Opinião

Discussões em torno da regulamentação do uso medicinal de canabidiol

Autores

9 de novembro de 2022, 16h04

O Conselho Federal de Medicina (CFM) sustou temporariamente os efeitos da Resolução CFM 2.324/2022. Embora se apresente como instrumento destinado a aprovar o uso de canabidiol (CBD) ao tratamento de epilepsias em crianças e adolescentes (Síndrome de Dravet, Lennox-Gastaut e Complexo de Esclerose Tuberosa), o ato normativo veda aos médicos a prescrição do produto para indicação terapêutica diversa, de modo irrestrito. O documento foi publicado em 25 de outubro de 2022.

123RF
123RF

A sustação se deu em virtude da repercussão gerada entre os médicos e pacientes que defendem a necessidade de revisão do texto.

A designação de consulta pública
Na exposição de motivos do ato de sustação, o CFM destacou que não abre mão de ampliar as discussões, que desta vez contarão não apenas com a participação de entidades médicas e de médicos, mas também de cidadãos comuns (sociedade civil). Ressalvou, no entanto, sua prerrogativa de disciplinar o exercício profissional da medicina e de proteger a sociedade.

O CFM deve reexaminar o conteúdo da norma após o encerramento da consulta pública. As contribuições podem ser enviadas até 23 de dezembro de 2022.

Temas sensíveis a serem debatidos
Para essa fase de discussão, há diversos aspectos da Resolução que merecem reflexão, relacionados 1) à abrangência do seu objeto, 2) à competência do CFM para sua edição, 3) à compatibilização dos tais atos e ao diálogo (ou ausência dele) com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária ("Anvisa"), notadamente no que diz respeito ao exercício conjugado de competências comuns e complementares, e 4) aos impactos no fornecimento de produtos à base de CBD pelo Sistema Único de Saúde (SUS), caso a redação seja mantida.

Ressalva elementar: o conteúdo da norma anterior (Resolução CFM 2.113/2014)
É importante destacar que o CFM já limitava, de forma exclusiva, o uso compassivo de CBD ao tratamento de epilepsias refratárias às terapias convencionais (artigo 1º, Resolução CFM 2.113/2014). Sob essa perspectiva, a Resolução CFM 2.324/2022 não estabelece propriamente uma inovação.

No interregno transcorrido desde a edição da referida norma até a novel Resolução, a evolução científica e das regulamentações da Anvisa autorizativas de comercialização e importação de CBD estimularam seu uso e propiciaram a visualização de resultados satisfatórios em pacientes com condições diversas da epiléptica (transtornos de ansiedade, por exemplo).

Até então, no entanto, não havia identificação específica das moléstias destinatárias do tratamento com CBD, e muito menos vedação específica imposta aos médicos para prescrever o produto para tratamentos diversos.

Amplitude do objeto da Resolução
No que se refere à abrangência, o principal aspecto relaciona-se à vedação da prescrição de produtos à base de CBD fora das hipóteses previstas pela norma.

Objetivamente, estabeleceu-se conduta proibitiva aos médicos. A inobservância de tal limitação pode ensejar a instauração de processo administrativo específico e aplicação de sanções em face do médico prescritor, segundo disposições do Código de Ética Médica, aprovado pelo CFM por meio da Resolução CFM 1.931/2009 (Capítulo III, artigo 18; e Capítulo XIV, inciso II).

Regulamentação da atividade médica pelo CFM e suas competências
A Lei 3.268/1957 estabelece as regras de organização e competência do CFM. Segundo a Lei, o CFM e os Conselhos Regionais de Medicina são responsáveis pela supervisão da ética profissional, bem como pelo julgamento e disciplina da classe médica (artigo 1°, Lei 3.268/1957).

