Opinião

Inviabilidade jurídica de exigência do Cadastur para empresas no Perse

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  • é sócio do escritório Rossi Maffini Milman & Grando Advogados mestre em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) master in law (LLM) em Direito Corporativo pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC) especialista em Gestão Tributária e Planejamento Tributário Estratégico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e do Instituto de Estudos Tributários (IET).

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11 de novembro de 2022, 15h06

A rigor, o Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos) pode ser pensado como um programa visando o passadopresente e futuro. O passado, pois cria uma modalidade especial e específica de transação de débitos tributários constituídos no período de pandemia; o presente, pois cria linhas de crédito favorecidos e um programa de ressarcimento de despesas para determinados beneficiários do programa (a ser regulamentado); o futuro, pois consta no seu artigo 4º o estabelecimento de alíquota zero, pelo prazo de 60 meses, para IRPJ, CSLL e PIS/Cofins, para os contribuintes do setor de eventos, que são os beneficiários do programa.

O objeto do presente trabalho diz respeito às medidas vocacionadas ao futuro pelo Perse, mais especificamente sobre quem poderá se valer da inexigibilidade prospectiva de tributos estabelecida pelo programa. Isso porque, embora a Lei 14.148/21 tenha delimitado em linhas gerais quem são os contribuintes do setor de eventos beneficiados, delegou a sua especificação a portaria a ser expedida pelo Ministério da Economia, que acabou editando a Portaria ME 7.163/21.

A lei é clara ao definir, no seu artigo 2º, §1º, que se considera "pertencente ao setor de eventos" as empresas que, direta ou indiretamente, desenvolvam atividades relacionadas à realização de eventos em geral (inciso I), hotelaria (inciso II), cinemas (inciso III) e turismo (inciso IV), conforme lista de Cnae a ser estabelecida pelo Ministério da Economia (§2º). Noutros termos, são requisitos cumulativos que a empresa desenvolva atividades, "direta ou indiretamente", previstas no artigo 2º, §1º, da Lei 14.148/21, bem como que tal atuação se dê via Cnae previsto na Portaria ME 7.163/21.

O problema, contudo, é que a Portaria ME 7.163/21 foi além daquilo que lhe foi delegado pela Lei 14.148/21, estabelecendo não apenas os Cnae contemplados pelo Perse, mas também criando novas condições e requisitos para que os contribuintes possam se enquadrar no programa. Especificamente para as empresas vinculadas ao turismo, regulamentadas pelo Anexo II da referida portaria, passou-se a exigir que os contribuintes com Cnae vinculados a tal atividade estivessem, desde maio de 2021, cadastrados no Cadastur (um cadastro junto ao Ministério do Turismo).

Acontece que ao assim prescrever, a Portaria ME 7.163/21 incorre em pelo menos três graves vícios de inconstitucionalidade e de ilegalidade, visto que: 1) não poderia uma mera portaria criar requisito formal para enquadramento no Perse à revelia de lei em sentido estrito; 2) o critério de discriminação elegido pela portaria, consistente no cadastro no Cadastur, é arbitrário e não guarda relação com os propósitos do Perse; 3) a exigência de um requisito formal retrospectivo, de impossível observância a quem já não estivesse cadastrado no Cadastur no passado, viola as condições de livre acesso e livre concorrência nos setores contemplados pelo Perse.

É conhecido o típico condicionamento que a legalidade impõe à Administração Pública [1]. Ora, essa exigência simplesmente não consta da Lei 14.148/21, sendo fato que na hierarquia dos textos legislativos, não pode uma portaria, que visa apenas a regulamentar uma lei em sentido estrito, transbordar dos limites do quanto lhe foi delegado [2].

Considerando o que dispõe o artigo 150, §6º, da CF [3], sendo o Perse um programa operacionalizado por meio de benefícios fiscais, natural o seu condicionamento pelo princípio da legalidade tributária, no sentido de se fazer necessária lei em sentido estrito para dispor sobre os seus contornos e delimitações [4]. A delegação a ato infralegal, não à toa, ficou adstrita a questão pontual e formal, consistente no rol de Cnae que, acaso desenvolvidos em conformidade com as atividades estabelecidas pela própria Lei 14.148/21, estarão contemplados pelo programa.

O segundo vício apontado diz respeito à isonomia tributária, pois a exigência de cadastro retrospectivo junto ao Cadastur se trata de um critério de discriminação que não guarda uma relação de pertinência com a situação de desigualdade que o Perse buscou resolver (ou pelo menos apaziguar), consistente em beneficiar um grupo de contribuintes que teve notórios impactos em decorrência da pandemia da Covid-19.

