Opinião

Cláusula de incomunicabilidade e regime da comunhão parcial de bens

Autor

  • Karolainy do Nascimento Coelho

    é advogada pós-graduanda em Direito Processual Civil pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Cesusc) integrante do grupo de pesquisa em Família e Sucessões (GFAM) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/CNPQ) e membro Consultivo da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB/SC.

17 de novembro de 2022, 13h04

A restrição à propriedade pode ocorrer de maneira voluntária e legal, através da imposição da lei. A título exemplificativo desta última, citam-se os direitos de vizinhança, o usucapião e a desapropriação. Já a restrição voluntária, como o próprio nome já diz, é um ato de liberalidade do próprio titular da propriedade.

Outrossim, as cláusulas restritivas de propriedade voluntárias são gravames impostos aos bens —imóveis e móveis não perecíveis, como obras de artes  dispostos pelo testador ou doador. São elas as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade.

Admitem-se as suas incidências tanto nos bens doados em vida, como também naqueles dispostos na herança testamentária e legítima. Porém, neste último caso, a imposição das cláusulas fica condicionada à justa causa defendida no testamento, nos termos do artigo 1.848, do Código Civil [1].

Neste ponto, importante frisar que apenas nos negócios jurídicos gratuitos se admitem tais formas de limitações sem justificativa, as quais precisam ser devidamente averbadas no registro imobiliário do bem para que tenham eficácia jurídica [2]. Logo, pode o testador gravar os bens deixados, tal qual o doador em relação às liberalidades entre vivos, com cláusulas que os tornam inalienáveis, impenhoráveis e incomunicáveis [3], desde que observadas as limitações elencadas no Código Civil de 2002.

Fazendo uma breve distinção entre cada cláusula, César Fiuza muito bem explica que, por força da inalienabilidade, fica o bem protegido do próprio titular, que não o poderá alienar, enquanto que na impenhorabilidade a proteção do bem é contra os credores do titular, que não o poderão executar por dívidas. Por fim, pela incomunicabilidade, o bem fica protegido do cônjuge do titular [4].

Mais especificamente sobre a cláusula de incomunicabilidade, sabe-se que ela visa a proteção de determinado bem contra o cônjuge do titular, impedindo que o bem seja partilhado com este, independente do regime de bens do casamento ou da união estável. Nas palavras de Carlos Alberto Maluf, ela tem o intuito de proteger e garantir o herdeiro contra as incertezas do futuro [5].

Nesse diapasão, Sílvio de Salvo Venoso defende que, temendo o testador pelo casamento do herdeiro, seja ele já existente quando da elaboração do testamento, ou em uma futura união, ainda desconhecida daquele, a imposição da cláusula de incomunicabilidade assegura-o de que os bens assim gravados não se comunicarão ao cônjuge do herdeiro. Desse modo, exaurido o casamento, independente do regime de bens, o bem clausulado não concorre para a apuração da meação [6].

Em que pese muito se discuta se a cláusula de incomunicabilidade atrai forçosamente os outros dois gravames, vez que, o proprietário do bem clausulado, se assim desejasse, poderia aliená-lo e dividir o dinheiro com o cônjuge, ou mesmo penhorar o bem para saldar uma dívida contraída pelo consorte, certo é que a doutrina e a jurisprudência majoritária concordam que a imposição isolada da cláusula de incomunicabilidade não atrai a de inalienabilidade. Na lição de Venoso:

"A imposição isolada dessa cláusula não impede a alienação, de modo que a intenção do legislador pode facilmente ser contornada, uma vez que o produto da venda será fatalmente aproveitado pelo casal, se não houver sub-rogação da cláusula em outro bem. Com essa cláusula isolada, não se pode presumir a de inalienabilidade se não vier expressa no testamento (ou na doação). Pode o testador evitar esse óbice impondo essa cláusula sob certo termo, ou determinando a conversão em determinados bens, em caso de alienação [7]."

