Opinião

O paradoxo da sociedade aberta à luz de Karl Popper

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  • é juiz de Direito do TJ-MG doutorando em Direito pelo IDP mestre em Direito Constitucional pelo IDP docente da Escola Judicial (Ejef) do TJ-MG e professor colaborador do mestrado em administração pública da UFVJM.

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10 de novembro de 2022, 7h09

Embora o presidente Jair Bolsonaro tenha sido derrotado nas urnas, suas ações e gestos durante o seu mandato presidencial deixaram marcas profundas ao ponto de parte de seu eleitorado ter se achado no direito de, após a proclamação do resultado das eleições, interditar dezenas de rodovias federais com graves prejuízos a milhares de pessoas, ao setor industrial e aos governos estaduais.

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O filósofo liberal Karl Popper
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Enquanto esteve sentado na cadeira de presidente da República declarou publicamente (1) a possibilidade de intervenção militar pontual no Supremo Tribunal Federal; e (2) reiteradamente colocou em xeque a segurança do processo de contagem de votos da justiça eleitoral.

No primeiro caso, em maio de 2020, no curso da pandemia do coronavírus, o presidente da República, por meio de suas redes sociais, em conflito aberto com o STF — sob a alegação de que a corte estaria invadindo competências de outros poderes —, aproveitou-se da interpretação feita pelo jurista Ives Gandra da Silva Martins e invocou a possibilidade de intervenção militar pontual na Suprema Corte brasileira a partir de uma interpretação do artigo 142 da Constituição que permitiria às Forças Armadas agirem como uma espécie de instância de poder moderadora.

Foi necessário que diversos juristas e acadêmicos se pronunciassem sobre a completa impossibilidade jurídica dessa interpretação dada ao artigo 142 da Constituição porque, em resumo, ela desrespeitava a própria essência do texto constitucional, que, além de ser um marco na reconstrução da democracia, estabelece como fundamento a separação de poderes.

No segundo caso, Bolsonaro iniciou um ataque sistemático à justiça eleitoral, inflamando o povo a partir da ideia de fraude das urnas eletrônicas. Ao todo, o presidente da república fez mais de 80 alegações de fraude nas urnas eletrônicas, apontando sempre suposta fragilidade do processo de votação no país. Seus muitos pronunciamentos e ataques à justiça eleitoral foram suficientes para colocar em pauta no debate público um tema que até então sequer era considerado um problema para a população brasileira (segurança do processo de contagem dos votos das urnas). A deputada Bia Kicis foi a autora da proposta de Emenda à Constituição nº 135/2019, que estabelecia a obrigatoriedade do voto impresso, tendo sido rejeitada no plenário da Câmara dos Deputados por não ter alcançado o quórum qualificado.

De todo modo, o sentimento de desconfiança popular não foi sepultado, tanto que o Tribunal Superior Eleitoral precisou iniciar uma campanha contra a desinformação.

Karl Popper publicou a primeira edição de A sociedade aberta e seus inimigos em 1945 e seu propósito maior, ao estabelecer uma crítica filosófica a Platão, Hegel e Marx, foi formular uma defesa das democracias liberais em razão do seu esforço de ataque aos totalitarismos nacional-socialista e comunista. (POPPER, 2021).

Popper (2021) investiu contra as atitudes intelectuais que ele considerava inimigas da sociedade aberta. Para ele, a sociedade aberta é aquela que reconhece a validade do Direito e sua força, mas nem por isso deixa de exercer a crítica necessária para aperfeiçoar as leis e os costumes, alterando-os se necessário. A metodologia de aplicação do Direito fundada no positivismo jurídico não é descartada pela sociedade aberta, o que significa que ela deve ser respeitada pelos aplicadores do Direito, porém a sociedade aberta vai além do positivismo jurídico ao se organizar politicamente com liberdade e responsabilidade moral do indivíduo para não permitir a fossilização das instituições. (POPPER, 2021).

