Opinião

Como o Direito Administrativo deve reagir às empresas de fachada nas licitações

Autor

  • Wesley Bento

    é advogado sócio do escritório Bento Muniz procurador do Distrito Federal pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em parceria Público-Privada e Concessões (Fesp-SP e FSE) e mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

25 de novembro de 2022, 20h32

A concessão de tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte tem fonte constitucional (artigo 146, III, d; artigo 179), exaustivo tratamento legal (LC 123/2006) e abrange procedimentos simplificados e vantagens tributárias, trabalhistas, societárias e administrativas, inclusive nas contratações com o Poder Público. O princípio constitucional da isonomia é seguramente um forte indutor dessa política de proteção e estímulo às pequenas empresas, aliado à realidade de que elas geram 70% dos empregos formais do país [1]

Em matéria de licitações, as vantagens competitivas envolvem o direito de adiarem a comprovação de regularidade fiscal e trabalhista, empate ficto, licitação exclusiva, compulsoriedade de subcontratação e estabelecimento de cotas.

O acesso a esse conjunto de benefícios, todavia, exige a configuração da sociedade dentro dos critérios que a qualificam como microempresa ou empresa de pequeno porte e que não se encerram no faturamento, mas pressupõem a não incidência em alguma das hipóteses dos incisos do §4º do artigo 3º da LC 123/2006. Esse conjunto de 11 incisos contempla as mais variadas hipóteses de desvirtuamento do instituto e mesmo assim não é suficiente para inibir a formação criativa de sociedades filhotes que formam grupo econômico com alguma ou algumas sociedades maiores e que podem ser manejadas eficientemente de forma a obter os benefícios licitatórios reservados, inclusive a partir de arranjos familiares que escamoteiam os reais sócios.

Sem incidir objetiva e formalmente em qualquer das hipóteses de exclusão, ainda que seus membros possam ter engendrado forma societária para  sem violar frontalmente a norma  aproveitar-se de suas fragilidades e participar de licitações que essencialmente visavam auxiliar empresas com fragilidade econômica, essas sociedades desafiam a reflexão sobre qual deve ser a reação do Direito Administrativo a essa realidade, abrangendo a perspectiva de inabilitação e de aplicação de sanção aos supostos infratores. 

O artigo 4º, II da Lei nº 9.784/99 impõe ao administrado, no processo administrativo, proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé. Mas constituem direitos do administrado, segundo a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário (artigo 3º, V); receber tratamento previsível (artigo 4º-A, I) e ser sancionado com base em termos subjetivos ou abstratos somente quando estes forem propriamente regulamentados por meio de critérios claros, objetivos e previsíveis (artigo 4º-A, II).

Esses postulados geram a expectativa de que o administrado não será surpreendido por interpretação extensiva em matéria de restrição de direitos, fora das balizas formalmente traçadas e que dirigiram a atuação e o planejamento prévio do particular. Em uma sociedade democrática, livre e civilizada, essas expectativas merecem proteção, mesmo porque decorrem da obrigação da Administração de agir com boa-fé e de não frustrar a confiança dos cidadãos, agindo com previsibilidade e respeito à segurança jurídica.

A segurança jurídica, a propósito, é princípio expresso na Lei do Processo Administrativo Federal (Lei nº 9784/99) e na nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), o que impõe sua aplicação a partir de comandos normativos claros, diretos e indeclináveis. Para se preservar um mínimo de segurança jurídica, havendo a compreensão de que esses artifícios societários são nocivos ao sistema de proteção às pequenas empresas, dever-se-ia alterar a norma legal para proscrever a participação de empresas integrantes de grupo econômico em licitações exclusivas ou de obter os benefícios correspondentes,  ou ao menos incluir essa restrição expressamente no edital de licitação, de forma a tornar previsível a vedação e, portanto, confirmar a má-fé do particular que insistisse em participar do certame, inclusive por aplicação do artigo 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com a redação que lhe deu a Lei n. 13.655/2018 [2].  

Ainda que sob outras luzes, o TCU (Acórdão nº 2992/2016-Plenário) admitiu a ausência de parâmetros legais válidos para punir essa prática, que reputou imoral, mas não uma "ilegalidade flagrante", optando apenas por alertar a jurisdicionada de que a conduta poderia vir a ser considerada fraude.

Ainda  que o Direito não deva prestigiar a esperteza voltada a se obter vantagem aparentemente indevida, tampouco há liberdade ao administrador para criar ou ampliar vedações legalmente predispostas, de modo a suprir lacunas legais e substituir o critério legislativo por um critério propriamente seu, intuindo o que a lei deveria ser, mas concretamente não é. Falta respaldo normativo para a inabilitação ou a punição de sociedades empresárias que, mesmo formando grupo econômico com empresas maiores cujo faturamento a desqualifique como destinatária da norma, participe de licitações exclusivas ou usufrua dos benefícios que seriam destinados apenas às empresas presumivelmente mais vulneráveis.


[1] Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) relativos ao mês de agosto/2022.

[2] Artigo 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais

Autores

  • Brave

    é advogado, procurador do Distrito Federal, sócio do escritório Bento Muniz Advocacia, pós-graduado pela PUC-SP e MBA em PPP e Concessões pela Fesp-SP e presidente do Conselho de Administração da DF Gestão de Ativos.

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