Opinião

Scanc e variação volumétrica dos combustíveis

Autores

  • é sócio fundador de Murayama & Affonso Ferreira Advogados graduado em Direito e Ciências Contábeis pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e mestre em Direito Tributário pela Uerj membro efetivo da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) fundador e conselheiro do Grupo de Debates Tributários do Rio de Janeiro (GDT-Rio).

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  • é advogada graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro pós-graduada em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes com extensão em contabilidade geral e tributária pela Fundação Getúlio Vargas.

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  • é advogada em Murayama & Affonso Ferreira Advogados graduada em Direito pelo Ibmec com LL.M. em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e extensão em Tributário pela Emerj.

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10 de novembro de 2022, 20h33

 É antiga a controvérsia envolvendo o setor de distribuição de combustíveis e a Fazenda Pública estadual quanto à exigência do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias (ICMS) sobre o que o Fisco entende representar um "ganho" no volume de combustível, com a consequente não emissão de documento fiscal e o respectivo não pagamento do tributo, que seriam obrigações supostamente devidas.

Ocorre que este "ganho" é inexistente, como defende o contribuinte — e tem sido amplamente endossado pelo Poder Judiciário —, não passando de alterações físico-químicas sofridas pelo combustível em razão da temperatura a que ele é exposto no processo de distribuição — a chamada "variação volumétrica".

Tais autuações indevidas decorrem da identificação, pelo Fisco, dos ajustes de perdas e ganhos imputados pelo contribuinte no Scanc (Sistema de Captação e Auditoria dos Anexos de Combustíveis).

Contudo, as referidas alterações são permitidas por tal programa, dentro dos limites ali previstos, e não representam ajustes na contabilidade do estabelecimento; portanto, não é exigida a emissão de documentos fiscais, uma vez que estes ajustes visam tão somente adequar o estoque constante no sistema ao estoque físico.

Nada obstante, os Fiscos estaduais e distrital entendem que a diferença de volume no estoque apontada no Scanc deve ser regularizada com a emissão da correspondente nota fiscal, inclusive com o recolhimento do imposto estadual, se for o caso.

É neste contexto que o presente estudo pretende examinar as particularidades de tal operação, os motivos da não emissão de nota fiscal complementar e, por consequência, a ilegalidade das autuações lavradas pela fiscalização.

1. Ajustes de perdas e ganhos no Scanc e a ausência de obrigatoriedade de emissão de nota fiscal a cada ajuste volumétrico do combustível
A distribuição de combustíveis envolve uma grande movimentação de volumes em graneis líquidos. Tal movimentação abrange o transporte aéreo e o marítimo, sendo natural que, no fluxo das operações, o volume dos combustíveis se altere para mais ou para menos em razão da variação da temperatura.

Neste contexto, o Scanc é um aplicativo destinado à apuração e à demonstração dos valores de repasse, dedução, ressarcimento e complemento do ICMS incidente sobre as operações interestaduais com combustível derivado de petróleo em que o imposto tenha sido retido anteriormente.

Com base no manual do programa, aprovado pelo Ato Cotepe ICMS nº 47/03, os lançamentos de perdas e ganhos no Scanc não estão relacionados diretamente à necessidade de registros fiscais de ajustes de estoque.

Com relação ao registro de estoque, o item 4.6 do Manual do Scanc prevê que o cadastramento do estoque inicial será exigido apenas no primeiro mês de geração, já que nos meses subsequentes o programa calculará a partir do estoque final do mês anterior. Dessa forma, não é necessário informar, periodicamente, o estoque inicial.

Sobre as perdas ou ganhos, deve ser observado o item 4.8 do Manual do Scanc:

"Para os Distribuidores de Combustíveis Líquidos, o lançamento de Perda ou Ganho deverá levar em consideração o Volume da Correção Volumétrica indicada no Quadro 1 do Anexo I."

Em outras palavras, deverão ser lançados os valores líquidos de variação de estoque. Por exemplo:

"Se declarada entrada de Gasolina A oriunda de Refinaria, volume de 1.000 litros;
– E inserido no Quadro 1 do Anexo I na linha do FCV a Correção Volumétrica de 5 litros;
– E declaradas Saídas de 600 litros;
– O Scanc apresentaria o Estoque Final de 405 litros.
– Se o Estoque Físico apresentar 407 litros, lançar 2 litros como ganhos.
– Se o Estoque Físico apresentar 405 litros, não lançar variação.

