Opinião

Judicialização dos direitos sociais e efetividade das normas constitucionais

Autor

  • Gustavo Hasselmann

    é procurador do Município de Salvador (BA) advogado graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) licenciado em filosofia pela Faculdade Batista Brasileira especialista em Processo Civil e Direito Administrativo pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia membro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo e ex-juiz do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Baiana de Futebol.

14 de novembro de 2022, 12h08

O tema relativo à justiciabilidade dos direitos sociais é por demais candente e palpitante atualmente no Brasil.

Nas nossas Constituições anteriores à de 1988, as normas sobre direitos sociais nelas insculpidas tinham natureza programática segundo as doutrina e jurisprudência pátrias, vale dizer, não tinham força normativa, não podendo, assim, ser concretizadas pelo Poder Judiciário.

A partir da CF de 1988 passou-se a se discutir sobre a justiciabilidade dos direitos sociais previstos no seu artigo 7º, sendo pacífico na atualidade o entendimento de que o Judiciário pode concretizar tais direitos.

Passou-se, então, a emprestar uma leitura menos ortodoxa ao princípio da separação de poderes, permitindo-se , assim, que o Judiciário tenha ingerência no controle das políticas sociais, para efetivar os direitos sociais.

Os argumentos invocados pelos adeptos dessa teoria têm fundamento moral e jurídico, estando calcados, do ponto de vista constitucional, no artigo 5, parágrafo 1º, da CF, que estabelece a aplicação imediata dos direitos sociais(não se discute mais, razoavelemente, se os direitos sociais são fundamentais; eles são sim), bem assim no preceito que estabelece o acesso ao universal à jurisdição para coibir lesão ou ameaça a direitos.

Não se pode olvidar, ademais, que foram criados, para eliminar ou mitigar as omissões e arbitrariedade dos poderes Legislativo e Executivo na consecução de políticas sociais, os institutos do mandado de injunção e ação declaratória de constitucionalidade.

De outro lado, impende assinalar que a concretização pelo Judiciário dos direitos sociais se afinam com os princípios do mínimo existencial e da dignidade da pessoa humana.

Não obstante, algumas críticas têm sido dirigidas à justiciabilidade dos direitos sociais, sem embargo de relevantes e pertinente objeções que são levantadas contra essas críticas.

O professor Daniel Sarmento, em obra coletiva intitulada "Direitos Sociais, Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie", da editora Lumen Juris, discorre sobre o tema, apontando algumas críticas e as  respectivas objeções, bem assim fixando parâmetros para a judicialização dos direitos sociais.

Segundo o ilustre professor [1], alguns estudiosos averbam que a concretização pelo Judiciário dos direitos sociais seria antidemocrática, na medida em que os juízes não respondem perante o povo, pois, ao contrário do Legislativo e Executivo, não são por ele eleitos. Ademais, a tutela judicial dos direitos sociais afastaria o debate público, cingindo-se a litígios judiciais.

Os opositores dessa posição desfilam sólidos e irrespondíveis argumentos em contrário.

Com efeito, na esteira do professor Sarmento, podem ser elencadas as seguintes objeções.

A  uma, sabe-se que no Brasil, como no resto do mundo, verifica-se um grande deficit democrático do Legislativo e do Executivo, na medida em que a democracia indireta tem baixíssima confiança da população, sendo certo que o presidencialismo de coalisão que vigora no Brasil, representativo de um autêntico  toma lá da cá, apresenta a face suja e obscura dos bastidores do poder, tudo isso fazendo realçar a importância do ativismo judicial na tutela dos direitos sociais.

A duas, porque do próprio conceito de democracia se pode inferir, ao lado das eleições e do voto, uma outra faceta, a saber: a realização da democracia reclama, por óbvio, a realização e concretização dos direitos sociais, sem as quais não se pode falar de debate público, de liberdades públicas, pois faltaria o mínimo existencial para os mais necessitados.

A três, o Judiciário, ao lidar com a concretização dos direitos sociais, estaria agindo em prol da democracia, estaria reconhecendo a força normativa da Constituição, ou ainda, a necessária efetividade dos direitos sociais.

A quatro, a tutela judicial dos direitos sociais não inibe  a participação política dos cidadãos ou o debate público, na medida em que, sobretudo nas ações judiciais coletivas versando políticas sociais, a participação política da sociedade se mostra evidente, a exemplo de audiências públicas e presença de amicus curiae, como soi acontecer no STF.

Todavia, nas palavras do professor Sarmento [2]:

"Tais argumentos não devem nos levar ao ponto de negligenciar os riscos para a democracia representados por um ativismo judicial excessivo em matéria de  direitos sociais , que transforme o Poder Judiciário na principal agência de decisões sobre políticas públicas e escolhas alocativas realizadas nesta seara."

Outra crítica que se faz à judicialização dos direitos sociais é a de que ela implicaria na vulneração do princípio da separação de poderes.