A sociedade aberta, portanto, visa ao contínuo e permanente aprimoramento das instituições públicas. E a liberdade de crítica racional, para Popper (2021), é o traço essencial que distingue uma sociedade aberta de uma sociedade fechada.

A ideia filosófica de uma sociedade aberta é moral porque pressupõe que o indivíduo deve agir com responsabilidade. Ela é pluralista na medida em que milita em favor da liberdade de expressão mediante a coexistência de diferentes práticas, tradições e modos de pensar. Porém, ela não é pluralista como um fim em si mesma porque é condição indispensável que isso seja instrumentalizado para a melhoria social. (POPPER, 2021).

A crítica às instituições democráticas é da essência da ideia de sociedades abertas, mas isso deve ser feito mediante honestidade intelectual e com autocrítica, vale dizer, com respeito recíproco. (POPPER, 2021, p. 236).

Os antidemocratas são inimigos da sociedade aberta. (POPPER, 2021, p. 237).

Ao formular o paradoxo da tolerância, Popper (2021, v1, p. 388 et seq.) acredita que filosofias intolerantes fazem parte de sociedades abertas e, por isso, enquanto for possível a convivência, os inimigos devem ser admitidos desde que seja possível contrariá-los com argumentos racionais, além do controle que também deve ser feito pelo Estado de Direito. Um inimigo da sociedade aberta que prega uma filosofia intolerante não está imune às consequências jurídicas da sua crítica livre/exercício da liberdade de expressão, desde que, em um primeiro momento, não seja censurado por isso. Exemplificando, um racista, misógino ou apoiador da ditadura não deve, de imediato, ser censurado por defender tais ideias, mas certamente poderá ser responsabilizado juridicamente se o Direito dispuser sobre alguma consequência jurídica para esse comportamento.

Embora o presidente da República tenha se valido do direito fundamental à liberdade de expressão ao invocar a possibilidade de uma intervenção militar pontual no Supremo Tribunal Federal, sua declaração em suas redes sociais sobre essa interpretação do artigo 142 da Constituição da República pode ser compreendida como uma ação inimiga da sociedade aberta popperiana porque invocou, sem medir as consequências de sua fala, a possibilidade de um mecanismo militar e, portanto, não democrático, intervir em um órgão judicial afeto ao Poder Judiciário quando a própria Constituição da República estabelece, em seu artigo 2º, que os poderes são harmônicos e independentes entre si.

Tratou-se, no fundo, de uma disputa discursiva porque Jair, desde a sua eleição, fazia declarações abertamente favoráveis à ditatura militar, motivo pelo qual a sua declaração sobre uma intervenção militar no Supremo Tribunal Federal não foi encarada como bravata de um presidente acostumado a fazer pronunciamentos polêmicos. (BACHUR, p. 159-160).

Em um sistema que adota a separação de poderes, a Constituição pressupõe procedimentos constitucionais que contam com mecanismos procedimentais para corrigir desvios ou abusos dos demais poderes. A Constituição da República dispõe em seu artigo 52, inciso II (BRASIL, 1988), que compete privativamente ao Senado Federal processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade. Se Jair Bolsonaro nutria profunda insatisfação com o teor das decisões judiciais do STF, que, segundo ele, estariam invadindo competências de outros poderes, competia a ele, como de fato o fez, formular um pedido de impeachment em face do ministro que estivesse agindo de tal modo e aguardar a deliberação sobre essa petição que incumbe ao presidente do Senado Federal.

Jair Bolsonaro chegou a protocolar pedido de impeachment em face do ministro Alexandre de Moraes, porém o presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco, rejeitou a pretensão, arquivando a petição. Não se deve perder de vista que procedimento semelhante também foi adotado pelo presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arthur Lira, que, das centenas de pedidos de impeachment formulados contra o presidente da república, alguns ele rejeitou de plano e outros ainda aguardam sua deliberação preliminar.