– Se o Estoque Físico apresentar 402 litros, lançar 3 litros como perdas."

Sobre a variação volumétrica (Ato Cotepe ICMS nº 48/2015), há orientação que contempla o FCV (Fator de Correção de Volume), no sentido de que as distribuidoras deverão observar:

"As Notas Fiscais faturadas pelo Produtor Nacional de Combustíveis (Refinarias ou suas bases), Importador, CPQ ou Formulador, o Distribuidor deverá contemplar o volume de combustível convertido a 20ºC. Dessa forma, o distribuidor deverá cadastrar a Nota Fiscal de Entrada informando os valores de Volume e Base de Cálculo obtidos da Nota Fiscal. A Correção Volumétrica será calculada automaticamente pelo programa e lançada no Quadro 1 do Anexo I;
As Notas Fiscais de saída de combustíveis líquidos dos Distribuidores, pressupõe faturamento a temperatura ambiente. Desta forma, não deverá ser aplicado o FCV para se converter volume. Lançar no Scanc os valores de volume e Base de Cálculo, conforme o caso, conforme constar na Nota Fiscal."

Por sua vez, conforme previsão do Ato Cotepe ICMS nº 13/2014, alterado pelo Ato Cotepe ICMS nº 48/2015, Quadro 2, Anexo I, para as entradas de gasolina ou diesel, quando o remetente for o produtor nacional de combustíveis, refinaria ou suas bases, importador, CPQ ou formulador, as quantidades calculadas no campo "Total do Remetente" do quadro 3 deverão ser ajustadas com a aplicação do FCV para a Unidade da Federação (UF) do emitente do relatório. Esta aplicação é automática no Scanc.

Para os estabelecimentos importadores, conforme previsto no Convênio ICMS nº 110/07, o faturamento das operações de entrada, bem como de saída dos estabelecimentos importadores de combustíveis, deverá contemplar o volume de combustíveis convertidos a 20ºC. Desta forma, o estabelecimento importador deverá observar:

"As Notas Fiscais de Entrada, decorrentes da importação ou recebimento de outros agentes regulados e autorizados pela ANP a comercializar com importadores de combustíveis, deverão considerar o volume convertido a 20oC e a Base de Cálculo do ICMS ST conforme previsto na cláusula nona do Convênio ICMS 110/07, ou seja, aplicando o FCV no cálculo da MVA conforme a UF do importador;
As Notas Fiscais de Saída dos estabelecimentos importadores de combustíveis deverão ser faturadas informando o volume de combustível convertido a 20C, bem como a informação da Base de Cálculo ST, conforme o caso, considerando a previsão da cláusula nona do Convênio ICMS 110/07, aplicando o FCV no cálculo da MVA conforme a UF destinatária do produto (subitem 'b2' do item 3.5.2.10. do Ato Cotepe ICMS 13/14)."

Assim, o Scanc já se encontra adequado à aplicação das normas descritas acima, de forma que o importador deverá sempre informar as notas fiscais de entrada e saída considerando o volume a 20ºC, não havendo o acréscimo de volume pelo FCV. Para as distribuidoras, as operações no Scanc considerarão:

"- Nas operações de entradas de combustível com origem em REFINARIA ou suas bases, CPQ, IMPORTADOR ou FORMULADOR, será considerada a temperatura a 20oC, havendo o acréscimo de volume pelo FCV no Anexo I.
– Nas operações de saídas de combustível promovidas pelo DISTRIBUIDOR, o SCANC considerará o volume a temperatura ambiente, não havendo qualquer ajuste pelo FCV."

Para as variações de estoque de gasolina A, gasolina A premium, óleo diesel A e óleo diesel A S10, basta selecionar um desses produtos na lista e cadastrar o valor da variação.

Para variações de estoque de gasolina C, gasolina C premium, óleo diesel B S500 e óleo diesel B S10, deverá ser selecionado na lista de produtos o correspondente derivado de petróleo puro, cadastrando-se a variação de estoque na proporção deste na mistura. Exemplos:

"- se for constatada perda de 100 litros de Gasolina C, deverá ser cadastrada perda, selecionando o produto Gasolina A e informado o volume de 73 litros (em razão da proporção de 27% de Etanol Anidro na mistura de Gasolina C);
– se for constatado ganho de 100 litros de Óleo Diesel B S10, deverá ser cadastrado ganho, selecionando o produto S10 Diesel S10 e informado o volume de 93 litros (em razão da proporção de 7% de B100 na mistura)."

