Opinião

Impropriedade dos punitive damages à luz da responsabilidade civil

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26 de novembro de 2022, 11h25

A responsabilidade civil representa um importantíssimo instituto do Direito Privado cuja construção ocupa posição de destaque tanto no campo dogmático do Direito Civil moderno quanto na prática da vida social. Em linhas gerais, trata-se do dever de reparar os prejuízos causados; em outras palavras, praticado um ato ilícito, nasce a obrigação de indenizar a vítima pelas desvantagens provocadas, tendo por objeto a prestação de ressarcimento [1]. Dessa maneira, trata-se de um instrumento capaz de reequilibrar os direitos que foram afetados. Os danos podem ter natureza patrimonial ou extrapatrimonial, inseridos na segunda categoria os danos morais. Em matéria de danos existenciais, ocorre uma compensação dos danos que está sendo aliada, em razão da ausência de critérios rígidos, a uma função punitivo-pedagógica a partir da qual a indenização pune o ofensor e busca prevenir outros comportamentos no mesmo sentido. Assim, os punitive damages, em sua importação e aplicação, vêm sendo amplamente defendidos pela doutrina e pelos tribunais brasileiros [2], que com isso deixam de observar os fundamentos históricos da responsabilidade civil, sobretudo a sua função essencialmente reparatória, e princípios de ordem constitucional.

Inicialmente, cumpre realizar uma análise do desenvolvimento histórico da responsabilidade civil e do papel que lhe foi atribuído. Para compreender esse processo, é fundamental reconhecer a distinção entre os delitos penais e os delitos civis e suas repercussões. Na esfera criminal, o agente comete um injusto penal e, em razão da violação de um bem jurídico instituído em defesa da sociedade, é reprimido com uma pena. Em contraste, no Direito Civil, ocorre uma ofensa a um direito privado, um interesse individual tutelado pela lei, surgindo a necessidade de suprir tal dano. Pretende-se, mais do que punir o ofensor, socorrer a vítima, restaurando os seus direitos violados para atingir o que Clóvis Beviláqua denomina "euritmia social" [3].

Diante disso, fica evidente que a função precípua da responsabilidade civil é a função reparatória. No próprio Código Civil, cristaliza-se o princípio da reparação integral ao limitar a medida da indenização à extensão do dano (CC/02, artigo 944). Sendo assim, revela-se que o escopo fundamental do instituto é a reparação de danos e não a repressão de condutas negligentes [4].

A despeito disso, ampla parte da doutrina enxerga também na responsabilidade civil uma função punitivo-pedagógica que atende a finalidades de retribuição e desestímulo. Explica Nelson Rosenvald:

"Os punitive damages são deferidos com duas finalidades: retributiva (punishment) e desestímulo (deterrence). A retribuição reclama que a conduta revele extrema reprovação social — uma malícia, evidenciada pelo dolo ou grave negligência do agente —, cumulada ao desestímulo, no sentido de direcionar a pena e afligir o transgressor, induzindo-o a não reiterar comportamentos antissociais e ultrajantes análogos [5]."

Com isso, nota-se a implementação de instituto de origem do Common Law para confirmar a duplicidade da reparação do dano moral, visando a levar em conta, na fixação do quantum debeatur, o sancionamento do ofensor para punir e desestimular a prática do ato ilícito por meio de uma pena pecuniária a ser paga à vítima [6]. Para efetivamente quantificar e aplicar os punitive damages, as cortes referem-se usualmente a quatro critérios: (1) gravidade do dano; (2) capacidade econômica da vítima; (3) grau de culpa do ofensor; e (4) capacidade econômica do ofensor [7]. No entanto, toda essa construção permanece esbarrando em óbices principiológicos e legais do nosso ordenamento.

Como demonstrado, a responsabilidade civil representa uma dissociação do direito civil do penal para que os danos das vítimas sejam reparados. Nesse diapasão, a aplicação de pretensões punitivas e morais ignoram a marcha secular de desenvolvimento do instituto ao longo da história [8]. Logo, faz-se necessário reiterar que o escopo fundamental da responsabilidade civil não deve ser a repressão a condutas negligentes, mas a reparação dos danos [9].

Outrossim, vale salientar que a importação dos preceitos externos ao direito civil viola princípios e direitos básicos do direito penal e constitucional brasileiros. A adoção da função punitiva desrespeita, antes de tudo, o angular princípio da legalidade (nulla poena sine praevia lege), consagrado constitucionalmente no artigo 5º, XXXIV, da Constituição. Na verdade, impõem-se aos ofensores penas que não foram previamente cominadas. Além disso, a imposição de sanções civis e criminais com teores semelhantes para o agente trazem significativo risco de bis in idem, já que haveria uma dupla punição de mesma natureza em virtude do mesmo fato.