Nessas circunstâncias, compete ao CFM "expedir normas para o desempenho ético da Medicina" e "editar normas para estabelecer o caráter experimental de procedimentos em Medicina, a autorização ou a vedação de sua prática pelos médicos, autorizando ou vedando a sua prática pelos médicos" (artigo 33, incisos XIII e XIV, Decreto 44.045/1958). A Lei 12.842/2013, que regulamenta o exercício da medicina, contém disposições semelhantes (artigo 7°, caput e parágrafo único) [1].

Logo, já com esteio em tais disposições, afere-se que o CFM de fato é competente para regulamentar assuntos dessa natureza.

A regulamentação da atividade médica de prescrição também deve ser compatível com as demais normas editadas pelo CFM, tais como o Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução CFM 1.931/2009. Nesse cenário, vale destacar os princípios assegurados pelo Código de Ética Médica.

Dentre eles, estão os princípios da autonomia do médico e do paciente (Capítulo I, inciso VII, VIII e XXI do Código). A atividade médica deve garantir a harmonização de tais princípios na tomada de decisões, o que se materializa por meio da aceitação das escolhas de seus pacientes quanto aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos propostos, desde que haja motivação técnica própria e obtenção de consentimento do paciente.

Em síntese, e com base no Código de Ética Médica, é possível dizer que a atividade de prescrição médica exigirá a motivação técnica, a obtenção de consentimento do paciente ou de seu representante legal e a assunção de responsabilidade pelo médico de qualquer ato profissional que tenha praticado ou indicado (capítulo I, inciso XXI; capítulo III, artigo 3°, capítulo IV, artigo 22; capítulo V, artigo 32).

A demonstração da motivação técnica está usualmente associada ao uso dos meios disponíveis de diagnóstico e tratamento cientificamente reconhecidos e a seu alcance. Alude-se também ao dever de utilizar a terapêutica correta, quando seu uso estiver liberado no país (capítulo XII, artigo 102).

Especificamente sobre o uso de terapêutica experimental, na qual se insere o uso de CBD, o Código de Ética Médica dispõe que "é permitida quando aceita pelos órgãos competentes e com o consentimento do paciente ou de seu representante legal, adequadamente esclarecidos da situação e das possíveis consequências".

Atos normativos da Anvisa, suas competências e a relevância da atuação conjugada do CFM com a agência
A Anvisa atua no ato de concessão da autorização para comercialização, dispensação e importação de medicações, tanto em face de laboratórios, como perante pessoas físicas. Dentre suas atribuições institucionais, inserem-se também a fiscalização (e aprovação) da regularidade da documentação técnica fornecida pelos interessados, bem como eventual suspensão ou cancelamento da autorização concedida nos casos em que o detentor da autorização deixe de atender às exigências regulatórias (artigo 17, §2°, RDC 327/2019).

Em linhas gerais, a disponibilidade de medicações para uso em território nacional depende da sua liberação pela agência.

O necessário alinhamento entre CFM e Anvisa em torno do CBD
A demanda pela regularização de produtos obtidos da planta Cannabis sativa é cada vez maior, para variadas finalidades terapêuticas.

Nesse contexto, a Anvisa criou alternativas regulatórias para possibilitar a disponibilização dos produtos aos interessados, ainda que sem ter concedido o registro das medicações ("uso compassivo").

Diante dessa realidade intransponível, e de um exame sistemático do Código de Ética Médica e demais atos normativos do CFM, verifica-se a indispensabilidade de se estabelecer um diálogo institucional do referido órgão de classe com a Anvisa sobre os produtos à base de CBD.

A Resolução de Diretoria Colegiada ("RDC") n° 327/2019 da Anvisa
O ato normativo em questão dispõe sobre os procedimentos aplicáveis à fabricação, importação, comercialização, monitoramento, fiscalização, prescrição e dispensação de produtos que contenham CBD.

A autorização é concedida a laboratórios que desejem comercializar esses produtos no Brasil. Atualmente, há vinte produtos nesse perfil que possuem autorização emitida pela Anvisa [2].