Tem-se que o fundamental, relativamente à isonomia tributária, é que tal princípio impõe, como condição para o tratamento desigual entre contribuintes, a identificação de uma medida de comparação. Essa medida se dá na relação entre sujeitos para o fim de se verificar se são iguais ou não entre si, em que medida, e se uma eventual discriminação entre os sujeitos vai justificada por critérios e motivos constitucionalmente respaldados [5].

Ora, se o Perse tem por propósito "compensar os efeitos decorrentes das medidas de combate à pandemia da Covid-19", não faz nenhum sentido condicionar o enquadramento como beneficiário de tal programa a uma mera formalidade cadastral que de forma alguma atesta se o contribuinte sofreu consequências econômicas, financeiras ou operacionais pela a pandemia. Prova disso é que é perfeitamente possível que um contribuinte regularmente inscrito no Cadastur em maio de 2021 tenha tido impactos pouco relevantes em decorrência da pandemia, enquanto um concorrente seu, não cadastrado, tenha sofrido enormes prejuízos e tenha beirado à falência.

Finalmente, o terceiro vício diz respeito a uma clara violação à livre iniciativa e à livre concorrência, pois: 1) cria uma barreira praticamente intransponível para que novas empresas possam iniciar suas atividades em condições de viabilidade, face ao fato de que seus concorrentes já estabelecidos gozarão de uma inexigibilidade tributária por 60 meses e; 2) cria uma disparidade concorrencial insuperável entre empresas concorrentes, pois umas terão que seguir recolhendo IRPJ, CSLL e PIS/Cofins e outras não.

Ora, a Portaria é de 21.06.2021, de forma que o que ela fez foi estabelecer requisito de ordem temporal e formal de maneira retrospectiva, não outorgando sequer condições para que contribuintes em geral possam buscar atender ao quanto estabelecido. Noutros termos, a Portaria estabelece em junho de 2021 condições que deveriam já estar sendo observadas desde maio daquele ano, tornando impossível que as empresas que não "adivinhassem" tais questões possam, a partir de então, sequer tentar cumprir com tais exigências.

Com efeito, requer pouco ou nenhum esforço perceber que empresas que queiram desenvolver, a partir de junho de 2021, qualquer das atividades contempladas pelo Anexo II, não são verdadeiramente livres para exercer tais atividades, visto que há uma barreira financeira praticamente insuperável que é o fato de que lhes serão exigidos tributos normalmente, enquanto outras empresas contarão com expressiva e longa inexigibilidade tributária.

Não se pode ignorar, ainda, que a exigência retrospectiva do cadastro no Cadastur viola a impessoalidade da Administração Pública [6].  Isso porque a Administração Pública tem acesso a quem são os contribuintes cadastrados no Cadastur, de forma que tal exigência acaba por fazer do Perse um benefício fiscal direcionado e pessoalizado a contribuintes de delimitação precisa e já conhecida pelo próprio Ente concedente [7].

Ante todo o exposto, é inevitável não concluir pela inconstitucionalidade e ilegalidade na exigência de cadastro retrospectivo no Cadastur, estabelecido pela Portaria ME 7.163/21. Tendo a Lei 14.148/21 delegado à portaria do Ministério da Economia, apenas e tão somente, a delimitação dos Cnae contemplados pelo Perse, tem-se que a Portaria ME 7.163/21, apesar de adequada na forma e extensão em que cumpriu com tal determinação, acabou extrapolando dos seus limites de legitimidade, devendo ser reconhecida a inviabilidade jurídica de exigência de cadastro no Cadastur para enquadramento de empresas do setor turístico no Perse.

[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2ª Ed., 10. tir., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 14.

[2] Neste sentido, aplica-se por analogia o quanto previsto nos artigo 99 e 100, ambos do CTN.

[3] Artigo 150 (…) §6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no artigo 155, §2.º, XII, g.

[4] Sobre as limitações que a legalidade tributária exerce em matéria de concessão de benefícios e incentivos fiscais, vide: GUIMARÃES, Bruno A. François. Op. Cit., pp. 83-99.

[5] Por todos, vide: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª Ed., 22ª Tir., São Paulo: Malheiros, 2013, pp. 21-22; ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. 2ª Ed., São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 42-51.

[6] Especificamente sobre a impessoalidade na Administração Pública, vide: ÁVILA, Ana Paula Oliveira. O Princípio da Impessoalidade da Administração Pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

[7] Sobre a relação entre benefícios fiscais, livre concorrência e impessoalidade da Administração Pública, vide: GUIMARÃES, Bruno A. François. Op. Cit., p. 152 e ss.

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