Por fim, é necessário apontar para as questões civilistas que restringem a imposição de indenizações por danos punitivos. À medida que a vítima deve ser indenizada de acordo com o dano, qualquer valor que exceda esse limite representa uma forma de enriquecimento sem causa [10]. Outro impasse da função punitiva é que nem sempre o responsável pelo dano será quem de fato pagará o valor da condenação, como no caso da relação com seguros [11]. Uma preocupante margem aberta é a de que, sendo estranha à responsabilidade objetiva qualquer discussão em torno da culpa, e sendo a gravidade da culpa um dos principais parâmetros para uma majoração punitiva da indenização, as vítimas podem passar a preferir acionar os responsáveis com base no ato ilícito, a fim de obter indenizações mais elevadas [12]. Em suma, fica nítido que a finalidade punitivo-pedagógica se choca contra elementos cruciais da responsabilidade e do direito civil como um todo.

Destarte, infere-se que a busca pelo desenvolvimento da responsabilidade civil por meio de figuras de outros sistemas jurídicos a respeito dos danos extrapatrimoniais não representa, todavia, seu aprimoramento, haja vista que se desconecta dos próprios fundamentos do instituto. Os punitive damages são, por conseguinte, um reflexo de um retrocesso dogmático que busca associar às sanções civis um caráter penal, ainda que a dissociação desses meios tenha sido o ponto central para um sistema propriamente reparador. Desvirtuam-se os princípios e direitos fundamentais a ponto da vítima cuja lesão deveria ser tutelada perder o foco do ordenamento para o ofensor. Em razão dessas questões e das incongruências com o próprio ordenamento jurídico brasileiro, conclui-se pela impropriedade dos danos punitivos tal como são aplicados hoje.

 


[1] LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964-71. v. 5, nº 144, p. 188. GOMES, Orlando. Obrigações. 12ª ed. 5ª Tir. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.254.

[2] STF, 1ª Turma, ARE /MG, rel. min. Luiz Fux, julg. 9/9/2014/ STJ, 2ª Turma, REsp 487.749/RS, rel. min. Eliana Calmon, julg. 3/4/2003; e STJ, 4ª Turma, AgRg. no REsp. 1.457.651/RJ, rel. min. Luis Felipe Salomão, julg. 4/12.2014.

[3] BEVILAQUA, Clóvis. Theoria geral do direito civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929, p.350. Nesse mesmo sentido, "A responsabilidade civil, ao contrário, tem tradicionalmente se mantido imune a qualquer escopo punitivo, preocupando-se tão somente com a reparação do dano causado a outrem. Sua atenção volta-se não para o agente, mas para a vítima do dano injusto". TEPEDINO, Gustavo; BARBOSA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. O Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. V.II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p.860-861.

[4] TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde Terra; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz Guedes. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.35-36.

[5] ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p.144.

[6] MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.219-259.

[7] RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. AGRESSÃO FÍSICA AO CONDUTOR DO VEÍCULO QUE COLIDIU COM O DOS RÉUS. REPARAÇÃO DOS DANOS MORAIS. ELEVAÇÃO. ATO DOLOSO. CARÁTER PUNITIVO-PEDAGÓGICO E COMPENSATÓRIO. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Na fixação do valor da reparação do dano moral por ato doloso, atentando-se para o princípio da razoabilidade e para os critérios da proporcionalidade, deve-se levar em consideração o bem jurídico lesado e as condições econômico-financeiras do ofensor e do ofendido, sem se perder de vista o grau de reprovabilidade da conduta do causador do dano no meio social e a gravidade do ato ilícito. 2. Sendo a conduta dolosa do agente dirigida ao fim ilícito de causar dano à vítima, mediante emprego de reprovável violência física, o arbitramento da reparação por dano moral deve alicerçar-se também no caráter punitivo e pedagógico da compensação, sem perder de vista a vedação do enriquecimento sem causa da vítima (…). (REsp nº 839.923/MG, relator ministro Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em 15/5/2012, DJe de 21/5/2012.).

[8] SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da Responsabilidade Civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.209. Em decisão que tocava nos danos punitivos, entendeu a Suprema Corte necessário sublinhar que a função punitiva e a função pedagógica, configuráveis no instituto dos punitive damages, são objetivos possíveis somente através do Direito Penal. MORAES, Maria Celina Bodin de Op.cit., p.254-256.

[9] SCHREIBER, Anderson. Op.cit., p.216.

[10] Para tentar contornar esse impasse legal, a jurisprudência alega que o arbitramento dos danos morais é operado com moderação e razoabilidade. REsp 210.101/PR, 4ª Turma, DJe de 9/12/2008.

[11] PÜSCHEL, Flávia Portela. A função punitiva da responsabilidade civil no direito brasileiro: uma proposta de investigação empírica. Revista Direito GV, v. 3, n. 2, p. 17–36, 2012. In cit., p.23.

[12] TEPEDINO, Gustavo; BARBOSA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. Cit., p.867.

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