Processo Familiar

O direito fundamental de herança e a liberdade do titular do patrimônio

Autor

  • Mário Luiz Delgado

    é doutor em Direito Civil pela USP mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco professor de Direito Civil na Escolas da Magistratura e da Advocacia diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFam membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) ex-assessor na Câmara dos Deputados da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.

13 de novembro de 2022, 8h00

O direito fundamental de herança foi o título do meu último livro, recém publicado pela Editora Foco [1]. A escolha do tema, e da forma de abordá-lo, partiu de um profundo incômodo que sinto em relação a algumas posturas hermenêuticas restritivas da autonomia privada no âmbito do Direito das Sucessões, sempre invocando o direito fundamental de herança como substrato legal para se restringir, via interpretação, a liberdade de disposição do titular do patrimônio, sem que a lei o faça expressamente. Assim ocorre com a possibilidade de renúncia prévia, por cônjuges e companheiros, ao direito concorrencial do artigo 1.829, incisos I e II, acoimada de nula por suposta infração ao artigo 426 do CC/2002, dispositivo que só se refere à herança e não a todo e qualquer direito sucessório.

Spacca
A Carta Cidadã de 1988 erigiu o direito de herança ao patamar de direito constitucional, no elenco de direitos e garantias fundamentais do artigo 5º, dispondo no inciso XXX que: "é garantido o direito de herança". Antes reconhecido como garantia implícita conferida ao direito de propriedade, foi positivado, na qualidade de direito fundamental explícito, na Constituição de 1988, e tem a função de complementar o direito de propriedade, garantindo-lhe o atributo da disponibilidade (jus disponendi causa mortis) e o caráter perpétuo, pela proteção da transmissão dos bens aos sucessores do titular do domínio, protegendo, na ultima ratio, a própria estrutura econômica e patrimonial da família.

Ao assim proceder, o Constituinte nada mais fez do que enaltecer a relevância do direito à propriedade privada, coibindo, dessa maneira, que o Estado expropriasse os bens da pessoa, após a sua morte. O reconhecimento da sucessão mortis causa é corolário da garantia do direito à propriedade privada, constituindo garantia fundamental dos cidadãos.

Além de direito fundamental, a herança também assume a função de garantia constitucional da propriedade, impondo ao Estado o dever de garanti-la e preservá-la, destacando-se, especialmente, o dever de respeito ao poder de disposição do autor da sucessão, sem desmerecer o direito dos herdeiros necessários de sucedê-lo em parcela do patrimônio. Ou seja, fica proibida a interferência do Estado para restringir ou limitar, tanto aquilo que é transmitido ao indivíduo por força da sucessão legítima e testamentária, como a manifestação de vontade do autor de planear a própria sucessão e transmitir os seus bens a quem melhor lhe aprouver.

O Código Civil assegura concretude infraconstitucional ao direito fundamental de herança, quando disciplina, em polos opostos, mas ao mesmo tempo, complementares, a liberdade e a autonomia privada do titular do patrimônio, na sucessão testamentária; e o direito dos herdeiros e a proteção econômica da família, na sucessão legítima.

Com todo respeito aos autores que negam a "dupla titularidade do direito de herança", apenas pelas limitações legais ao poder disposição do titular do patrimônio, entendo que esse direito fundamental não se dirige exclusivamente aos herdeiros legítimos e necessários de quem morreu, mas também aos herdeiros testamentários, aos legatários e, principalmente, ao autor da herança, a quem deve ser garantido o pleno exercício de todos os poderes atinentes ao domínio, especialmente o de dispor, em vida ou para após a morte, do acervo patrimonial que integrará a futura herança. São titulares desse direito fundamental, portanto, sucessores e sucedidos, tanto que o discurso constitucional se refere ao direito de herança e não ao direito à herança.

Assim como a maioria dos demais direitos fundamentais, ele não se reveste de caráter absoluto [2], nem para o titular do patrimônio, que tem o poder de disposição da propriedade limitado pelas regras da sucessão legitimária, nem para os sucessores, passíveis de serem excluídos da sucessão, nos casos previstos em lei, devendo ser sempre analisado com o auxílio da técnica da ponderação de interesses, informada pelo princípio da razoabilidade

O artigo 5º, inciso XXX da Constituição Federal tutela o direito de herança como um direito fundamental da pessoa humana, constituindo-se, por um lado, no direito de ser herdeiro, de acordo com o título legitimário (sucessão legítima ou testamentária), a partir da abertura da sucessão; e, de outro, no direito de poder dispor do seu patrimônio para após a sua morte, planejando sua própria sucessão, de maneira a realizar aspirações legítimas da pessoa humana, inclusive no que tange à possibilidade de excluir determinados sucessores.

Tanto é o direito fundamental do sucessor ao reconhecimento da condição de herdeiro, como a garantia fundamental da disponibilidade do direito de propriedade pela transmissão do patrimônio, causa mortis, de acordo com os interesses do sucedido. Logo, não tem como sujeito apenas o herdeiro, mas também o titular do patrimônio, garantindo-lhe o pleno exercício do poder de disposição da propriedade por ato causa mortis, obedecidas, apenas, as limitações expressamente previstas em lei. Não pode ser visto exclusivamente sob a ótica do herdeiro, mas deve se pautar também pelos interesses do autor da herança, até porque todo e qualquer direito fundamental constitui concretização e explicitação do princípio da dignidade da pessoa humana, abrangente, por óbvio, de toda e qualquer pessoa. E sendo assim, ou seja, constituindo forma de concretização da dignidade, também a herança se prestará a tal papel, não só aos destinatários do patrimônio hereditário, mas também ao disponente que, sob esse prisma, encontrará na autodeterminação para planear a sucessão e na liberdade de disposição do acervo hereditário o núcleo da sua dignidade.

Em conclusão, defendo que o direito de herança possui dupla dimensão, revestindo-se, de um lado, a forma de garantia institucional do direito de propriedade do autor da sucessão, de modo a impedir que o Estado-Juiz ou o Estado-Legislador estabeleçam restrições desmedidas à autodeterminação e à liberdade testamentária (liberdade de planejar a própria sucessão e de dispor da propriedade para depois da morte); e, de outro, o caráter de direito fundamental (direito subjetivo) dos sucessores, que não poderão ser excluídos da sucessão ou verem conspurcada a intangibilidade da legítima ao mero arbítrio do sucedido ou fora das hipóteses expressamente previstas em lei.

O direito fundamental de herança serve, assim, para garantir, tanto a liberdade do sujeito "proprietário", de poder dispor do seu patrimônio em testamento, como o direito ao quinhão hereditário do sujeito "herdeiro". Na colisão entre esses dois interesses, não pode o intérprete tomar partido, prima facie, por um dos lados, sem a análise concreta dos interesses em conflito. Tem de atender ao comando da lei, sem se deixar embalar pelo "canto da sereia", a poetizar um herdeiro vitimizado pelo pater familiae tirânico.

Não se pode mais admitir uma hermenêutica sucessória que privilegie, sempre, o herdeiro legítimo, em detrimento dos demais interessados na sucessão.

 


[2] Apenas quatro direitos fundamentais são considerados pela doutrina como absolutos, não admitindo-se a sua ponderação com qualquer outro: 1. O direito de não ser escravizado; 2. O direito de não ser torturado; 3. O direito não ser associado contra a vontade; 4. O direito de não ser extraditado, em sendo brasileiro nato.

Autores

  • é doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, especialista em Direito Processual Civil pela UFPE, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), professor dos cursos de pós-graduação das Escolas da Advocacia e da Magistratura, advogado e parecerista.

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