Opinião

Responsabilidade social na ordem do dia

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11 de novembro de 2022, 14h11

No último dia 7, o Lide Rio de Janeiro, Grupo de Líderes Empresariais que reúne executivos dos mais variados setores em diversos países para debater soluções integradas de fomento à livre iniciativa e ao desenvolvimento econômico e social, realizou um evento para discutir o tema da responsabilidade social.

Spacca
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O evento, sob a coordenação acadêmica da FGV Conhecimento, contou com a presença do ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, além de representantes legislativos do Rio de Janeiro, do governo estadual e municipal, autoridades, empresários e lideranças do assunto.

Nessa oportunidade, abordei o tema da responsabilidade social a partir das seguintes perspectivas: dos princípios norteadores sobre o assunto, do Projeto de Lei Complementar nº 108 de 2022, que estabelece normas voltadas à responsabilidade social na elaboração, condução e aplicação de políticas públicas e da contribuição do Judiciário nas ações de responsabilidade social. Tratarei das duas primeiras abordagens neste artigo.

Segundo estudo da FGV Social, "o contingente de pessoas com renda domiciliar per capita até 497 reais mensais atingiu 62,9 milhões de brasileiros em 2021, cerca de 29,6% da população total do país. Este número de 2021 corresponde a 9,6 milhões a mais que 2019, quase um Portugal de novos pobres surgidos ao longo da pandemia. A pobreza nunca esteve tão alta no Brasil quanto em 2021, perfazendo uma década perdida" [1].

Em 2022, o STF determinou que o governo federal implementasse o pagamento do programa de renda básica de cidadania para os brasileiros em situação de pobreza e extrema pobreza, com renda per capita inferior de R$ 89 a R$ 178, respectivamente. Na sessão virtual encerrada em 26 de abril deste ano, o Plenário julgou parcialmente procedente o Mandado de Injunção 7.300 [2] e reconheceu que houve omissão na regulamentação do benefício, previsto na Lei nº 10.835 de 2004.

Há ainda em tramitação na Suprema Corte outra demanda muito interessante, com audiência pública já designada. O ministro Alexandre de Moraes pediu informações ao presidente da República, aos governadores e aos prefeitos das capitais sobre a situação da população em situação de rua. Os dados subsidiarão a análise das medidas cautelares formuladas na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 976 [3], em que são pedidas providências para minorar as "condições desumanas de vida" dessas pessoas.

A redução da pobreza consta também no normativo que instituiu o Auxílio Brasil, por meio da Lei nº 14.284 de 2021. Em 13 de julho, foi aprovada a PEC nº 15 de 2022, que decretou estado de emergência e aprovou os demais auxílios.

Em 2022, foram gastos mais de R$ 100 bilhões do orçamento do governo federal para o Auxílio Brasil e os demais auxílios (gás, caminhoneiros, dentre outros).

De outra parte, há também um microssistema jurídico visando a recuperação econômica e estimulando o empreendedorismo. Com este escopo, cabe citar a Lei nº 13.874 de 2019, que institui a declaração de direitos da liberdade econômica; a Lei nº 14.112 de 2020, que previu aspectos da recuperação de empresas e recuperação de créditos; a Lei nº 14.181 de 2021, que tratou sobre o superendividamento; Lei nº 14.133 de 2021, o novo estatuto das licitações e contratações públicas; a Lei Complementar nº 182 de 2021, que institui o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador, e, por fim, a Lei nº 14.195 de 2021, que facilita a abertura de empresas, oriunda da MP nº 1.040 de 2021, que teve o objetivo de modernizar o ambiente de negócios nacional, como estratégia de recuperação econômica pós-pandemia.

Responsabilidade social e seus princípios
As definições de responsabilidade social variam entre uma interpretação mais abrangente ou mais restritiva do conceito. No Livro Verde (2001) da Comissão Europeia está a seguinte definição: "integração voluntária de preocupações sociais e ambientais por parte das empresas nas suas operações e na sua interação com outras partes interessadas" [4].

