Diário de Classe

Entre máscaras e traves — a salvação do mundo por meio do Direito

Autor

  • Óliver Vedana

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos bolsista Proex/Capes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos especialista em Direito Processual Civil e pós-graduando em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica ambos pela ABDConst.

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19 de novembro de 2022, 8h00

O Direito pode salvar o mundo?
Foi essa a pergunta que Lenio Streck fez a Luigi Ferrajoli, no 1º Seminário Internacional Estado, Regulação e Transformação Digital, evento presencial promovido pelo centro universitário Univel em parceria com a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e a Faculdade de Direito de Vitória (FDV), em Cascavel (PR), no qual o jurista italiano defendeu a ideia de uma Constituição da Terra [1]. O painel de encerramento do 5º Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito, realizado no último dia 26 de outubro, composto pelos professores ministro Luís Roberto Barroso, Juraci Mourão Lopes Filho e Lenio Streck, teve seu tema principal definido a partir da pergunta: "o Direito pode salvar a democracia?".

O Direito sempre teve um papel de protagonismo nos cenários evolutivos mundiais, o que nos leva a acreditar que, mesmo que não seja O "salvador do mundo", e se houver salvação, seu papel certamente não será de coadjuvante.

A questão, no entanto, parece ser: O Direito está pronto para "salvar o mundo ou a democracia"? E aqui, para que delimitemos nosso ponto argumentativo, e não caiamos nas tão frequentes generalizações ou interpretações literais, é preciso deixar claro que a expressão salvar o mundo é simbólica. E o cenário escolhido para o debate é o brasileiro.

Os movimentos mais recentes do Direito pátrio que materializam essa tentativa de salvamento, podem ser observados por meio de vários fenômenos, como a tentativa da criação de um sistema de precedentes que traga estabilidade e segurança jurídica para a jurisdição, a criação de filtros que aumentam — ao menos pretensamente — a otimização das cortes superiores, como a repercussão geral e a demonstração de relevância. Poderíamos destacar, também, o crescente movimento consequencialista das decisões, entre tantos outros que buscam salvar algo, ou alguém, muitas vezes à custa do próprio Direito. Porém, a ideia, aqui, não é apontar e desenvolver as críticas sobre cada uma delas, mas tão somente alocar o leitor para essa metáfora do salvar o mundo no contexto tupiniquim.

Enfim, há muitas formas/tentativas para salvar o mundo por meio do Direito. Na conjuntura atual, talvez tenhamos que dar um passo atrás, para dar "dois" para frente.

Entre máscaras e traves
Quando entramos num avião, antes da decolagem, a equipe de bordo passa sempre uma série de instruções. A que mais importa, para a explicação da metáfora agora proposta, é a da máscara de oxigênio, utilizada em caso de despressurização. A orientação é bem clara: em caso de despressurização, antes de auxiliar os demais, primeiro coloque a sua máscara, mesmo que o passageiro ao seu lado seja uma criança. Coloque a sua máscara e, aí sim, ajude o próximo. Para utilizar uma expressão dworkiniana — ou "fator tubos-tigre" [2] — é uma questão de princípio da segurança.

Ao Direito cabe muito bem essa metáfora. Antes de "salvar o mundo" e a "democracia", é preciso que o Direito salve a si. Em Mt 7, 3-5, o princípio é o mesmo: "tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão" [3].

As traves não são poucas. De há muito o professor Lenio Streck as denuncia, denominando-as de predadores do Direito, como a moral, a economia e a política [4]. São essas traves que predam a autonomia do Direito e dão azo a fenômenos mais complexos e destrutivos, como o ativismo judicial [5].

A máscara de oxigênio que poderá nos salvar, no Direito, diante da despressurização enquanto as traves se mantêm intocáveis, é a filosofia. E, aqui, a filosofia é no Direito para que se diferencie da filosofia do Direito, e, assim, assumamos a complexidade do fenômeno jurídico.

Essa expressão, cunhada por Streck, parte da ideia de que o Direito não é mera racionalidade instrumental, ou seja, fazer filosofia no Direito é realizar um pensamento contínuo dos conceitos jurídicos fundamentais, e, a partir disso, problematizar seus limites e demarcar o seu campo correto de aplicação, e não apenas meramente apelar para a analítica da linguagem ou para a conclusão de que os problemas do Direito estejam voltados para a mera interpretação de textos jurídicos [6].

Em síntese, a filosofia no Direito é capaz de oxigenar em tempos de despressurização pois ela pressupõe a construção de possibilidades (condições de possibilidade) para a correta alocação do fenômeno jurídico, a qual, como lembra bem Streck, "na atual quadra da história, não pode mais ser deslocado de um contexto de legitimação democrática" [7].

Mario Ariel Gonzalez Porta diz em seu livro que "quando não há problema, tampouco há filosofia" [8], o que podemos concluir que, onde há problemas ("no caminho da salvação"), há filosofia. Nesse sentido, precisamos colocar nossas máscaras de oxigênio para enxergar e tirar as traves dos nossos olhos, e, a partir disso, nos preocuparmos com os ciscos que nos cercam, ou com o salvamento do mundo.

PS: Dia 21 de novembro é o aniversário do professor de todos nós, Lenio Streck. Fica aqui uma singela homenagem àquele que tem, diariamente e de há muito, mostrado as traves e oxigenado o Direito brasileiro em tempos de despressurização. Aquele que de tanto caminhar, se tornou caminho. O barco que nos tem levado em busca de nossas ilhas desconhecidas. Saudações ao maestro!

 


[2] STRECK, Lenio. Para ministro do STF, julgamentos não podem ser conforme a cabeça do juiz! ConJur, São Paulo, 16 jul. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jul-16/senso-incomum-ministro-stf-julgamentos-nao-podem-conforme-cabeca-juiz. Acesso em: 13 nov. 2022.

[3] Frederico Lourenço, em sua tradução da bíblia cristã, direta do grego, referencia os termos "cisco" e "trave" da seguinte maneira: "'cisco': a palavra karphos significa 'palhinha', 'raminho', 'pauzinho seco'. A trave (dokós) é um termo antigo, que já é usado por Homero como referência à arquitetura do palácio de Ulisses em ítaca (Odisseia 22, 176)". (BÍBLIA, volume 1: Novo Testamento ; os quatro Evangelhos / tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. – 1ª ed. São Paulo: Companhia das letras, 2017. p. 82.

[4] Ver o verbete Autonomia do Direito em: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 25-33.

[5] Sobre o tema, ver: TASSINARI, Clarissa. Ativismo judicial: uma análise da atuação do Judiciário nas experiências brasileira e norte-americana. 2011; e ABBOUD, Georges; MENDES, Gilmar Ferreira. Ativismo judicial: notas introdutórias a uma polêmica contemporânea. Revista dos tribunais, v. 1008, 2019.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 501-502.

[7] Ibid. p. 502.

[8] PORTA, Mario Ariel González. A filosofia a partir dos seus problemas. 4ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. p. 28.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito Público pela Unisinos Bolsista Proex/Capes, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos Especialista em Direito Processual Civil e em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica, ambos pela ABDConst.

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