Ou seja, perdas e ganhos na atividade de distribuição de combustíveis atacadista visam meramente ajustar os registros contábeis ao estoque físico, por ocasião do inventário físico de produtos.

Dessa maneira, o lançamento de perdas ou ganhos no Scanc não representa a necessidade de ajuste na contabilidade ou no registro fiscal, servindo apenas para o ajuste do estoque final que será iniciado no próximo período, com a finalidade de aproximar, o máximo possível, ao estoque físico inventariado.

Isto porque o sistema Scanc não faz uma correta contabilização de saldos, podendo-se citar, dentre as "falhas" do programa, os seguintes exemplos:

a) FCV -> O Fator de Correção de Volume é calculado pela média da temperatura da UF, enquanto o controle do estoque considera a temperatura do momento e em local específico. Além disto, o FCV somente foi implementado em 2016;

b) Notas fiscais com benefício fiscal de isenção não são totalizadas no Scanc;

c) Produtos sem substituição tributária na origem ou destino não são totalizadas corretamente no Scanc; e

d) Notas fiscais de complemento de preço não são registradas corretamente, por deficiência do programa.

Ademais, não é encontrada nos manuais do Scanc, em Convênios ou em Atos Cotepe ICMS qualquer orientação para a emissão de notas fiscais sobre os lançamentos de perdas e ganhos, tampouco para recolhimento de ICMS, não se devendo olvidar que o produto já foi oferecido à tributação na refinaria.

Logo, percebe-se que tributar o excedente oriundo de dilatação térmica é bitributar as partículas de combustível cujo imposto já foi pago na aquisição.

Portanto, a atividade de distribuição dos combustíveis em larga escala remete a ocorrências de situações de perdas e ganhos, nas quais alguns produtos são mais voláteis (gasolina, QAV) e outros mais densos e menos voláteis (óleo diesel), razão pela qual, em decorrência dessa diferenciação, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), por meio da Portaria DNC nº 26/1992, permite a variação de até 0,6% nos volumes.

Assim, as distribuidoras devem manter seus controles de estoque e promover os ajustes para as situações de perdas e ganhos dentro dos limites impostos pela ANP e, no Scanc, levar os ajustes a efeito apenas para corrigir as deficiências do programa e, consequentemente, o saldo final apurado no Scanc, que será o inicial do período seguinte.

É em razão disso que não há que se falar em exigência de emissão de documento fiscal para tanto, visto que o que se pretende é apenas adequar o estoque de combustível no sistema ao estoque físico.

Assim, se os ganhos ou as perdas sofridas pelos combustíveis se encontrarem dentro do percentual de 0,6%, é ilegal a autuação pautada na "omissão" de emissão de nova nota fiscal da operação e, por conseguinte, de recolhimento do imposto estadual.

Diante das considerações acima, é possível concluir que as autuações pautadas na exigência de ICMS e multa pelos ajustes promovidos no Scanc pelas distribuidoras de combustíveis são indevidas, uma vez que estes ajustes visam unicamente adequar os registros contábeis ao estoque físico, por ocasião do inventário de produtos.

Por sua vez, considerando a volatilidade natural dos combustíveis, para que haja uma margem de erro intrínseca a estas operações, foi definido pela própria ANP o percentual de variação aceitável de até 0,6%, para mais ou para menos.

Desta forma, a solução do problema depende de uma futura e esperada alteração normativa conjunta a ser implementada pelas Fazendas estaduais e distrital, bem como da adequação das regras procedimentais das operações envolvendo a comercialização de combustíveis, como é o caso do Scanc, destinada a viabilizar os ajustes necessários pelas distribuidoras e fazer cessar as indevidas autuações desta natureza, trazendo segurança jurídica para todo o setor.

Autores

  • é sócio fundador de Murayama & Affonso Ferreira Advogados, graduado em Direito e Ciências Contábeis pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), pós-graduado em Direito Tributário, pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e mestre em Direito Tributário pela Uerj, membro efetivo da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e fundador e conselheiro do Grupo de Debates Tributários do Rio de Janeiro (GDT-Rio), além de autor e coordenador de livros e artigos científico-tributários e professor convidado do FGV Law Program.

  • é advogada em Murayama & Affonso Ferreira Advogados, graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduada em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes, com extensão em contabilidade geral e tributária pela Fundação Getúlio Vargas.

  • é advogada em Murayama & Affonso Ferreira Advogados, LL.M. em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e extensão em Tributário pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj).

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