Não obstante a ampla gama de abordagens, as seguintes características reúnem consenso generalizado:

a) Comportamento adotado pelas empresas de forma voluntária e para além de prescrições legais, porque consideram ser do seu interesse a longo prazo;

b) Estreitamente associada ao conceito de desenvolvimento sustentável: as empresas têm de integrar nas suas operações o impacto econômico, social e ambiental;

c) A existência de uma política de responsabilidade social implica necessariamente uma política que abranja três pilares: social (pessoas), ambiental (planeta) e econômico (lucro).

Convém assinalar que, ainda, no campo do direito, na era da comunicação e da revolução tecnológica disruptiva, todas as áreas sofrem o impacto das mutações. Cada vez mais, a ciência social tem que lidar com um vocabulário "transnacional", "pós-nacional", "globalizado" e "cosmopolita".

Nesse contexto de transformação, fala-se cada vez mais em governança em lugar de governo, na qual os indivíduos e as instituições, públicas e privadas, administram seus assuntos comuns. Uma espécie de ordem espontânea, formada a partir de atores privados e suas práticas contratuais.

A título de exemplos, vale lembrar as criptomoedas, meio de troca que se utiliza da tecnologia de blockchain e da criptografia para assegurar a validade das transações e a criação de novas unidades de moeda, sem uma regulamentação mundial e sem Banco Central para o controle de sua emissão. Os sistemas de compliance também fornecem autorregulação interessante para empresas e corporações, sem a intervenção estatal, assim como a Justiça Desportiva. As Câmaras de Arbitragem e Mediação, algumas utilizando ferramentas tecnológicas inovadoras, e o mercado privado de soluções extrajudiciais de conflitos apresentam formas rápidas e eficientes para composição de litígios.

A  ISO-26000:2010 [5] é uma  orientação sobre responsabilidade  social e elenca os seguintes princípios gerais:

a) Accountability
Responsabilidade da organização (privada ou pública) em prestar informações de relevante interesse para as pessoas que são atingidas por suas atividades, o Estado, o mercado e a sociedade de uma forma geral.

Prestar contas, aceitar investigações apropriadas e a elas responder demonstra compromisso da organização com os valores que propaga.

b) Comportamento ético
Ações antiéticas facilmente condenam a reputação da organização nos mais diversos segmentos sociais e econômicos. O comportamento de uma organização deve basear-se na honestidade, equidade e integridade. Esses valores implicam a preocupação com pessoas, animais e meio ambiente, bem como o compromisso de lidar com o impacto de suas atividades e decisões nos interesses das partes interessadas.

c) Respeito pelos interesses das partes interessadas
Uma organização deve responder a todos os interesses das partes a ela relacionadas e envolvidas. Tais interesses não se resumem apenas aos interesses de seu proprietário, diretoria, conselhos.

d) Respeito pelo Estado de Direito
Respeito às normas que regem toda a comunidade não sendo permitido o exercício arbitrário do poder. No contexto da responsabilidade social, respeito pelo estado de direito significa que a organização obedece a todas as leis e regulamentos aplicáveis.

e) Respeito pelas normas internacionais de comportamento
Na falta de legislação ou norma interna que preveja boas práticas, normas internacionais devem preencher essa lacuna.

f) Respeito aos direitos humanos
Liberdade, liberdade de opinião, educação, trabalho. Sempre que possível, devem ser promovidos os direitos previstos na Carta Internacional dos Direitos Humanos, universais (aplicáveis em todos os países, culturas e situações de forma unívoca).

O Projeto de Lei de Responsabilidade Social (Projeto de Lei Complementar nº 108/2022)
O projeto institui regime voltado à responsabilidade social na elaboração, condução e aplicação de políticas públicas que visem ao desenvolvimento e ao bem-estar em âmbito nacional.

A proposta define deveres do Estado, tais como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; e a erradicação da pobreza e da marginalização, com redução das desigualdades sociais e regionais.

Também são propostas a estipulação e a revisão de metas de índices sociais; a adoção de política pública previsível e estável; a estipulação de processo permanente de planejamento da ação estatal; a transparência na elaboração dos documentos sociais, assim como amplo acesso às informações.

