Opinião

Incidente de desconsideração: perspectiva expansiva e interpretação teleológica

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26 de novembro de 2022, 15h07

Inicialmente, destaca-se que, pela evolução dos instrumentos societários, foi necessário que o Judiciário e a doutrina trabalhassem novas soluções para a resolução de casos envolvendo a utilização fraudulenta das atividades empresarias.

Por isso, para (1) acompanhar a mutação social e coibir, de maneira efetiva, todas as novas formas de fraude mediante utilização abusiva da empresa; e (2) entregar ao jurisdicionado (prejudicado pela utilização fraudulenta) uma resposta efetiva ao ato lesivo de direito (exercício da atividade judicante), foi necessária uma modernização do entendimento relativamente ao cabimento da desconsideração da personalidade jurídica.

Assim, passou-se a admitir a desconsideração episódica da personalidade jurídica não somente na hipótese de responsabilização do sócio integrante da sociedade utilizada indevidamente (desconsideração direta, prevista no artigo 50, do CC), mas também a desconsideração envolvendo a prática dos seguintes atos:

a) sócio que esvazia o seu patrimônio pessoal, transferindo os bens à pessoa jurídica da qual é sócio, visando furtar-se de suas obrigações (desconsideração inversa). Tal tipo de desconsideração foi expressamente positivada pelo §3º, do artigo 50, do CC, além do §2º, do artigo 134, do CPC;

b) responsabilização de controladora societária ou de grupo econômico, na hipótese em que a pessoa jurídica é utilizada para fraudar credores (desconsideração indireta);

c) responsabilização de sócio oculto, quando o sócio que efetivamente exerce a atividade empresarial se vale de um terceiro ("sócio laranja") para se esquivar das obrigações naturalmente decorrentes do exercício jurídico da empresa (desconsideração expansiva).

Embora o artigo 50 e o seu §2º, do CC, se refiram à desconsideração direta e inversa da personalidade jurídica, o dispositivo (artigo 50, do CC), por interpretação teleológica, abarca também as hipóteses de desconsideração indireta e expansiva, conforme lecionam os professores José Miguel Garcia Medina e Fábio de Caldas de Araújo, inclusive citando julgados do STF e STJ (STF, MS 32.494-MC, relator ministro Celso de Mello, decisão monocrática, j. 11/11/2013; STJ, REsp 1.259.020-SP, 3ª T, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 9/8/2011), senão vejamos:

"Por interpretação teleológica, além da desconsideração inversa, acima referida, tem-se considerado admissível a desconsideração da personalidade jurídica também em hipótese em que se busca responsabilizar o sócio oculto ou, ainda, a empresa controlada, integrante do mesmo grupo econômico, quando presentes as condições referidas no art. 50 do CC/2002. Costuma-se apelidar a desconsideração a primeira hipótese de desconsideração expansiva, e a segunda, de desconsideração indireta (sobre o tema, na doutrina, cf., dentre outros, Paulo Restiffe, Fraude em execução…Revista do IASP 19/258; Maurício Requião, O incidente de desconsideração…RDCC 10/31; na jurisprudência, cf. p. ex., STF, MS 32494-MC, rel. Min. Celso de Mello, dec. monocrática, j. 11.11.2013; STJ, REsp 1.259.020-SP, 3ª T, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 09.08.2011, embora sem usar a terminologia aqui referida)" […] (Código Civil comentado: Com jurisprudência selecionada e enunciados das Jornadas do STJ sobre o Código Civil / José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas de Araújo. — 3ª ed. rev., atual e ampl. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020, pg. 123)

Neste sentido, tendo em vista que o artigo 50, do CC, aplica-se também aos casos de desconsideração expansiva, mostra-se cabível a instauração do incidente processual previsto nos termos do artigo 133, §1º e §2º, e artigo 134, do CPC.

Por conseguinte, muito embora possa se entender que o tema envolvendo a existência de sociedade de fato (sócio oculto) demande ajuizamento de ação autônoma em razão de sua complexidade, tal entendimento não deve prosperar, sendo perfeitamente possível a discussão em sede de incidente de desconsideração.

Aliás, os mesmos autores comentam que, embora o CPC tenha tratado apenas da desconsideração inversa, o procedimento previsto no artigo 133, §1º e §2º, e artigo 134, do CPC, também é aplicável em se tratando de desconsideração expansiva, veja-se:

"Em todos esses casos, a nosso ver, deve ser observado o rito previsto nos arts. 133 ss. Do CPC/2015. Embora o Código tenha se referido apenas à desconsideração inversa como variação da desconsideração comum, referido procedimento será aplicável também em se tratando de desconsideração expansiva ou indireta […]" (Código Civil comentado: Com jurisprudência selecionada e enunciados das Jornadas do STJ sobre o Código Civil / José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas de Araújo. – 3ª ed. rev., atual e ampl. – São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020, pg. 123).