Tal crítica olvida que , numa interpretação menos ortodoxa desse princípio, não se pode deixar de considerar que ele envolve uma complexa trama de implicações e de limitações recíprocas, podendo, em alguns casos, um poder exercer competências que seriam do outro.

Ademais, à guisa de crítica à judicialização dos direitos sociais, pode-se brandir com o argumento de que os juízes não teriam expertise no trato com políticas públicas, o que se nos afigura uma verdade, mas que não pode ser absoluta, pois sabe-se que, para amenizar o problema, eles poderiam, como podem, se valer de peritos, audiências públicas, amicus curiae etc.

Por fim,  poderíamos dizer, como fazem alguns, que o princípio da reserva do possível pode se contrapor à judicialização dos direitos sociais? Certamente não.

Com efeito, ninguém desconhece que na vida os recursos são escassos , razão pela qual o poder público, na consecução de políticas públicas, deve, muitas vezes, fazer escolhas trágicas, alocando recursos em umas e desalocando em outras.

Existe , ainda, do ponto de vista jurídico, as limitações orçamentárias, que poderiam inibir a tutela judicial dos direitos sociais.

Para o citado professor, este argumento, embora razoável , não pode infirmar a conclusão de que os direitos sociais podem merecer tutela judicial para a sua concretização.

De fato,  seja pela força normativa da Constituição, seja pela autoaplicabilidade dos direitos sociais, seja pelo respeito à democracia substancial, seja pelo obséquio à garantia do mínimo existencial e do respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, os direitos sociais devem ser efetivados, com prudência , moderação, racionalidade e respeito ao princípio da proporcionalidade.

O princípio da reserva do possível foi objeto de decisão monocrática do ministro Celso de Mello [3], em obter dictum, na ADPF nº 45, quando sua excelência, reconhecendo que o ativitivismo judicial não pode ser excessivo ou arbitrário, teve ocasião de dizer que:

"A cláusula da reserva do possível  ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível  não pode ser invocada pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se  do cumprimento de suas obrigações constitucionais , notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação, ou, até mesmo, aniquilamento de dirteitos constitucionais impregnados de um sentido essencial de fundamentabilidade."

O professor Sarmento considera, ao fixar um parâmetro para sindicabilidade dos direitos sociais, que, sobre ser indiscutível a possibilidade de efetivação deles pelo Judiciário , é indispensável que o juiz, à vista das peculiaridades do caso, haja com equilíbrio, racionalidade, moderação e razoabilidade, fazendo a ponderação de interesses, por se tratarem de direitos previstos em normas principiológicas, cotejando, de um lado, o princípio da separação de poderes, o sufrágio universal e demais aspectos relacionados à democracia representativa, a reserva do possível, e, do outro,  a autoaplicabilidade dos direitos sociais, o mínimo existencial, a dignidade da pessoa humana etc.

A decisão não é fácil e simples, daí porque, ao nosso sentir, os juízes devem, para além de uma formação bacharelesca e dogmática, incursionar em outros ramos do conhecimento, como filosofia, sociologia, ciência política, economia etc. 

Por fim, para arrematar esse tópico, insta salientar que  em meio à  miserabilidade de grande parte da  sociedade brasileira, provocada pelo avassalador e destrutivo neoliberalismo, que tantas desigualdades tem provocado no mundo, sobretudo nos países periféricos  a nossa Constituição, inclusive os seus aplicadores, notadamente os juízes, deve cumprir um grande papel na possibilidade da racional concretização dos direitos sociais, em especial pelo Judiciário, eis que ela tem instintamente um perfil social-democrata, prevendo, lado a lado, a livre iniciativa e o mercado, e, do outro, os direitos sociais.

Até meados do século 20, as constituições eram vistas como meras proclamações retóricas de direitos, de cunho eminentemente político, destituídas, portanto, de eficácia jurídica e imperatividade. Depois, passaram a ser consideradas como autênticas  normas jurídicas, portanto,  imperativas.

Em nossa acidentada trajetória constitucional, que sempre expressou, até a Constituição de 1988, um fosso abissal entre a realidade social e os preceitos constitucionais, estes, no entender da doutrina e jurisprudência pátrias, não eram tidos como normas jurídicas, mas meras declarações de direitos, notadamente as que previam direitos  e liberdades fundamentais.

Com efeito, só para exemplificar, a Constituição imperial de 1824 estabelecia que "a lei é igual para todos" embora estivéssemos num regime escravocrata. De igual forma, a Constituição de 1969, haurida na ditadura militar, contemplava um vasto  rol de direitos  fundamentais, não materializados na vida social.

É importante assinalar, à guisa da Teoria Geral do Direito, que, ao contrário das ciências naturais  descritivas da realidade  o Direito, como ciência social, tem um caráter prescritivo e valorativo da realidade social, sem embargo de também descrevê-la , visando transformá-la e aperfeiçoá-la . Naquelas vigora a lógica do "ser" e nesta, notadamente no Direito, a lógica do "dever-ser". Destarte, as constituições, notadamente as dos países democráticos, albergam prescrições normativas, que visam não só descrever a realidade social, mas também e principalmente transformá-la.