Necessário falar, também, de um dos assuntos mais debatidos envolvendo a cláusula de incomunicabilidade, que é a exigência de justa causa para sua imposição, a teor do que prescreve o artigo 1.848, do Código Civil. Tal exigência foi elaborada pelo legislador, a fim de impedir que a restrição à legítima ocorra por motivo egoísta, entretanto pode ser motivo de verdadeiro desentendimento familiar.

Percebe-se, portanto, que a exigência de justa causa, além de ser extremamente vaga, pode trazer inúmeros problemas familiares. Adepto ao mesmo entendimento, o Projeto de Lei nº 699/2011 propôs uma nova redação para o artigo 1.848, com o objetivo de retirar a exigência de justa causa para a imposição da cláusula de incomunicabilidade.

Ainda sobre a exigência prevista no artigo 1.848, do Código Civil, cumpre salientar que a justa causa, só se aplica às cláusulas restritivas impostas sobre os bens da legítima. Se o testador não tem herdeiros necessários, ou se está dispondo sobre bens de sua metade disponível, pode estabelecer, livremente, as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e de incomunicabilidade [8].

Por fim, importante destacar que a cláusula de incomunicabilidade pode estender-se aos frutos do bem gravado, desde que expressamente previsto pelo doador ou testador. Segundo a jurisprudência, tal possibilidade ocorre por ausência de vedação legal em sentido contrário, bem como diante do princípio da autonomia de vontade, razão pela qual o Exmo. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no julgamento do Recurso Especial nº 1.164.887 – RS, concluiu em seu voto "ser possível estabelecer a incomunicabilidade de parte ou de todos os frutos originados de determinados bens, haja vista tratar-se de matéria que desafia interpretação restritiva" [9].

No que diz respeito às consequências da cláusula de incomunicabilidade no regime da comunhão parcial de bens, necessário tecer alguns comentários. Isso porque, após a entrada em vigor da Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77), o referido regime passou a ser o regime legal e, neste, já estão excluídos da comunhão os bens que cada cônjuge possuía ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento por doação ou sucessão e os sub-rogados em seu lugar (artigo 1.659, inciso I, do CC/2002).

Logo, sendo a comunhão parcial de bens o regime legal, tanto no casamento quanto na união estável, não havendo convenção de regime diverso, este é o que vigorará, salvo se contraído em inobservância das causas suspensivas, elencadas no artigo 1.523 do Código Civil, ou quando um dos nubentes for maior de 70 anos e em todos os casos de pessoas que dependam de suprimento judicial. Em tais hipóteses observa-se a incidência do regime da separação de bens, nos termos do artigo 1.641 do Código Civil.

Para entender a partilha de bens em cada regime, é necessário levar em conta os bens que cada cônjuge possuía antes do casamento/união estável e os bens que foram adquiridos na constância do relacionamento. Nesse último caso, é importante averiguar, ainda, se o bem foi adquirido de maneira onerosa ou gratuita.

Com relação aos bens adquiridos anteriormente ao casamento, é incontroverso que no regime da comunhão parcial de bens estes não se comunicam ao outro consorte, por se tratarem de bens próprios. Portanto, havendo a dissolução do casamento, os bens que cada cônjuge já possuía ao casar são excluídos da comunhão. De igual modo, considera-se bem próprio e, destarte, não partilhável no regime da comunhão parcial de bens, todo bem que for adquirido por um dos cônjuges de maneira gratuita, ou seja, por doação ou sucessão.

Nesse sentido, o artigo 1.659 do Código Civil elenca os bens que são excluídos da comunhão, sendo eles, entre outros, aqueles que os cônjuges possuíam antes do casamento e os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares.

No que diz respeito aos bens adquiridos em sub-rogação a um bem particular do cônjuge, cumpre esclarecer que tal sub-rogação só se dá até o limite do valor alcançado com o bem sub-rogado, comunicando-se o excesso. Logo, se um dos cônjuges já possuía um imóvel de R$ 150 mil, vendendo-o pelo mesmo valor e, na sequência, adquirindo com o produto da venda um novo imóvel por R$ 200 mil, o valor injetado das economias conjugais para completar os cinquenta mil faltantes serão partilhados. Nesse caso, a sub-rogação só se dá até o valor de R$ 150 mil, comunicando-se os R$ 50 mil excedentes.