Os professores Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, inclusive, lecionam acerca do cabimento da desconsideração expansiva da personalidade jurídica para responsabilização de sócio oculto, veja-se:

"Já se fala, na doutrina, em desconsideração expansiva da personalidade jurídica. Trata-se de nomenclatura usada para designar a possibilidade de desconsiderar uma pessoa jurídica para atingir a personalidade de sócio eventualmente oculto." (in "Manual de Direito Civil", 5ª ed., Salvador: Juspodivm, 2020, p. 289)

Caminhando na mesma linha de raciocínio, em 2017, na I Jornada de Direito Processual Civil, foi aprovado o Enunciado nº 11, o qual assentou o entendimento de que a desconsideração expansiva deve seguir o rito dos artigos 133 a 137, do CPC, veja-se: "aplica-se o disposto nos arts. 133 a 137 do CPC às hipóteses de desconsideração indireta e expansiva da personalidade jurídica".

Portanto, houve (1) uma modernização do entendimento acerca das hipóteses de cabimento da desconsideração; (2) uma intepretação teleológica do artigo 50, do CC, sendo cabível, pela aplicação do dispositivo, a discussão sobre a existência do sócio oculto (desconsideração expansiva); e (3) consolidação do entendimento sobre o cabimento do incidente processual previsto no artigo 133, §1º e §2º, e artigo 134, do CPC, para as hipóteses de reconhecimento de sócio oculto, sendo desnecessário, assim, o ajuizamento de ação autônoma.

Em outro vértice, o entendimento sobre o não cabimento em razão da complexidade da matéria (sendo necessário, assim, o ajuizamento de ação autônoma), contraria o disposto nos artigos 135 e 136, do CPC, os quais delimitam que o incidente, independentemente de sua natureza, possui instrução probatória, com a possibilidade de requerimento de provas por ambas as partes, veja-se:

Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.
Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

Percebamos, sem maiores esforços, que o incidente comporta ampla instrução probatória, sendo que os dispositivos (artigos 135 e 136, do CPC) não delimitam exceção acerca da produção de provas, sendo cabível toda e qualquer prova admitida em direito, inclusive a colheita de prova oral em audiência, bem como, se o caso, a produção de prova pericial.

Assim, não há razão para se indeferir o incidente com base na complexidade da matéria, isto é, pela necessidade de ajuizamento de ação autônoma, haja vista que (1) o legislador não delimitou que o reconhecimento da abusividade decorrente do exercício de atividade empresarial (via utilização de sócio oculto) deve se dar por ação judicial; e (2) a complexidade da matéria é resolvida pela ampla possibilidade de instrução probatória (artigos 135 e 136, do CPC) cabível no incidente.

Ressalta-se que pensar em sentido contrário (necessidade de ajuizamento de ação autônoma), seria um verdadeiro contra sensu. Isso porque o CPC/2015 consagrou os princípios da celeridade, efetividade, economia processual e razoável duração do processo (artigos 4º e 6º, do CPC) como normas fundamentais de processo.

Por outro prisma, a movimentação da máquina judiciária para discutir um tema cognoscível incidentalmente atrasaria, sem qualquer motivo justo, o exercício da atividade jurisdicional e, logo, a satisfação do direito da parte, postergando a pacificação social almejada por todos os Jurisdicionados, bem como, por via indireta, afrontaria o princípio da inafastabilidade da jurisdição (artigo 3º, do CPC).

Outra situação que chama atenção, inclusive por não haver discussão doutrinária sobre o tema, é a hipótese em que há utilização de “sócio” oculto não na hipótese de sociedade empresária, mas em caso de empresa individual.

É importante lembrar que o empresário individual responde ilimitadamente pelas dívidas (não há personalidade jurídica própria), sendo que a pessoa física é a responsável direta pelas obrigações assumidas no exercício atividade empresarial.

Ou seja, uma pessoa é a efetiva sócia do empreendimento, porém inscreve um terceiro como o empresário individual. Assim, ao invés do real empresário ser responsabilizado pelas dívidas sociais, a responsabilidade recai para o terceiro ("sócio laranja"), o qual, na maioria das vezes, é pessoa insolvente e sem patrimônio hábil à satisfação do crédito.

Trata-se, portanto, de um ato simulado e fraudulento em relação aos credores da empresa individual, praticado no intuito de que empresário de fato não assuma os riscos da atividade empresarial.

