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O ICMS-Difal está sujeito à anterioridade

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

10 de novembro de 2022, 9h36

Encontram-se em julgamento no Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) as ADIs 7.066, 7.070 e 7.078,[1] sobre o regime do ICMS-Difal instituído com a Lei Complementar nº 190/2022, conforme o que foi decidido na ADI nº 5.469.[2] Com isso, passou-se a debater se houve, ou não, majoração ou criação de novo tributo. Na hipótese positiva, o princípio da anterioridade exigiria que a cobrança só pudesse ser feita no exercício financeiro seguinte.  

Spacca
O ICMS-Difal foi introduzido no ordenamento pela EC nº 87/2015, para aprimoramento do federalismo cooperativo horizontal.

Como aprimoramento da técnica das alíquotas interestaduais, o ICMS-Difal aplica-se à mercadoria quando deslocada de um estado produtor, onde não haja agregação de valor, ao estado de destino do consumidor final. Com isso, na primeira etapa aplica-se a alíquota do local de origem. Quando da entrada no estado de destino, deve-se subtrair aquele percentual da alíquota interna do estado de destino.  

Neste regime, a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS-Difal dependerá da situação jurídica do vendedor e do comprador. O destinatário da mercadoria será o responsável pelo recolhimento do Difal quando for contribuinte do ICMS; e o remetente, quando o destinatário não for contribuinte do ICMS. Os consumidores finais que adquirem as mercadorias para o consumo, sem novo processo de transformação, não serão contribuintes do ICMS e, por isso, não estão obrigados a recolher o ICMS-Difal.

Antes da EC nº 87/2015, ao ser vendida para um consumidor final situado em outro estado, a operação de dada mercadoria revertia o imposto ao estado de origem. Com a mudança, o ICMS-Difal passou a ser recolhido, progressivamente, para o estado no qual se localize o consumidor final do produto. Desde 2019, 100% de suas alíquotas seguem essa metodologia.

Vieram, assim, os Convênios ICMS nº 03/2015 e 93/2015, que estenderam o Difal, em síntese, aos optantes do Simples e determinaram a obrigatoriedade de seu recolhimento nas vendas interestaduais para não contribuintes do ICMS, respectivamente.

Como bem pontuado pelo STF no RE nº 1.287.019/DF,[3] conteúdos reservados às normas gerais somente podem ser veiculados mediante lei complementar, na forma do artigo 146, III, da CF. O entendimento deu origem ao Tema nº 1.093: "A cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional nº 87/2015, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais".

Excetuada a relação do ICMS-Difal com os optantes do Simples, o STF modulou os efeitos da decisão, publicada em 15/3/2022, para que produzisse efeitos a partir de 2022, com o propósito de salvaguardar relações já constituídas entre o Fisco e os contribuintes e preservar a segurança jurídica. Assim, os convênios continuaram vigentes até dezembro de 2021, a permitir que o Congresso pudesse editar a lei complementar em tempo hábil.

O artigo 3º da Lei Complementar nº 190/2022, que regulamentou o Difal, prescreve sua entrada em vigor na data de sua publicação (04/01/2022).

Em seguida, o convênio nº 236/2022 determinou que a exação poderia ser imediatamente cobrada, sob o argumento de que, em hipótese contrária, a perda arrecadatória estadual atingiria a marca de quase R$ 10 bilhões.

Em vista disso, a data da entrada em vigor passou a ser motivo de controvérsias. Isto porque, para os contribuintes, a metódica do Difal implica a majoração de tributo já existente, o ICMS, em afronta aos princípios da anterioridade anual e nonagesimal. Para a Administração Tributária dos estados, por sua vez, a Lei Complementar nº 190/2022 apenas alterou a Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), sem majorar ou instituir novo imposto, pois somente regeu a distribuição de receitas.

Não há dúvidas de que o ICMS-Difal majora — e em larga escala — o regime do ICMS, o que atrai a proteção do princípio da anterioridade do disposto no artigo 150, III, "b" e "c", da CF. E mais, segundo a EC nº 87 para os bens e serviços que se destinem em outro estado "adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual".

