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Redesenho financeiro do país: meta primária versus meta nominal

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

22 de novembro de 2022, 8h00

Vou tentar explicar os dois mecanismos para quem não é afeito a eles, embora ambos sejam de fácil compreensão.

Spacca
Resultado nominal, que pode ser positivo (superavit) ou negativo (deficit), decorre da operação matemática de receitas menos despesas. É o que ocorre nas famílias ou empresas, nas quais se computa tudo que é recebido (receitas) menos tudo que é gasto (despesas), sendo a apuração final dessa singela operação o resultado nominal existente.

Resultado primário, que também pode ser positivo (superavit) ou negativo (deficit), decorre da apuração das receitas menos as despesas não-financeiras. Assim, computa-se tudo que é recebido (receitas) menos tudo que é gasto (despesas), porém  e esse é o detalhe importante , não estão nessa conta as despesas financeiras, isto é, os juros e as renegociações da dívida. Apuram-se dois resultados: o primário e, só após, é que se identifica o verdadeiro resultado nominal. Logo, pode ocorrer que ocorra um superavit primário e um déficit nominal, tão logo sejam incorporadas as operações financeiras na conta. Essa tem sido a fórmula usada pelo governo brasileiro.

Até aqui pode-se pensar que se trata apenas de duas maneiras de visualizar o resultado contábil das operações privadas (famílias e empresas, vinculadas ao resultado nominal) em contraponto ao do governo (resultado primário). Porém a diferença primordial está na adoção do parâmetro de resultado primário na formulação das políticas públicas.

Embora os dois métodos sejam expostos pelo governo, o sistema de resultado primário adotado pelo governo se constitui em sua meta, raramente sendo observado o resultado nominal. Um exemplo: em agosto de 2022 o governo brasileiro teve deficit primário de R$ 30,3 bilhões, porém o deficit nominal era previsto em mais que o dobro, R$ 65,9 bilhões. O resultado é que financeiramente não estamos apenas mal (deficit primário de R$ 30,3 bilhões), na verdade, estamos muito mal (deficit nominal de R$ 65,9 bilhões), pois a conta verdadeira (resultado nominal) aponta para um buraco muito maior. Essa diferença é muito pouco observada pela sociedade, que é inundada de informações acerca do resultado primário das contas públicas; afinal, esta é a meta do governo.

Ao usar a métrica de resultado primário para sua política econômica, o governo deixando de lado a conta final, o resultado nominal. Dessa forma, pode-se até obter superavits primários, mas, na realidade, permanecermos no negativo, quando se agrega os gastos financeiros. A estimativa em agosto de 2022 era de um deficit nominal de 8% do PIB no ano corrente, em contraposição ao projetado de 4,4% do PIB nos 12 meses anteriores. Esse desvio gerou uma projeção de aumento da dívida de R$ 250 bilhões em um ano  ou seja, o déficit nominal (real) das contas públicas é muito maior do que se propaga.

Com isso, o governo age de forma descalibrada, pois ao estabelecer como meta o resultado primário, tira de sua mira a importante questão da dívida pública, que só aparecerá quando computado o nublado resultado nominal. Assim, a dívida pública foi deixada de lado enquanto meta a ser controlada pelo governo.

Aqui vale a explicação: dívida corresponde ao mesmo tempo em uma despesa adiada e uma receita antecipada. Despesa adiada porque o pagamento do que se obteve como empréstimo será postergado, o que corresponde ao mesmo tempo uma receita antecipada, porque o dinheiro emprestado entrou desde logo nos cofres públicos  embora seu pagamento venha a ocorrer no futuro. Isso revela o caráter intergeracional da dívida, pois se compromete as futuras gerações, que terão que pagar tributos para quitar uma dívida correspondente a um dinheiro que ingressou nos cofres públicos muito antes de seu nascimento, e já foi gasto.

Feitas estas considerações, e demonstrado onde está o erro, que está em ter por meta a obtenção de superávits primários, o que deve ser feito?

Deve-se observar algumas regras constitucionais importantes: 1) a regra de ouro (artigo 167, III), que determina que só seja feita dívida  para investir; 2) e a da sustentabilidade da dívida pública (artigo 163, VIII). Deve-se considerar também um fato novo, que é a autonomia do Banco Central, impropriamente denominada de independência, que possui dentre seus objetivos "fomentar o pleno emprego" (Lei Complementar 179, artigo 1º, parágrafo único).

Com isso, o foco no redesenho financeiro em nosso país deve: 1) buscar metas nominais positivas e não singelas metas de resultado primário positivo. Claro que equilibrar isso vai demorar muitos anos, mas dará a necessária transparência republicana às contas públicas e permitirá aos agentes econômicos maior previsibilidade e segurança para seus investimentos; 2) controlar a dívida pública, o que está embaçado em face da metodologia atual; 3) manter o controle da despesa pública, revisitando os gastos atuais, através de avaliação e gerenciamento das políticas públicas; 4) e também, o que é igualmente importante, estabelecer um piso de investimentos públicos.

Como fazer tal redesenho financeiro? 1) mudar a meta financeira da busca de superávits primários para superávits nominais, conforme já havia apontado em 2014; 2) a dívida da União e a dos demais entes federados devem ser submetidas a limites e metas claras, revisadas periodicamente; 3) revisitar o gasto público, em especial o das políticas que envolvam a assistência social, a fim de que tenham mais eficiência e atinjam a quem delas necessita; e 4) jamais perder de vista os investimentos, motor da economia em países como o nosso.

Este roteiro parece uma receita de bolo, e, na verdade, o é. O problema está nos detalhes de sua implementação, pois é necessário não apenas descrever em normas jurídicas essa receita (existem receitas mal escritas), mas também contar com cozinheiros eficientes em sua leitura e execução (quem vai fazer a receita), a fim de que o bolo não queime. Não vamos nos iludir: além de não ser fácil, isso não é tarefa para um governo, mas para todo o país, durante muito tempo.

Em apertada síntese: deve-se limitar a dívida e não o gasto, que, contudo, deve ser aperfeiçoado, para que seja dirigido a quem dele necessita, bem como criar um piso de investimentos em capital, inclusive em capital humano, buscando o efetivo desenvolvimento equânime em nosso país  que faz parte da meta civilizacional prescrita no artigo 3º de nossa Constituição.

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    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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