Muitas formas de se interpretar a presunção de inocência, exceto a mais óbvia
15 de novembro de 2022, 9h11
A simplicidade é o mais alto grau de sofisticação (atribuída ao polímata Leonardo da Vinci)
Nas últimas semanas, o debate na comunidade jurídica, em específico no campo criminal, novamente se acendeu. Isso porque o Supremo Federal incluiu na sessão de julgamento virtual o RE nº 1.235.340 em que se busca a fixação da seguinte tese com repercussão geral: "A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada" [1].
De saída, apenas pela leitura da tese e com a devida vênia, verificamos que mais uma vez o Supremobusca, a todo custo, relativizar a presunção de inocência insculpida na Carta Magna de 1988, ou melhor dizendo, propõe a criação de uma exceção que não encontra arrimo em nenhuma interpretação extensiva que seja dada à Constituição.
Não devemos esquecer que a soberania dos vereditos é, antes de mais nada, uma garantia do acusado e de todo o cidadão a, submetido ao Tribunal Popular, não ver o veredito suplantado pelo mero decisionismo ou discordância que possa advir dos tribunais.
Vale relembrar que o próprio STF já havia decidido, ainda que por órgão fracionário, pela impossibilidade de cumprimento em primeiro grau da condenação do Júri (HC 174.759, relator ministro Celso de Mello).
O que, ao menos aparentemente, já se enxergava pacificado e consolidado no âmbito da Suprema Corte em virtudes dos julgamentos das ADIs 43,44 e 54, retorna à tona sob uma nova roupagem. Utiliza-se a título argumentativo para deflagrar a imediata execução da pena o bordão "soberania dos veredictos do tribunal do júri", que assim como a presunção de inocência, é também tida como clausula pétrea prevista no artigo 5º, inciso LVII da Constituição.
Mesmo quando se tentou o retrocesso, ultrapassado, da execução provisória da pena, o fez para permiti-la apenas após o julgamento por parte dos tribunais de 2º grau.
Nenhuma alteração relevante justificaria o passo atrás, que não a própria previsão do chamado pacote anticrime que, ainda que inconstitucional, ao menos definiu um patamar de pena para tanto. Agora um novo golpe, mais forte, é lançado contra a presunção de inocência, tudo em nome da sempre invocada "eficiência": cumprir-se sentenças de primeiro grau.
Vejamos que a interpretação conferida agora para mitigação da presunção de inocência no âmbito do supracitado recurso extraordinário, pelos fundamentos externados no voto do relator, ministro Luis Roberto Barroso, é de que "a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes" [2].
Ou seja, havendo por parte do conselho de sentença um veredicto condenatório "o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos a que ela visa resguardar (CF/1988, artigos 5º, caput e LXXVIII, e 144), notadamente a vida humana" [3].
Daí que se está a criar um precedente que atribui à soberania dos vereditos um maior peso sobre a presunção de inocência, como se ambos fossem direitos fundamentais colidentes. São garantias que se conectam e devem ser lidas e interpretadas conjuntamente.
Defendemos que os direitos fundamentais devem, sempre, ser interpretados de modo a lhes conferir maior eficácia e a presunção de inocência, sem sombra de dúvidas, é o marco inicial da adoção de um sistema processual penal acusatório e democrático, sem o que não há que se falar em efetividade da lei penal, tida como aquilo que distingue a sociedade da barbárie, verdadeira "garantia política do cidadão" [4], do que depende a própria definição de Estado democrático [5].
O mesmo Estado que se obriga a punir é o mesmo Estado que se compromete com as garantias individuais e direitos fundamentais, sem o que também não poderá ser considerado eficaz.
É de fato, um dever ser do acusado, dever de ser tratado como inocente até o trânsito em julgado do processo-crime, como devidamente escancarado no artigo 5º, LVII, "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Daí que a doutrina classifica a presunção de inocência também como verdadeira norma de tratamento [6], do que lembrou o ministro Gilmar Mendes ao divergir do relator, trazendo lições de Zanoide de Moraes, em obra dedicada ao tema [7].