Nesse tópico, em linha de princípio, há que se distinguir a eficácia jurídica da eficácia social ou efetividade das normas constitucionais. Até bem pouco tempo atrás, mais  se escreveu sobre a eficácia jurídica das normas constitucionais e menos sobre sua efetividade.

Efetivamente, no tocante à eficácia jurídica das normas constitucionais, o professor José Afonso da Silva, teve ocasião de publicar, em 1960, a obra lapidar intitulada Aplicabilidade das Normas Constitucionais, onde fazia a seguinte divisão entre elas : a) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade  imediata; b) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição pelo legislador; c) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, em especial as normas definidoras de princípio institutivo e as programáticas, que , em geral dependem de integração pelo legislador infraconstitucional para operarem em plenitude os seus efeitos.

Já a efetividade das normas constitucionais concerne à realização do Direito, à sua materialização na vida social.

O ilustre professor e membro da Suprema corte do nosso país, Luís Roberto Barroso [4], define a efetividade das normas constitucionais da seguinte forma:

A efetividade significa, portanto, a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos , dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.

Os ilustres tratadistas Claudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento assim se manifestam quanto à efetividade das normas constitucionais:

"Diante do conteúdo avançado da Constituição, uma das preocupações  centrais da teoria constitucional brasileira passa a ser incrementar a sua força normativa. Isso ocorreria, contudo, não por meio de uma síntese com a ralidade constitucional, como propunham os constitucionalistas alemães  da teoria concretista, mas pela via do desenvolvimento de uma 'dogmática da efetividade', centrada na atuação do Poder Judiciário. Se o Direito Constitucional estabelece um projeto social adequado, não haveria mais sentido em debater acerca da realidade que o condiciona ou de sua justificação racional. A grande missão seria efetivar a Constituição, razão pela qual os enfoques político-sociológicos não teriam muito a contribuir. O que se propunha era conceber a Constituição como 'verdadeiro Direito', integrado por normas aptas a produzirem efeitos; a comandarem o comportamento dos órgãos estatais , entes privados e indivíduos. O que se desejava era uma 'Constituição para valer', o que dependeria , em grande medida, da sua proteção individual [5]."

É certo que ainda existe, mesmo após o advento da Constituição de 1988,um grande abismo entre o que prescreve as normas constitucionais sobre direitos fundamentais, com ênfase para os direitos sociais, e a realidade social subjacente. Todavia, na esteira da dogmática da efetividade, cabe aos cidadãos, no exercício do seu dever de participação política, reduzir esse fosso através da tutela judicial e da democracia participativa.

Com efeito, a democracia participativa (referendo, plebiscito, inciativa popular de lei, conselhos populares, movimentos de rua etc) , de mãos dadas com a representativa, é a grande solução  para dirimir esses problemas.

Vivemos uma época de profunda crise do sistema representativo expressa, principalmente nos países   subdesenvolvidos como o Brasil, no enorme distanciamento entre governantes e governados. Só a democracia participativa, uma tendência mundial, juntamente com a representativa é que pode estreitar esses limites e aproximá-los (governantes e governados). Lamentavelmente, no Brasil, o índice de participação popular nas decisões do poder público ainda é muito pequeno se comparado não só com o de países do primeiro mundo, mas também em relação à América Latina.

Por outro lado, como já vimos no tópico anterior relativo à judicialização dos direitos sociais, frustrada a expectativa do cumprimento espontâneo do poder público na realização de políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos sociais, inscritos no artigo 7º, dentre outros, da nossa Constituição, ou na defesa destes, cabe ao cidadão, sem embargo de também poder exercer a democracia participativa imbrincada com a representativa, a busca , com vistas à efetividade dos seus direitos sociais, da tutela judicial.

É bem verdade que ela, a tutela judicial, encontra limites quando nos deparamos com decisões políticas baseadas em critérios de conveniência e oportunidade, como por exemplo fazer ou não fazer, o Estado, políticas públicas, o que não obsta a defesa dos direitos sociais em juízo.


[1] SARMENTO, Daniel. Direitos Sociais, Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Editora Lumen Juris, 2008, p.553 e segs.

[2] SARMENTO, Daniel. op. cit., p.561.

[3] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Brasília-DF. Decisão Monocrática ADPF 45. Relator: ministro Celso de Mello. Data do Julgamento: 29 de abril de 2004. Disponível em < http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm>. Acesso em: 23 jul. 2021.

[4] BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de sua Norma. Ed. Renovar, 2002, p.85.

[5] SOUZA, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional, Teoria, História e Métodos de Trabalho. Ed.Fórum, 2013. p.198/199.

Autores

  • Brave

    é advogado, procurador do Município de Salvador, licenciado em Filosofia pela Faculdade Batista Brasileira (FBB), especialista em Processo Civil e Direito Administrativo Fundação Faculdade de Direito da Bahia (UFBA), membro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e ex-juiz do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Baiana de Futebol (TJDF-BA).

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