Define que os recursos dos fundos federal, estaduais e municipais de combate à pobreza, que tem como objetivo viabilizar a todos os brasileiros o acesso a níveis dignos de subsistência, serão direcionados às ações estatais que tenham como alvo prioritário as famílias cuja renda per capita seja inferior à linha de pobreza, assim como indivíduos em igual situação de renda, além da população em localidades que apresentem condições de vida desfavoráveis.

Para as ações assistenciais, são priorizados a pessoa em situação de rua, a criança, o idoso, a mulher provedora de família monoparental, indígenas, quilombolas e demais grupos com maior vulnerabilidade social e econômica.

Outra previsão é a instituição do Programa Nacional de Proteção e Reconstrução Econômica, Social e Federativa, cuja execução orçamentária e financeira se realizará por meio do fundo nacional. A gestão caberá ao Consórcio Nacional.

Há capítulos específicos dedicados as ações voltadas à saúde, saneamento básico, moradia, educação, segurança pública com prioridade ao respeito à integridade física da população e do policial, ressocialização dos incluídos ou egressos do sistema prisional.

Também é prevista a facilitação à prestação do serviço jurídico gratuito, a partir do serviço público voluntário em auxílio à Defensoria Pública, convênio com instituições de ensino, cadastro de advogados voluntários.

Por fim, é estabelecido que será exigida, a todos os entes da Federação, ao final do ano civil, a Declaração de Gestão Social Responsável, que terá por finalidade comprovar a observância das disposições dessa lei complementar.

Considerações finais
As crises globais  financeira, energética e alimentar  evidenciam penosamente não apenas nossa interdependência, como também a fragilidade dos sistemas globais para o comércio e distribuição de bens e serviços. O crescimento da população e do consumo exigem ações para o enfrentamento da escassez na economia. As transações globais dependem fundamentalmente da adequação de novos protocolos internacionais e de infraestrutura para melhor proteger o planeta e beneficiar as populações. Assim as empresas buscam estratégias ESG  preservação do meio ambiente, responsabilidade e investimento social e governança — para enfrentar desafios continentais, tais como mudança climática, transparência pública e mercados inclusivos.

As inovações no campo empresarial  sejam sociais ou tecnológicas   além de buscar competitividade e redução de custos, buscam também a melhoria da qualidade de vida de consumidores e população em geral. Assim, as corporações podem e devem propor ações de melhoria da qualidade de vida das populações onde atuam, mas o governo deve oferecer como contrapartida métricas de políticas públicas que venham a propor as ações que de fato   reduzam a pobreza e melhoria da qualidade de vida da população. Não há, sem políticas públicas e métricas voltadas para a responsabilidade social, como ampliar o investimento social empresarial de forma a realmente gerar impactos duradouros e permanentes.

Continuação na parte 2.


[1] FGV SOCIAL. FGV SOCIAL LANÇA A PESQUISA "MAPA DA NOVA POBREZA" COM ABERTURA PARA 146 ESTRATOS ESPACIAIS. Disponível em: https://cps.fgv.br/destaques/fgv-social-lanca-pesquisa-mapa-da-nova-pobreza-com-abertura-para-146-estratos-espaciais. Acesso em 08 nov 2022.

[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF determina que governo implemente o programa de renda básica de cidadania a partir de 2022. Notícias (27/04/2021). Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=464858&ori=1. Acesso em 08 nov. 2022.

[3] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 976. Relator ministro Alexandre de Moraes. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6410647. Acesso em 08 nov 2022.

[4] Comissão das Comunidades Europeias (2001). Livro Verde — Promover um Quadro Europeu para a Responsabilidade Social das Empresas. Disponível em http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/committees/empl/20020416/doc05a_pt.pdf. Acesso em 07 nov 2022.

[5] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS (ABNT). NBR ISO 26000: diretrizes sobre responsabilidade social. Rio de Janeiro, 2010. 110 p. Disponível em: <http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/arquivos/[field_generico_imagens-filefield-description]_65.pdf> Acesso em: 09 nov 2022.

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