Sobre o assunto, convém lembrar que a sub-rogação precisa ser comprovada de modo seguro pelo cônjuge que alega a substituição do bem particular por outro, de modo que uma simples declaração não é o suficiente para fazer prova. Nesse sentido, alerta o professor Rolf Madaleno:

"É ônus de quem alega comprovar a efetiva sub-rogação, 131 cuja exceção não pode ser aleatória, por mera e destoada referência temporal, sendo preciso demonstrar de modo seguro a venda de bem particular e sua efetiva sub-rogação no reemprego do numerário do bem vendido, com mostra do nexo causal entre a venda de um bem particular e incomunicável e a compra de outro com a subrogação do preço, devendo o interessado ter a cautela de documentar a sua sub-rogação, 132 e não irá cometer nenhum excesso se tiver o cuidado de mandar consignar, por exemplo, na escritura de compra de bem imóvel sub-rogado, estar se utilizando de recursos oriundos da venda de bem próprio, ou transferindo este bem particular como parte do preço do bem sub-rogado, em contrato de permuta, não se afigurando em nenhuma demasia que o cônjuge adquirente de bem próprio e subrogado peça ao consorte que confirme na escritura pública a origem privativa dos recursos para a aquisição do imóvel sub-rogado, para dessa forma manter incólume o seu patrimônio existente antes das núpcias, como expressamente prevê o Código Civil espanhol no artigo 1.324" [10].

Igualmente, ressalta Maluf sobre a aquisição de um imóvel com o produto da venda de um outro bem gravado com a cláusula de incomunicabilidade. Para ele, deve-se fazer constar na escritura de compra e venda que o imóvel foi adquirido com o dinheiro da venda de um bem incomunicável, a fim de excluí-lo, portanto, da comunhão e evitar futuro problema numa eventual separação [11].

Assim, salvo os bens elencados no artigo antecedente, que são excluídos da comunhão, ou seja, aqueles que integram o patrimônio próprio de cada cônjuge, considera-se patrimônio comum (aquestos) os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento e, portanto, independente de quem comprou/registrou o bem, o outro cônjuge possui direito à meação, cabendo, consequentemente, a sua partilha no percentual de 50% para cada. Entram ainda na comunhão, segundo o artigo 1.660 do Código Civil:

"Artigo 1.660. Entram na comunhão:
I – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges;
II – os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior;
III – os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges;
IV – as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge;
V – os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão."

Dessa forma, importante destacar que, ainda que os bens recebidos por doação ou sucessão somente por um dos consortes sejam excluídos da comunhão, os seus frutos se comunicam [12]. Inclusive, segundo o entendimento jurisprudencial e doutrinário, ainda que o bem esteja gravado com cláusula de incomunicabilidade, tal gravame estende-se aos frutos somente mediante previsão expressa no instrumento de doação ou testamento.

Outrossim, aos cônjuges casados pelo regime da comunhão parcial de bens é exigida a outorga conjugal para alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis, assim como prestar fiança ou aval e fazer doação dos bens comuns, que neste caso consoante visto anteriormente correspondem aos adquiridos onerosamente na constância da conjugalidade. No que diz respeito à necessidade de outorga marital para alienação dos bens, Maluf afirma não fazer sentido exigir a outorga quando o bem é clausulado com incomunicabilidade e que deveria ser incluída tal exceção na legislação, por tratar-se de bem exclusivo do outro cônjuge [13].

Na óptica de Maria Berenice Dias, "a comunhão do patrimônio comum atende a certa lógica e dispõe de um componente ético: o que é meu é meu, o que é teu é teu e o que é nosso, metade de cada um" [14]. A fim de exemplificação, imagine-se a seguinte situação: "A" adquire uma casa enquanto solteiro, vindo, na sequência, a casar-se com "B" pelo regime da comunhão parcial de bens. Durante o casamento, "A" adquire um veículo e um apartamento, ambos de maneira onerosa, sendo registrados somente em seu nome. Além disso, alguns anos após o casamento, o genitor de "A" lhe doa um sítio.

