Diário de Classe

A hermenêutica entre mitos e o necessário dedo na ferida

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26 de novembro de 2022, 8h00

Talvez um dia despertemos; e, antes mesmo de abrirmos nossas caixas de e-mails, de degustarmos o primeiro gole de café, de consumirmos as primeiras notícias da manhã ou de nos entretermos com timelines de redes sociais, recaia sobre nós vestígios de uma lucidez que se ofuscara em meio a "obviedades" que determinam a maneira de compreensão e interpretação do mundo ao nosso redor, ampliando-se, portanto, perspectivas que transcendem a circunferência dos umbigos, dos reflexos no espelho, do Van Gogh pendurado na parede.

Albert Camus, em O mito de Sísifo, inicia o primeiro capítulo — "O absurdo e o suicídio" — a partir de uma assertiva que o vincularia, erroneamente, ao movimento existencialista: "Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio". A partir da articulação de sua obra em torno do absurdo e da revolta, Camus, Nobel de literatura (1957), realoca toda a preocupação filosófica sob a perspectiva do divórcio entre o homem ("estrangeiro em si mesmo") e sua vida. Preocupações que excedam o real problema a ser enfrentado pela filosofia [o suicídio] foram sintetizados através de sofisticada sátira ao afirmar que nunca viu ninguém morrer por causa de argumento ontológico. Em O homem revoltado, Camus nos conduz à ideia de que a atitude mais digna que um ser humano pode tomar é a revolta. Mas não se trata de qualquer revolta. Camus se refere à revolta contra o absurdo. Para Camus, o absurdo decorre de expectativas não correspondidas entre a relação homem-universo, notadamente, pela inexorável ausência de sentido à existência. Resta-nos, frente ao absurdo, vivê-lo, revolucionariamente, ou dele fugir — eis o suicídio.

As citações ao pensamento de Albert Camus não decorrem apenas da necessidade de se estabelecer determinados paradigmas filosóficos, mas, sobretudo, decorre de certa identificação entre as expectativas e frustrações da relação advogado-direito, mais especificamente o criminalista, que, a cada empreitada defensiva, identifica-se cada vez mais com a inutilidade e a desesperança presumida no trabalho de Sísifo, movendo-se, cotidianamente, consciente, em direção ao cume, em meio a forças subjacentes que empurram a "pedra" ladeira a baixo, cuja ausência de sentido de cada tentativa de "subida" faz emergir a estreita relação entre absurdo e práticas racistas, sejam elas veladas, inconscientes, explicitas, estruturais etc. Portanto, guardadas as devidas proporções que singularizam e identificam a genialidade do pensamento de Camus, dele retiro inspiração suficiente para sustentar que o único problema realmente sério a ser enfrentado pelo Direito é o racismo.

Observemos o sistema de Justiça criminal: é uma máquina de moer gente. Gente negra. O sistema penitenciário é a parte do maquinário repressivo que melhor demonstra a necessidade de se estabelecer recorte racial ao tema. Isso porque, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a população carcerária é constituída, em sua maioria, por pessoas que se autodeclaram negras. E sabemos que jabutis não dão em árvores.

O caráter revolucionário atribuído ao Direito, principalmente quando "desacoplado" dos objetivos delineados pelo texto constitucional, pode nos conduz a certas utopias que o pensamento de Camus indicaria como suicídio político. Um possível paradoxo, portanto, observado na relação ambivalente, e não excludente, entre o Direito enquanto instrumento de transformação e bem-estar social e o Direito enquanto instrumento de mediação das relações de poder que se constituíram ao longo da história do Brasil. É na forma da lei, a mesma que institui medidas cautelares diversas da prisão, que se prende preventivamente. E prende-se muito. Gente negra. E não se pode atribuir responsabilidade à anemia semântica que afeta o significante "garantia da ordem pública". O componente racial sempre esteve ali, bem antes de qualquer reforma legislativa. Está entre as linhas dos incisos do artigo 312. Está no olhar atravessado durante as audiências e no substrato do famigerado in dubio pro societate. Tudo dentro da lei. Na pior das hipóteses, saca-se um princípio da própria intuição, e pronto. Fruto do pamprincipiologismo denunciado por Streck.

