, a discriminação racial ainda limita o pleno exercício dos direitos humanos.

Desde a elaboração da Carta de Constituição das Nações Unidas, que serviu como "pontapé inicial" para a positivação do direito de igualdade racial, muitos outros documentos foram promulgados ao redor do mundo, em busca de uma sociedade melhor.

Martin Luther King Jr., que, em conjunto com as Panteras Negras, buscou banir um sistema que pregava racismo institucional como forma de um Estado democrático, teve papel marcante em 1963, na Assembleia Geral das Nações Unidas (UNGA), quando declarou a eliminação de todas as formas de discriminação racial, por meio da resolução nº 1.904, levando, no ano seguinte, os Estados Unidos da América a proclamar a Lei dos Direitos Civis, que também abordava sobre a igualdade racial.

A década de 1960, no geral, foi considerada um marco para o combate ao racismo, uma vez que os principais instrumentos jurídicos que formam a base desse Regime Internacional foram aprovados nessa época. No mesmo período, a UNGA aprovou também a Resolução nº 1.514, declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais, que potencializou o direito à independência e reafirmou o princípio da autodeterminação, sem distinção de raça, credo, cor, possibilitando aos povos uma independência completa.

Outro exemplo de marco regulatório criado nesse período, foi a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que reiterou a necessidade de os Estados partes promoverem o entendimento entre todas as raças e desenvolverem uma política de eliminação da discriminação racial, condenando propagandas e organizações baseadas em teorias e ideias de superioridade, bem como advogando pelos direitos de tratamento igualitário.

Além das referidas cartas e convenções, é possível encontrar outros instrumentos jurídicos internacionais que de combate às formas de discriminação racial no mundo, a exemplo da Declaração sobre a Promoção entre os Jovens dos Ideais de Paz, Respeito Mútuo e Compreensão entre os Povos, datada de 1965, que defende que os jovens devem ser educados para o conhecimento da dignidade e da igualdade de todos os homens, sem distinção de raça, cor, origem étnica ou crença; e a Declaração da Unesco sobre Princípios Fundamentais relativos à contribuição dos meios de comunicação de massa para o fortalecimento da paz e do entendimento internacional, para a promoção dos direitos humanos e para o combate ao racismo, ao apartheid e ao incitamento à guerra, que discorre sobre o papel dos meios de comunicação de massa no combate ao racismo.

Apesar de os diversos tratados internacionais e regulamentações nacionais que abordam o assunto, é notório o fato de que a discriminação racial ainda está extremamente presente em nossa sociedade, de forma direta e indireta.

Embora vivamos em uma era em que a velocidade dos avanços tecnológicos tem curva de evolução cada vez mais reduzida, infelizmente, o progresso no banimento de práticas racistas não caminha com a mesma rapidez. A privação de condições igualitárias da população preta está intimamente ligada com a ausência de políticas públicas estruturadas de acesso à educação e à saúde.

Ainda que haja um framework regulatório robusto, há também ampla dificuldade de consolidação e implementação desses direitos básicos dentro dos países. Segundo estudo do Instituto Locomotiva e da consultoria PwC, no Brasil, em 2019, apenas 46,6% da população de 25 anos ou mais estava concentrada no nível de ensino fundamental completo. Adicionalmente, 71% da população com mais de 16 anos não consegue acessar a internet todos os dias, grupo formado principalmente por pessoas negras. Isso se reflete na quantidade de pessoas que posteriormente possui acesso à educação superior ou escola técnica, e, consequentemente, no ambiente de trabalho de tecnologia, diferença social reforçada no período da pandemia.

Além dessas questões de acessibilidade à educação e à saúde de base, identifica-se um segundo gargalo: o compromisso dos Estados e das empresas em garantir a equidade. De acordo com a pesquisa da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação, 30% da força de trabalho no setor corresponde ao grupo de negros, pardos e indígenas. Comparando-se com a estatística do IBGE de que o Brasil possui 56,10% de pessoas que se declaram negras ou pardas, a desproporção de acesso ao mercado de trabalho por esse grupo indica que há uma longa jornada pela frente.

