Processo Tributário

Projetos de leis e as tendências para o contencioso tributário

Autores

  • Fernanda Camano

    é advogada pós-doutora pela Faculdade de Direito da USP professora do curso de Especialização do Ibet professora do curso de extensão Processo Tributário Analítico do Ibet e pesquisador do grupo de estudos Processo Tributário Analítico do Ibet.

  • Camila Campos Vergueiro

    é advogada doutoranda pela Unimar mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professora do Curso de Especialização do Ibet do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV Law) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus professora e coordenadora do curso de extensão Processo Tributário Analítico do Ibet e coordenadora do grupo de estudos de Processo tributário analítico do Ibet.

13 de novembro de 2022, 8h00

Da leitura dos projetos de leis elaborados pela Comissão de Juristas [1] é possível vislumbrar algumas tendências para o contencioso tributário.

Mais do que o exame do conteúdo das proposições em si, as propostas revelam sintomas de problemas vivenciados por quem é afetado pelo conflito tributário e, a partir delas (propostas e proposições), desenvolveremos uma série de artigos apresentando as perspectivas antevistas.

O objetivo deste texto não é analisar criticamente as propostas normativas apresentadas em cada um dos nove projetos de leis [2] voltados à temática do processo tributário, mas mirar o conjunto indicativo dos possíveis cenários que se desdobrarão sobre o contencioso tributário.

Muito embora os projetos de leis sejam temáticos e, normativamente, individualizados, há um fio condutor que os une: a ideia de redução da judicialização e de solução consensual do litígio tributário. Objetivos esses presentes em todos eles, seja naquele referente às alterações do CTN, em que se propõem programas de conformidade fiscal e facilitação da autorregularização do contribuinte, seja nos dedicados à mediação e à arbitragem, ou no que trata da consulta tributária, ao disciplinar a vinculação da resposta a todos os contribuintes, ainda que não consulentes, que se enquadrem nas mesmas situações fáticas e jurídicas.

Seria possível afirmar que a força centrípeta dos projetos de leis permeia três tópicos: (1) o sistema de precedentes, (2) o consenso substitutivo do conflito nas relações entre Fisco e contribuinte e (3) a adoção de mecanismos [3] administrativos de cobrança do crédito tributário.

Bom destacar que esse tripé já foi consolidado na ordem jurídica antes de ser contemplado pelos projetos de leis, muito embora em atos normativos esparsos de determinados entes tributantes, portanto, não dotados da sistematização tal como apresentada nos que resultaram do trabalho da comissão, e de forma geral no Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015).

Com relação ao primeiro tema, o CPC/2015 promoveu a aquisição definitiva dos precedentes a serem observados pelo Poder Judiciário, a exemplo do artigo 927, para garantir a estabilidade e a uniformidade do direito. Esse objetivo já se anunciava no ordenamento desde a reforma do Judiciário consolidada na Emenda Constitucional 45/2004, limitadamente para decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), com a integração ao ordenamento da súmula vinculante, do julgamento com repercussão geral da matéria, da vinculação da decisão em controle de constitucionalidade em ação direta, e alterações recorrentes que foram promovidas no CPC/1973.

No plano federal, a Lei 10.522/2002 determinou que a administração pública observasse tais pronunciamentos, inclusive para casos similares (e não idênticos, conforme alteração da Lei 13.874/2019), materializada também na Portaria PGFN 502/2016, que estabeleceu a dispensa da Fazenda Nacional de litigar quando couber a "extensão a tema não especificamente abrangido pelos precedentes". Esse regramento é reiterado, por exemplo, com a projeção de acréscimo do artigo 194-B [4] ao CTN — atribuindo-se-lhe a natureza de norma geral em matéria tributária — e, ainda, no artigo 40 [5] do projeto legislativo sobre o processo administrativo tributário federal [6].

Quanto ao segundo pilar (consensualidade), é possível verificar que a maioria das proposições compilam regras existentes em atos normativos editados pela PGFN a partir de 2016, além de prever a transação nos moldes da Lei 13.988/2020 [7]. Essa afirmação se verifica no projeto de alteração do código tributário nacional com as sugestões de modificação no artigo 171 que passará a prever as modalidades de transação tributária na cobrança e no contencioso (inclusive de pequeno valor), com base nas mesmas premissas contidas nas Portarias PGFN 6.757/2022 e ME 247/2020. A ideia de substituir o conflito pelo consenso aparece também nos projetos de leis sobre mediação e arbitragem.

Por fim, a terceira temática (cobrança administrativa) merece atenção — pelos impactos que deveria provocar, desde já, nos contribuintes — e que diz respeito ao deslocamento dos atos de cobrança do crédito tributário, no sentido de expropriação patrimonial [8], do Poder Judiciário para a administração.

Nesses termos, o projeto de lei de execução fiscal prevê que antes da propositura do processo executivo as Fazendas Públicas deverão utilizar do diálogo na tentativa de compor eventual conflito, sob pena de indeferimento da inicial — § 3º do artigo 6º [9] do projeto.

Ainda, o projeto da "nova" lei de execução fiscal incorporou prescrições da Portaria PGFN 33/2018 ao estipular a possibilidade de apresentação de pedido de revisão de débito inscrito em dívida ativa (PRDI [10]) antes da propositura da execução fiscal, medida que relega à administração fazendária a missão de resolver o conflito e impedir seu escoamento para o Judiciário, assegurada a manutenção da regularidade fiscal do contribuinte.

Verifica-se, pois, que a expropriação do patrimônio do contribuinte pelo Poder Judiciário revela-se amesquinhada, como "última alternativa". Aparenta-nos nítido o objetivo de reduzir a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, mas não a eliminar, até porque constitucionalmente impossível à luz do inciso XXXV do seu artigo 5º.

