Opinião

Sociedade e captação de recursos por particulares que contratam com o Estado

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23 de novembro de 2022, 7h03

No Brasil, especialmente tendo em conta o atual momento de incentivo da atuação privada na prestação dos serviços públicos [1], investir em infraestrutura passa pela celebração de contratos de parceria com a iniciativa privada — geralmente contratos de concessão e contratos de parceria público-privada. A partir deles, a execução de serviços públicos passa a ser tarefa do particular, que deve financiar o empreendimento, assumindo os riscos a ele inerentes.

Nesse contexto, o objetivo do presente texto é averiguar a legalidade da constituição de sociedades em conta de participação com vistas a financiar o empreendimento por aqueles que celebram contratos de parceria com a administração. Isso, especialmente nos casos em que tal possibilidade não está expressamente prevista no edital e no contrato [2].

Antes de passar a essa análise, contudo, necessário tecer algumas considerações sobre a mutabilidade subjetiva dos contratos administrativos, que diz respeito a alterações no particular selecionado para contratar com a administração, e sobre o conceito e a natureza das sociedades em conta de participação.

Quanto ao primeiro ponto, vale observar que o objetivo da licitação é selecionar a melhor proposta, a proposta que apresenta mais vantagens para a administração e para a sociedade. Além disso, é preciso que aquele que apresentou a proposta demonstre possuir capacidade para executá-la, seja em termos financeiros ou técnicos. Por isso, o procedimento de contratação possui uma etapa em que se analisa a capacidade do particular executar o objeto do contrato que pretende celebrar com a administração.

Nos dizeres de Marçal Justen Filho, a habilitação "[…] consiste no conjunto ordenado de atos a apurar a idoneidade e a capacitação de sujeito para contratar com a Administração Pública". É nessa fase que a administração decide "[…] sobre a presença das condições do direito de licitar" [3].

Com efeito, se somente podem celebrar contratos com a administração aqueles que demonstrem possuir capacidade para tanto, de igual modo é necessário que no decorrer da execução contratual o particular mantenha essas condições de habilitação inalteradas. Há, inclusive, aqueles que equiparam essa peculiaridade ao caráter personalíssimo dos contratos privados [4], mas não parece ser esse o entendimento correto.

E isso principalmente porque, como já visto, o objetivo da licitação é selecionar a melhor proposta, e não o melhor particular, de modo que o interesse primordial do Estado não está vinculado às características subjetivas do licitante, mas à contratação da melhor proposta e de licitante idôneo que demonstre ser capaz de executá-la.

Portanto, não há motivos para se impedir de antemão toda e qualquer modificação contratual subjetiva. O que a Lei de Licitações veda, seja a antiga ou a nova, não é toda e qualquer espécie de modificação subjetiva, mas apenas as modificações societárias, finalísticas ou estruturais da empresa que de alguma forma restrinjam a sua capacidade executar o objeto do contrato da forma pactuada (artigo 137, inciso III, da Lei nº 14.133/2021, e artigo 78, inciso XI, da Lei nº 8.666/93).

À luz do exposto, podemos concluir que obedecidas as exigências de habilitação e, claro, em inexistindo à regular execução do contrato, o particular tem o direito de promover mudanças subjetivas na relação firmada com o Estado. Inclusive, essa alteração por vezes é necessária, especialmente tendo em vista o longo prazo pelo qual costumam viger os contratos de parceria. A atração de novos atores que investirão no negócio é, muitas vezes, uma ferramenta essencial à saúde financeira do concessionário, que não deve ser tolhida por capricho da Administração.

Em qualquer caso, o controle das alterações contratuais por parte da administração somente pode ser exercido nos limites necessários para garantir que o contrato seja regularmente executado. Isto é, alterações subjetivas do licitante só são relevantes para a Administração se e quando impactarem na execução do contrato. Alterações que não afetem a execução dos contratos são irrelevantes e não sofrer intervenção do poder público.

Esclarecidos esses pontos, necessário agora analisar o regime jurídico das sociedades em conta de participação, que são associações não personificadas "[…] cuja característica elementar é que toda atuação empresarial é desenvolvida pelo chamado sócio ostensivo, que conduzirá em nome próprio e sem qualquer limitação em suas responsabilidades os negócios da sociedade" [5]. Esclarece ainda Fábio Ulhoa Coelho:

"Um empreendedor (chamado sócio ostensivo) associa-se a investidores (os sócios participantes), para a exploração de uma atividade econômica. O primeiro realiza todos os negócios ligados à atividade, em seu próprio nome, respondendo por eles de forma pessoal e ilimitada. Os agentes econômicos que entabulam negociações com o sócio ostensivo não precisam saber, necessariamente, que a atividade em questão é explorada sob a forma de uma conta de participação" [6].