Como disse em outras oportunidades, o STF já assentou, desde a ADI nº 939/DF, que o princípio da anterioridade anual é cláusula pétrea, como proteção de direito fundamental, nos termos do artigo 60, § 4º, IV, da CF. Nas palavras do então relator, ministro Sydney Sanches, o constituinte derivado não pode estabelecer exceções à anterioridade, sob pena de que "o princípio e a garantia individual tributária, que el[a] encerra, ficaram esvaziados, mediante novas e sucessivas emendas constitucionais, alargando as exceções, seja para impostos previstos no texto original, seja para os não previstos".[4]

O acórdão da ADI nº 5.733/AM afastou, igualmente, o imediatismo do Difal. Na ocasião, decidiu o Pleno que para os fundos nela previstos, à exemplo do FCP, "a Constituição Federal particulariza apenas as consequências financeiras da sua arrecadação (vinculação e não repartição), sem fazer qualquer objeção a que se apliquem, quanto ao seu modo de ser impositivo, as limitações exigíveis das espécies tributárias em geral".[5] Argumentos teleológicos, assim, são desprovidos de força jurídica suficiente para afastar a anterioridade.

O relator das ADIs nºs 7.066, 7.070, 7.078, ministro Alexandre de Moraes, indeferiu a medida cautelar que postulava o início da cobrança do Difal para 2023. No seu entendimento, não há como vislumbrar ofensa ao princípio da anterioridade, pois o ICMS-Difal trataria de regular tributo já existente sem aumento do produto final arrecadado, o que não afetaria o princípio da não-surpresa. E observa ainda que o decurso de mais de 90 dias desde a edição da Lei Complementar nº 190/2022 descaracterizaria o perigo da demora, requisito intrínseco de apreciação das liminares.

A simples observação do processo de edição da Lei Complementar nº 190/2022 atesta que os Poderes Legislativo e Executivo não se mobilizaram com a urgência que se impunha. Seu núcleo originário, a PLP nº 32/2021, demorou a ser votada no Congresso Nacional e foi enviada ao Palácio do Planalto apenas em 20/12/2021.  Sua sanção presidencial tardia veio somente após a virada do ano de 2021. O pequeno lapso temporal, entretanto, não pode ser utilizado como artifício para evitar obediência à Constituição.

Nesse diapasão, a Advocacia-Geral da União (AGU), em documento acostado nos autos da ADI nº 7.070, além de expressar esse entendimento, fez menção correta à ADI nº 5.469/DF para refutar o Convênio nº 236/2022, na qual o STF apontou que "não pode o convênio interestadual suprir a ausência de lei complementar, dispondo sobre obrigação tributária, contribuintes, bases de cálculo/alíquotas e créditos de ICMS nas operações ou prestações interestaduais com consumidor final não contribuinte do imposto".[6]

Deveras, uma vez que a Lei Complementar nº 190/2022 ainda não está vigente, o Convênio nº 236/2022, que assevera a aplicação imediata do ICMS-Difal, usurpa a competência da União prevista no artigo 146, III, da CF.  Logo, o acertado posicionamento da AGU está em sintonia com o artigo 150, III, "b" e "c", que preveem os princípios da anterioridade nonagesimal e anual.  

Em conclusão, como se trata de imposto sujeito à anterioridade anual, e dada a comprovada majoração do imposto, o ICMS-Difal somente poderá ter sua cobrança admitida a partir de 1º de janeiro de 2023, observado o previsto no artigo 150, III, "b" da Constituição.

 


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). ADIs nºs 7.066, 7.070 e 7.078. Relator ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, em julgamento.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. ADI º 5.469. Relator Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 24/02/2021, DJe 25/05/2021.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. RE nº 1.287.019. Relator ministro Marco Aurélio, Redator do Acórdão Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 24/02/2021, DJe 25/02/2021.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. ADI nº 939. Relator Ministro Sydney Sanches, Tribunal Pleno, j. 15/12/1993, DJ 18/03/1994.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. ADI nº 5.733. Relator Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. 20/09/2019, DJe 03/10/2019.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. ADI º 5.469. Relator Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 24/02/2021, DJe 25/05/2021.

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    é professor titular de Direito Financeiro e Livre-Docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro). Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA). Advogado.

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