Neste cenário reputamos consagrar-se como tendências: uma vez que os precedentes objetivam equalizar todos os contribuintes em igualdade de condições identificamos a primeira delas, qual seja, a "coletivização" das discussões a exigir mecanismos de "tecnologização" [11] para a aplicação do que restar consolidado no julgamento de precedentes; já a segunda é a da "consensualidade" da relação entre Fisco e contribuintes com a menor interferência do Poder Judiciário, especialmente no ambiente de expropriação do patrimônio perfazendo a terceira tendência, a da "administrativização" da cobrança.

Dessas três, a que certamente exortará análise detida não é a que impõe a força dos precedentes ou a crescente substituição do conflito pelo consenso, que, de certo modo, já estão "aculturadas" pelos operadores do direito, mas a do significativo deslocamento da cobrança do crédito tributário do Poder Judiciário para a administração.

Tal tendência transmite o "recado" de que os ambientes administrativos de cobrança hoje existentes devem ser apropriados desde logo na rotina dos contribuintes, de modo que possam se utilizar em maior medida dos instrumentos de defesa neles contidos. Por sua vez, esta mesma advertência deve ser absorvida pelo próprio Fisco cuidando para que os meios por ele criados tenham efetividade, tornando essa via palatável para o contribuinte.

O que se dá é a necessidade de as três tendências assinaladas serem internalizadas e praticadas, desde já, tanto pelos contribuintes como pela administração, antes da eventual aprovação dos projetos de leis, até para que se possa contribuir com seu aprimoramento a partir de dados da realidade, caso seja necessário.

 


[1] Ato Conjunto 1/2022 do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal.

[2] A referência é ao:

– PL 2.481/2022 – altera a lei federal 9.784/1999;

– PLP 124/2022 – altera o código tributário nacional;

– PLP 125/2022 – institui o código de defesa dos contribuintes;

– PL 2.483/2022 – altera o processo administrativo tributário federal – revoga o decreto federal 70.235/1972;

– PL 2.484/2022 – dispõe sobre o processo de consulta sobre a aplicação da legislação tributária federal e aduaneira;

– PL 2.485/2022 – institui a mediação tributária federal;

– PL 2.486/2022 – institui a arbitragem tributária e aduaneira federal;

– PL 2.488/2022 – altera o processo de cobrança do crédito tributário – revoga a lei de execução fiscal; e

– PL 2.490/2022 – trata da lei orgânica do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

[3] Opta-se por utilizar a expressão mecanismo porque em ambiente administrativo delineiam-se tanto soluções de natureza procedimental, como o pedido de revisão de débito inscrito em dívida ativa (PRDI), como processuais por supor a instalação de um conflito que convoca uma resposta jurisdicional, como o processo administrativo tributário.

Sobre a natureza procedimental do PRDI já experenciada em âmbito federal sugerimos a leitura do seguinte artigo de Paulo Cesar Conrado produzido nesta coluna: https://www.conjur.com.br/2022-set-25/processo-tributario-prdi-processo-ou-procedimento-colocando-pingos-is

[4] Art. 194-B. O trânsito em julgado de controvérsia tributária decidida pelo Supremo Tribunal Federal, sob a sistemática da repercussão geral em matéria constitucional, ou pelo Superior Tribunal de Justiça, sob a sistemática dos recursos repetitivos em matéria infraconstitucional, favoravelmente a contribuintes ou responsáveis, terá eficácia vinculante para a administração tributária.

[5] Art. 40. No âmbito do processo administrativo tributário, têm efeito vinculante, inclusive para as Delegacias de Julgamento da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil:

I – decisões reiteradas e uniformes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais consubstanciadas em súmulas;

II – resoluções do Pleno da Câmara Superior de Recursos Fiscais;

III – súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 103-A da Constituição Federal (CF);

IV – decisões transitadas em julgado do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, proferidas na sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos, na forma dos arts. 927 e 928 e 1036 a 1041 do Código de Processo Civil;

V – decisões transitadas em julgado, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade (art. 102, § 2º, CF); e

VI – decisões transitadas em julgado do Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso que tenham declarado inconstitucionalidade de dispositivo legal, quando a execução deste tiver sido suspensa por resolução do Senado Federal (art. 52, X, da CF).

[6] O mesmo se verifica no projeto que altera a Lei 9.784/1999.

[7] Para complementação de informações sobre a transação federal, remetemos à leitura do seguinte artigo desta coluna: https://www.conjur.com.br/2022-jul-31/processo-tributario-transacao-contencioso-relevante-disseminada-controversia

[8] Sobre o sentido técnico jurídico de cobrança sugerimos a leitura do seguinte artigo:

https://www.conjur.com.br/2022-fev-06/processo-tributario-execucao-fiscal-cobranca-indireta-devido-processo-legal-desjudicializacao

[9] Art. 6º. (…)

§ 3º. As Fazendas Públicas deverão, sobretudo antes da propositura da execução fiscal, utilizar métodos de autocomposição e consensualidade previstos na Lei, com vistas a permitir a regularização do débito inscrito, sob pena de indeferimento da inicial.

[11] Expressão cunhada por Paulo Conrado, in Execução Fiscal, 5ª ed. São paulo: Noeses, 2021.

Autores

  • é advogada, pós-doutora pela Faculdade de Direito da USP, professora do curso de especialização do Ibet, professora do curso de extensão Processo Tributário Analítico do Ibet, pesquisador do grupo de estudos Processo Tributário Analítico do Ibet.

  • é advogada, doutoranda pela Unimar, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora do curso de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV LAW) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus, professora e coordenadora do curso de extensão e do grupo de estudos de “Processo Tributário Analítico” do Ibet.

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