Em meio a ilusões que atribuem determinados sentidos ao sistema penal, a exemplo do mito do caráter ressocializador da pena, muitos "operadores do direito" entoam o mantra de que a razão da defesa recai sobre direitos, e não sobre quem é submetido a processos de etiquetamento. "Não defendemos bandidos, defendemos direitos", dizem. O escritor Samuel Lourenço Filho, dedicado a temas relacionados ao cárcere, alertou-me para a hipótese de o mantra da "defesa de direitos" ser uma espécie de subterfúgio moral. Um suicídio epistêmico, acrescento. O humanismo intrínseco ao pensamento de Camus, mesmo não diretamente relacionado ao tema aqui desenvolvido, é igualmente suficiente para demonstrar que o exercício da defesa, na constante tentativa de levar a "pedra" ao cume da montanha, desenvolve-se em razão de pessoas, e não de direitos, mesmo que correlacionados.

Em tempo, alerto que, apesar do tom pessimista, reconheço que não podemos cair nas mesmas armadilhas provocadas por determinadas deturpações epistemológicas, a exemplo das que decorrem da má leitura do pensamento marxistas (fortemente criticado por Camus), ou de neoconstitucionalismos de ocasião, que contribuem para a erosão do Direito. Pois bem. Mesmo sob o risco de empobrecer a densidade do pensamento de Camus, sintetizo que o sentido por ele atribuído à revolta não é o ordinário. Não se trata, por exemplo, de se revoltar contra o Direito. Ou revolta contra o sistema. Não é revolta substanciada em lutas. Revoltar-se, frente ao absurdo, é opção contrária ao suicídio, seja ele físico ou filosófico. É viver a vida em toda sua plenitude, afastando-se, revolucionariamente, das inúmeras ilusões que amenizam a ausência de sentido à existência.

E nesse contexto que identifico a possibilidade de uma "Exuêutica". Mas, afinal, o que é isto — a Exuêutica? A Exuêutica se constitui enquanto atitude de revolta, no sentido de Camus, permeando os processos de constituição e de interpretação do Direito a partir do reconhecimento do racismo enquanto precípua razão de enfrentamento. Não se trata, portanto, de novo método de interpretação. Tampouco se configura como pretenso aperfeiçoamento ou superação de modelos de interpretação desenvolvidos ao longo da história, da hermenêutica clássica de Johann Conrad Dannhauer às significativas contribuições de Gadamer, incluindo a sofisticada crítica hermenêutica streckiniana.

A respeito da terminologia adotada, a utilização do prefixo "exu", com a manutenção do sufixo "êutico", decorre de dois motivos. O primeiro diz respeito às semelhanças entre Exu e Hermes. Exu, personagem da mitologia ioruba (Èṣù), é responsável pela comunicação e pela linguagem. É o mensageiro entre seres humanos e deuses. É quem revela. Para além de figura mítica, Exu é divindade cultuada por algumas religiões de matiz africana, a exemplo do candomblé. Ocorre que processos de marginalização cultural, a exemplo do sincretismo religioso, identificaram Exu com a figura do diabo cristão, relacionando-o ao mal. Essa marginalização está estritamente ligada ao racismo. Eis o segundo ponto de sua pertinência à definição do vocábulo.

A Exuêutica se relaciona ao pensamento de Albert Camus na medida em que a revolta faz emergir uma humanidade que se diluiu em meio ao absurdo. O ambiente forense diz muito sobre isso. Lembro-me do relato de um réu que percebera, durante a sessão de julgamento, a falta de empatia dos julgadores. Enquanto ouvia palavras que pouco compreendia (o voto do relator), ele observava a lassidão estampada no rosto de uma desembargadora, que mastigava biscoitos e deslizava o dedo sobre a tela de um smartphone. Ao final da leitura do voto, o destino daquele homem foi determinado por meio de um tímido e desinteressado balançar de cabeça que concordava com a manutenção da condenação. No fim da sessão, julgadores, servidores e advogados se despediram, certos do dever cumprido. Mais uma vez a "pedra" foi empurrada ladeira a baixo.

O racismo, mesmo como razão subjacente, tem papel fundamental na configuração de modelos de repressão que associam o negro à figura de um inimigo a ser combatido. São processos de interpretação e atribuição de sentidos. Cria-se, assim, "estados de normalidade". Nada mais nos choca. Evidentemente, sabemos que muitas questões escapam ao Direito. Mas é preciso provocar constrangimentos. A Exuêutica, imanente, imersa às condições políticas e sociais que estruturam os fenômenos que a ela interessam, é fruto da consciência que antecede a revolta. É o dedo na ferida, e não o curativo. Talvez sequer despertemos.

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