Isso pode se dar por diversos fatores. Em um aspecto mais humano, conforme o relatório "2020 People of Color in Tech", da Trust Radius, os principais desafios na contratação de pessoas negras são: preconceitos ou vieses inconscientes, micro agressões no ambiente de trabalho, acesso desigual à educação e a oportunidades que criam experiência, bem como exclusividade na Cultura Técnica e Acomodação da Diversidade. Um grande exemplo foi o paradoxo apontado por Stephen Steinberg, que demonstrou que a classe média branca liberal americana era favorável aos direitos civis negros, contanto que não criassem quaisquer "problemas" para eles.

Ainda, segundo pesquisa da Trust Radius, 73% de pessoas brancas entendem que o preconceito e o viés inconsciente não exercem papel relevante em processos seletivos, fatos que caracterizam uma falsa defesa do fim do racismo ou até mesmo uma falsa perspectiva da realidade. Mas, de que forma a tecnologia impacta nos desafios em busca da diversidade?

Em um aspecto mais tecnológico, diversas empresas fazem uso de ferramentas associadas à inteligência artificial e big data, baseadas em uma coleta massiva de informações. Por exemplo, diversas redes sociais permitem o direcionamento de candidaturas a pessoas específicas a partir de descrição no perfil, idade do candidato, características físicas, páginas que segue, pesquisas que realiza e, ainda, quantidade e tipos de cliques na plataforma, a fim de prever determinados comportamentos e determinadas escolhas. Para além de preocupações associadas à privacidade, os aspectos humanos influenciam diretamente nos candidatos que recebem as informações, já que são indivíduos que regulam os "gatilhos" da tecnologia.

O que parece um discurso repetitivo na sociedade atual, ainda vemos como problemas estruturais refletidos em velhas e novas tecnologias. Inclusive, no caso do Metaverso, já temos relatos de aparecerem preços diferentes dos avatares em razão de raça, gênero e cor de pele — como o caso do NFT CryptoPunk. Outro exemplo de racismo no contexto da Web 3.0 foi o projeto MetaSlaves, que envolvia a coleção de NFTs com imagens de pessoas negras fazendo alusão à escravidão. Tamanha foi a repercussão negativa que o projeto foi tirado do ar, mediante pedidos de desculpas de seus responsáveis.

O questionamento reside em quais ações poderão ser tomadas. Recordemos que os Estados possuem o dever, nos termos dos tratados internacionais, de aplicar os esforços necessários, considerando a capacidade de cada país, para eliminar todas as formas de discriminação de seu território. Entre uma das possibilidades é o Estado voltar seus esforços para a regulação das empresas, área atualmente pouco explorada nacional e internacionalmente.

O tema das violações de direitos humanos competidas por empresas tem sido muito debatido desde 1970. A pauta deve dedicar atenção especial às empresas de tecnologia, detentoras de tecnologia e inteligência de dados inigualável, incorporando-se à sociedade da informação e usando-os como objetos mercantis e estratégia de negócios.

Nesse sentido, a ONU foi líder na pauta, propondo os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos. Ainda que seja considerada uma fonte secundária do direito internacional, o documento exerce função essencial ao estabelecer os princípios para proteger — dever do Estado de proteger direitos humanos —, respeitar — dever das empresas de respeitar direitos humanos — e remediar — necessidade de ambos providenciarem remédios efetivos em caso de violação.

Adicionalmente, o Comitê da Organização Internacional do Trabalho levanta os seguintes pontos de atenção: adoção de disposições legais sobre igualdade e não discriminação; adoção de novas antidiscriminações e disposições de igualdade nas disposições existentes nas leis trabalhistas; e coleta e análise de dados estatísticos com o objetivo de abordar os aspectos estruturais de desigualdades e discriminação profundamente enraizadas.

Essas são algumas tentativas de garantir um racional preliminar para os Estados em sua atuação e na regulamentação dessa temática, observando suas realidades, culturas, estruturação social e incorporação da tecnologia.

Como bem sumarizado nesse trecho do material do International Labour Office: "O local de trabalho é um ponto de entrada estratégico para eliminar a discriminação social na sociedade. (…) Reunindo pessoas de diferentes raças e tratando-os de forma justa, o local de trabalho ajuda a desanuviar preconceitos e a mostrar que a vida social e a atividade livre de discriminação são possíveis, eficazes e desejáveis" [1].

 


[1] ILO. Racial Discrimination in the World of Work. Programme for the Promotion of the ILO Declaration on Fundamental Principles and Rights at Work. Disponível em https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—ed_norm/—declaration/documents/newsitem/wcms_104989.pdf.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!