Chama atenção, certa parte do voto proferido pelo ministro Barroso, onde sua excelência traz à baila dados estatísticos que demonstram que a maioria dos recursos de apelação interpostos contra a r. decisão do Conselho de Jurados, ao final, não são providos pelo Juízo ad quem, a fim de deixar subentendido que não haveria qualquer "prejuízo" na imediata execução da pena.
Com a devida vênia, tal permissa utilizada relembra, ainda que afastada do seu núcleo central, o mesmo raciocínio lógico utilizado por Manzini ao afastar presunção de inocência do Código Italiano fascista (Código Rocco):
"O raciocínio era o seguinte: como a maior parte dos imputados resultavam ser culpados ao final do processo, não há o que justifique a proteção e a presunção de inocência [8]."
Acaba por violar também a garantia ao duplo grau de jurisdição, direito fundamental e humano, assegurado no artigo 8.2, "h", do Pacto San José da Costa Rica, sem distinções: "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa tem o direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior", se sobrepondo a toda legislação infraconstitucional, reconhecido ainda que de maneira mais restrita pela Corte Suprema [9].
Além da possibilidade de anular-se a decisão do júri em caso de manifesta contrariedade, que, a despeito de eventuais baixas percentagens de provimento, não pode ter seu valor em números absolutos desconsiderado, os jurados, cidadãos do povo, podem até mesmo se equivocar por votarem desmotivadamente e, por exemplo, errarem na resposta aos quesitos.
Há, ainda, a possibilidade de recurso por nulidade ocorrida no julgamento, submetendo o acusado à execução de uma condenação manifestamente nula, o que seria inconcebível, para além de mitigar a possibilidade de recurso.
Vale lembrar o primado de que nulla culpa sine judicio, entendido, o processo, não como mero ato formal, mas, sobretudo, válido, respeitando-se as garantias constitucionais e o devido processo legal. Sem isto, não há culpado, e não pode haver prisão como decorrência de pena. Basta lembrar o recente caso Briner, que preso preventivamente, morreu antes de ser solto em razão de sua absolvição.
Além de refletir um ranço inquisitorial presente no sistema vigente, marca um retrocesso histórico na vertente da busca da simetria entre Constituição Federal e o Código de Processo Penal, regredindo além até mesmo do que ficou decidido no HC 126.292, permitindo-se a execução provisória de sentença de primeiro grau, tudo no silencioso plenário virtual, sem possibilidade de ampla discussão e publicidade do tema.
Todas as formas possíveis de se interpretar a presunção de inocência não suplantam a própria redação constitucional, mais óbvia e ululante impossível: "trânsito em julgado" significa "trânsito em julgado" mesmo.
O veredito popular continua soberano com a possibilidade de se recorrer em liberdade, que melhor se amolda aos princípios constitucionais do duplo grau de jurisdição e, sobretudo, presunção de inocência. Apenas sua execução que é mitigada até o trânsito em julgado, em respeito à norma de tratamento de inocente, destinada a todos os acusados.
Um último esclarecimento é necessário: mesmo que o pior se concretize e se firme a tese em repercussão geral, as críticas ao posicionamento da Suprema Corte jamais significarão uníssono às vozes tresloucadas que clamam a diminuição da autonomia do STF. A Suprema Corte, ainda bem, seguirá sendo a que possui o privilégio de "errar por último". O que se espera é que não erre.
[1] Após a finalização do presente, o ministro André Mendonça pediu vista e, assim, ficou suspenso o julgamento, o que não afasta as críticas lançadas;
[2] Fl. 9 do Voto;
[3] Ibidem;
[4] Parecer Jurídico no HC 126.292 — Coautoria: Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró e Aury Lopes Junior.
[5] Código de Processo Penal: estudos comemorativos aos 80 anos de vigência : Volume 2 / Guilherme Madeira, Gustavo Badaró e Rogerio Schietti Cruz, coordenação. — São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 494.
[6] Lopes Junior, Aury. Direito processual penal. — 17. Ed. — São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 109.
[7] MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro : análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[8] LOPES, 2020, p. 105
[9] STF, RE 466.343/SP
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