Os ataques de Jair Bolsonaro às urnas eletrônicas também podem ser caracterizadas como inimigas da sociedade aberta porque seus pronunciamentos não estão imbuídos de honestidade intelectual e visando ao aperfeiçoamento desse dispositivo que vem sendo empregado pela justiça eleitoral há mais de 25 anos. Desde 1996 nunca houve no Brasil um indício sequer de defraudação desse sistema, que é permanentemente submetido a rigorosos testes de auditagem e fiscalização por diversos órgãos públicos e privados. O próprio presidente, no passado, fez a defesa do sistema eletrônico sustentando a maior confiabilidade desse processo de contagem de votos (BRASIL, 2022) e, por esse mesmo sistema, foi eleito deputado federal entre 2001 e 2018, quando deixou a câmara para ocupar o mandato da presidência da república no palácio do planalto.

Embora possa parecer que suas declarações acusatórias sobre as urnas eletrônicas estejam dentro do que está previsto pela sociedade aberta que protege o exercício da crítica livre, não é esse o sentido construído por Popper, que foi um humanitário preocupado em sustentar um convívio social no qual cada indivíduo exerça a liberdade de defender suas ideias e criticar governos para melhorar as instituições, aperfeiçoando-as gradualmente.

Analisando o caso do governo de Jair Bolsonaro no atual momento brasileiro, Freitas Filho (2022, p. 257-260) descreve que o presidente estaria incorrendo em uma espécie de assédio institucional porque seus atos e falas têm o sentido de minar os valores e os fundamentos democráticos. Mudança de dirigentes, vacância proposital de cargos, demissões e indicações de pessoas estranhas à cultura institucional, sem a qualificação curricular ou a experiência necessária ao exercício da função, seriam alguns exemplos de um padrão sistêmico e sistemático de ação de desmaterialização da política: 1) Jair age com desprezo à necessidade de justificação argumentativa e de convencimento; 2) procura vencer as resistências institucionais com desidratação financeira, deslocamento de competências e gestão orientadas por valores antagônicos aos da instituição; e 3) desconstrói discursivamente as instituições.

Essa desconstrução institucional por meio do assédio está no campo da deslealdade e da falta de boa-fé do interlocutor, já que se trata de um método de governo que visa ao conflito. (FREITAS FILHO, 2022, p. 258-259). Freitas Filho (2022, p. 259-260) observa, com razão, que instâncias de governo, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Nacional das Artes (Funarte) não estão imunes aos influxos de uma determinada visão de mundo e de governo, algo que é próprio da alternância de poder em uma democracia. O assédio institucional, contudo, vai muito além disso porque é uma estratégia deliberada de destruição institucional que impossibilita seu funcionamento, sendo uma ação fora dos parâmetros democráticos. O exemplo mais claro é a nomeação de uma pessoa que nega o consenso sobre o que significou a escravidão no Brasil para a Fundação Palmares.

De todo modo, são ações que não possuem uma solução jurídica dogmática clara porque a Lei nº 1.079, que define os crimes de responsabilidade e o respectivo procedimento, entrou em vigor em 1950 e, desde então, não passou por nenhum processo de atualização ou de reforma integral para lidar com esses problemas, o que representa um risco para a democracia brasileira.

Se a sociedade brasileira quiser preservar a democracia, o momento é propício para que os representantes do povo se reúnam e reflitam com serenidade até que ponto certos direitos podem ser exercidos sem nenhuma consequência jurídica.

 


Referências

BACHUR, João. O sentido do artigo 142 da Constituição Federal de 1988. In: VALE, André Rufino do (org.). Forças armadas e democracia no Brasil. A interpretação do art. 142 da Constituição de 1988. Brasília: Observatório Constitucional, 2020.

FREITAS FILHO, Roberto. Donald, a Rainha e a fragilidade da Democracia. In: MINUTOLI, Francesca (revisora). Passaggi Constituzionali. Anno II, nº 3, Luglio 2022.

POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Primeiro Volume: O sortilégio de Platão. Lisboa: Edições 70, 2021.

POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Segundo Volume: Hegel e Marx. Lisboa: Edições 70, 2021.

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