Como principais características dessa sociedade, temos: a) não possui personalidade jurídica própria (artigo 993 do CC); b) o exercício das atividades fica a cargo exclusivamente do sócio ostensivo (artigo 991 do CC); c) sua constituição independe de quaisquer formalidades e dispensa registro (artigos 992 e 993 do CC); d) as relações entre os sócios constitui-se em patrimônio especial e não gera quaisquer efeitos sobre terceiros (artigo 994 do CC). Como se vê, são tantas as peculiaridades que grande parte da doutrina nem sequer a considera uma sociedade propriamente dita, mas antes um contrato de investimento [7].

Seja como for, o ponto importante a ser destacado aqui é que a existência ou não de uma sociedade em conta de participação em nada altera o dever de o sócio ostensivo adimplir fielmente todas as obrigações que vier a constituir — a relação existente entre ele e os demais sócios não gera efeitos externos. Daí que a utilização da conta de participação cria dois feixes de relação que não se confundem. Um, envolvendo o sócio ostensivo, em que são centralizadas todas as obrigações negociais externas. Outro, que vincula apenas o sócio ostensivo com os demais sócios da conta de participação.

Considerando essas premissas, conclui-se que a celebração de sociedade em conta de participação por empresas que participam de negócios com a administração é legal. A existência de ajustes dessa natureza é, por si só, indiferente à administração, haja vista que o contratante, ao figurar como sócio ostensivo da sociedade, será o único responsável por executar o contrato. Aliás, nem sequer há o que se falar em mutação subjetiva do contrato nesse caso.

Importa observar que a conta de participação não alterará em nada a composição do capital social do sócio ostensivo e nem modificará a responsabilidade assumida por ele. Em termos simples, o Poder Concedente não será em nada afetado pela constituição da sociedade, até mesmo porque os demais sócios não participarão do empreendimento público. A relação entre os sócios é puramente interna, não produzindo efeitos externos. Desta forma, conclui-se que a celebração de contrato em conta de participação, nos termos em que ela é disciplinada no Código Civil, constitui operação que não causa prejuízos à Administração e que não pode ser por ela controlada.

A única ressalva que merece ser feita no que se refere à legalidade da utilização da sociedade em conta de participação diz respeito a casos em que além das cláusulas típicas desse contrato, criem-se outros compromissos entre as empresas, que impactam em temas sensíveis ao Poder Concedente. Nesse sentido, não se poderia utilizar a sociedade em conta de participação como instrumento para dissimular transferências de controle ou implementar outros resultados que devem ser submetidos ao escrutínio da administração. Com efeito, enquanto negócio atípico, pode ser que haja outras disposições nesses contratos que criem obrigações distintas daquelas previstas em Lei, como, por exemplo, o exercício de poderes de controle por meio de direitos de voto por parte dos sócios-participantes [8], hipótese em que as modificações devem ser aprovadas pela administração, sob pena de ilegalidade.

Ou seja, a sociedade em conta de participação não pode servir como instrumento para ocultar influência dos participantes na condução da concessionária. A direção do negócio deve ser integralmente levada a efeito pela sócia ostensiva, que foi a selecionada pela administração para gerir o contrato. Respeitados esses limites, a conta em participação é um meio idôneo de captação de investimentos, não existindo motivo relevante que justifique a necessidade de levar o ajuste ao conhecimento do poder público.

Em uma palavra final, há uma diferença entre sociedade em conta de participação constituída exclusivamente para fins de captação de recursos financeiros e sociedade em conta de participação na qual os sócios participantes estão envolvidos na execução do contrato. A primeira não só é legal como pode ser constituída independentemente de conhecimento por parte a administração, ao passo que a segunda depende de autorização do poder público para existir porque implica em uma modificação subjetiva que impacta na execução do contrato.


[1] Basta ver, por exemplo, a abertura do mercado de saneamento básico ao investimento privado, promovida pela Novo Marco Legal do Saneamento.

[2] Por óbvio que se existir essa autorização no edital e no contrato, o questionamento perde o sentido.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo: Thomsom Reuters Brasil, 2021, p. 773.

[4] Contratos personalíssimos são aqueles em que a escolha do contratado se deu por conta dos seus elementos personalíssimos, que vinculam o contratado de modo indelével à satisfação da obrigação.

[5] GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazário de. Legalidade da sociedade em conta de participação como técnica de captação de recursos para execução de contratos de parceria com a Administração Pública. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 13, nº 25, p. 59-81, 22 dez. 2021. Disponível em http://www.abdconstojs.com.br/index.php/revista/article/view/354. Acesso em 29 set. 2022.

[6] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 447.

[7] Nesse sentido, ver BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 113-115. De qualquer forma, trata-se essa de discussão irrelevante para os objetivos do presente texto, motivo pelo qual não será objeto de maiores detalhamentos.

[8] GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazário de. Legalidade da sociedade em conta de participação como técnica de captação de recursos para execução de contratos de parceria com a Administração Pública. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 13, nº 25, p. 59-81, 22 dez. 2021. Disponível em http://www.abdconstojs.com.br/index.php/revista/article/view/354. Acesso em 29 set. 2022.

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