Levando em consideração tal caso, podemos dizer que o patrimônio particular de "A" é composto pela casa e pelo sítio, pois aquela foi adquirida antes do casamento e este foi recebido em doação. Já o veículo e o apartamento, em que pese estarem registrados em nome de apenas um dos cônjuges, constituem patrimônio comum, já que adquiridos na constância do casamento por título oneroso. Portanto, "B" tem direito à meação do veículo e ao apartamento.

Nota-se que independentemente de o sítio doado pelo genitor de "A" ser ou não clausulado com incomunicabilidade, o bem já não seria partilhado em razão do regime de bens incidente na relação conjugal.

Por outro lado, se no lugar de um sítio, o genitor de "A" tivesse lhe doado uma quantia em dinheiro, ainda que na Escritura Pública de Doação houvesse a cláusula de incomunicabilidade, sendo feita uma aplicação bancária que rendessem juros mensais à "A", este valor recebido mensalmente à título de juros, seria partilhável com "B". Igualmente se "A" alugasse o sítio e recebesse uma contraprestação por isso, por tratar-se de rendimentos.

Em compensação, se na referida escritura constasse que a cláusula de incomunicabilidade se estende também aos frutos e rendimentos, então aí sim estaria protegido o patrimônio de "A" de seu cônjuge ou companheiro, inclusive eventuais frutos e rendimentos que o bem doado lhe rendesse.

Dessa forma, a existência da cláusula de incomunicabilidade em um bem, visando apenas a sua não comunicação ao outro cônjuge em um eventual divórcio ou dissolução de união estável mostra-se redundante, já que no regime da comunhão parcial de bens, os doados ou recebidos por sucessão não são partilháveis. De outro modo, quando a cláusula de incomunicabilidade prevê a sua extensão aos frutos do bem gravado, percebe-se sua utilidade e importância, pois como visto, mesmo os frutos dos bens próprios são partilhados no regime da comunhão parcial de bens.


[1] BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Brasília,

[2] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: direito das coisas, direito autoral, volume 4. [livro eletrônico]  2. ed.  São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 34.

[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil  Vol. VI / Atual. Carlos Roberto Barbosa Moreira.  24. ed. — Rio de Janeiro:Forense, 2017, p. 246.

[4] FIUSA, César, Direito Civil [livro eletrônico]: curso completo  2ª ed. — São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 569.

[5]MALUF, Carlos Alberto Dabus. Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e Impenhorabilidade.  5. ed.  São Paulo: YK, 2018, p. 51.

[6] VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado — 4. ed.,  São Paulo: Atlas, 2019, p.  3.305.

[7] Idem.

[8] VELOSO, Zeno Augusto Bastos, Código Civil comentado — 8. ed. de acordo com a Emenda Constitucional nº 66/2010 e as Leis nº 12.344/2010, nº 12.375/2010, nº 12.376/2010, nº 12.398/2011, nº 12.399/2011, nº 12.424/2011, nº 12.441/2011 e nº 12.470/2011  São Paulo: Saraiva, 2012. p. 968.

[9] STJ, REsp 1164887 / RS. RECURSO ESPECIAL 2004/0119745-4, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, T3  TERCEIRA TURMA julgado em 24/04/2014, publicado em 29/04/2014.

[10] MADALENO, ROLF. Direito de Família  8. ed., rev., atual. e ampl.  Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 971.

[11] MALUF, Carlos Alberto Dabus, op. cit., p. 57

[12] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias.  14. ed. rev. ampl. e atual. — Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p. 703.

[13] MALUF, Carlos Alberto Dabus, op. cit., p. 56

[14] DIAS, Maria Berenice. op. cit., p. 703.

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    é advogada, pós-graduanda em Direito Processual Civil pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Cesusc), integrante do grupo de pesquisa em Família e Sucessões (GFAM) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/CNPQ) e membro Consultivo da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB/SC.

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