O caso em comento é diferente da situação envolvendo o entendimento jurisprudencial no sentido de não ser possível o incidente de desconsideração para responsabilização de empresário individual (REsp 1355000/SP, rel. ministro MARCO BUZZI, 4ª TURMA, julgado em 20/10/2016, DJe 10/11/2016).

Isso porque, na hipótese comentada, não se objetiva atingir o empresário individual (o qual, por si só, é responsável pelas dívidas), mas sim o sócio oculto que se valeu fraudulentamente da empresa.

Isto é, a parte prejudicada não conseguirá atingir o patrimônio do empresário individual (oculto) sem que haja a responsabilização via decisão judicial reconhecendo a responsabilidade pela prática do ato fraudulento.

Defende-se que o incidente deve também ser aceito na hipótese demonstrada, não sendo necessário o ajuizamento de ação declaratória, até mesmo por razões de celeridade, efetividade, economia processual e pela razoável duração do processo, especialmente porque o procedimento comporta ampla instrução probatória (artigos 135 e 136, do CPC).

Lado outro, a finalidade do artigo 50, do CC (Disregard Doctrine), é impedir a utilização abusiva, simulada ou fraudulenta da empresa, senão vejamos estudo formulado pela professora Suzy Elizabeth Cavalcante Koury:

[…] "a Disregard Doctrine consiste em subestimar os efeitos da personificação jurídica, em casos concretos, mas, ao mesmo tempo, penetrar na sua estrutura formal, verificando-lhe o substrato, a fim de impedir que, delas de utilizando, simulações e fraudes alcancem suas finalidades, como também para solucionar todos os outros casos em que o respeito à forma societária levaria a soluções contrárias à sua função e aos principios consagrados pelo ordenamento juridico." (KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os Grupos de Empresas. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 86)

Assim, embora não se desconheça que o empresário individual não possua personalidade jurídica diferente de seu sócio, deve ser repelida também a utilização fraudulenta do exercício de atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços (artigo 966, do CC).

Neste viés, a técnica de desconsideração deve ser utilizada mesmo que seja necessário dar-lhe nova roupagem, com soluções jurídicas modernas e inovadoras, conforme consignado por este C. STJ:

"É possível coibir esse modo de atuação mediante o emprego da técnica da desconsideração da personalidade jurídica, ainda que, para isso, seja necessário dar-lhe nova roupagem. Para as modernas lesões, promovidas com base em novos instrumentos societários, são necessárias soluções também modernas e inovadoras. A desconsideração da personalidade jurídica é técnica desenvolvida pela doutrina diante de uma demanda social, nascida da praxis, e justamente com base nisso foi acolhida pela jurisprudência e pela legislação nacional. Como sói ocorrer nas situações em que a jurisprudência vem dar resposta a um anseio social, encontrando novos mecanismos para a atuação do direito, referida técnica tem de se encontrar em constante evolução para acompanhar todas as mutações do tecido social e coibir, de maneira eficaz, todas as novas formas de fraude mediante abuso da personalidade jurídica." (STJ – REsp: 1.259.020 SP 2010/0134557-7, relatora: ministra NANCY ANDRIGHI, data de julgamento: 9/8/2011, T3 – 3ª TURMA, data de publicação: DJe 28/10/2011)

No mesmo sentido, não permitir a instauração do incidente quando há discussão a utilização abusiva da atividade empresarial, desvalorizaria o próprio instituto do incidente de desconsideração (artigo 50, do CC, e artigo 133, §1º e §2º, além do artigo 134, do CPC), em evidente retrocesso jurisprudencial.

Isso porque, segundo este C. STJ, o incidente de desconsideração é um importante mecanismo de recuperação de crédito e de combate à fraude (independentemente de sua natureza), veja-se:

"De fato, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica se apresenta como importante mecanismo de recuperação de crédito, combate à fraude e, por consequência, fortalecimento da segurança do mercado, em razão do acréscimo de garantias aos credores, atuando, processualmente, sobre o polo passivo da relação, modificando ou ampliando a responsabilidade patrimonial." (STJ – REsp: 1729554 SP 2017/0306831-0, relator: ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, data de julgamento: 8/5/2018, T4 – 4ª TURMA, data de publicação: DJe 6/6/2018)

Tecidas estas considerações, conclui-se que o incidente de desconsideração deve ser utilizado de acordo com a interpretação teleológica do instituto, ainda que seja necessário dar roupagem inovadora em relação à sua aplicabilidade, ratificando-se a importância do instrumento no combate a fraudes, na recuperação de crédito e para a satisfação do direito posto em litígio, não devendo haver entendimentos restritivos e literais.

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