A Anvisa estabelece os limites de concentração de CBD no produto (artigo 4°) e condiciona a prescrição dos produtos de CBD aos casos de inexistência de outra possibilidade de tratamento (artigo 5°). A restrição deriva precisamente da liberação compassiva do seu uso  sem registro, portanto.

Tais regras para prescrição, aliás, estão alinhadas às disposições do Código de Conduta Médica. Dentre os artigos 48 a 50, da RDC 327/2019, a Anvisa impõe como requisitos 1) a demonstração de que não há alternativa terapêutica, 2) o apoio em dados técnicos que assegurem eficácia e segurança, 3) esclarecimentos sobre riscos e possíveis reflexos ao paciente, e 4) obtenção de seu consentimento.

Nos termos do artigo 49 da RDC, aliás, a indicação e forma de uso dos produtos prescritos são de responsabilidade do médico.

Em suma, a análise da documentação técnica é o que propicia a atestação da qualidade do produto (artigos 21 e 24, da RDC). A Anvisa, porém, impõe requisitos para que o produto posto à disposição seja prescrito para uso terapêutico. A venda (dispensação) do medicamento pela farmácia só é viabilizada mediante prescrição por profissional médico habilitado (artigo 53, do RDC).

A Resolução de Diretoria Colegiada ("RDC") n° 660/2022 da Anvisa
A RDC ora sob comento, por sua vez, delimita critérios e procedimentos para a importação por pessoa física de produtos à base de CBD para uso próprio.

Para exercer tal prerrogativa (importação), basta ao interessado apresentar a prescrição médica e sua declaração de consentimento (artigos 3º e 7º da RDC) [3]. Isto permite visualizar no plano prático os impactos derivados da inserção de comando proibitivo aos médicos por meio da Resolução do CFM recém suspensa.

Constatações
As competências do CFM e da Anvisa, sem dúvida, são complementares. Não há discussão em torno da autonomia de cada qual em face de suas finalidades institucionais. Ambos atuam com vistas a assegurar a garantia à saúde de acordo com parâmetros qualitativos e de segurança aos cidadãos.

No entanto, há pontos de encontro retratados em seus atos normativos que demandam diálogo entre as instituições. Trata-se de otimizar a informação e evitar possíveis contradições e incompatibilidades com implicações nefastas a cidadãos que se encontram em meio a terapêuticas executadas por meio de produtos sem registro.

De modo objetivo, pode-se dizer que a criação de norma impeditiva (em absoluto) imposta aos médicos, inclusive em face de produtos disponíveis e aprovados no mercado, merece maior meditação. Há um conflito entre a ausência de eficácia empírica comprovada em torno de terapêuticas, com as prerrogativas médicas relacionadas ao uso de produtos liberados para fabricação e venda por quem de direito (Anvisa).

Em última análise, os pacientes destinatários destes produtos serão (e já estão sendo) atingidos por tais disposições normativas. Assim, parece muito produtivo e razoável a reabertura de diálogo com os profissionais do setor e com a sociedade civil antes de definir os comandos da Resolução.

Conclusão
As Resoluções do CFM e da Anvisa, ainda que não inconciliáveis em vista das competências de cada qual, revelam-se incompatíveis, ao menos sob o plano da razoabilidade.

Cabe ponderar se é razoável impedir o início e/ou o prosseguimento de tratamentos com produtos baseados em CBD cuja atestação foi certificada pela Anvisa. Sob esse aspecto, sem prejuízo das presunções existentes em torno dos atos administrativos, cabe recorrer analiticamente aos procedimentos adotados pela agência para aprovar a fabricação e a comercialização de determinados produtos no mercado.

Outro ponto a ser considerado é se a responsabilidade do médico e aquela assumida pelo paciente não permitem o seu uso como derivação da autonomia pessoal. Ainda que o ordenamento nacional seja construído em torno da vida e de sua indisponibilidade, a garantia à saúde (artigo 6º e 196, da CF) deve ser considerada em vista dos possíveis sintomas e transtornos experimentados pelo paciente que deseja fazer uso dos produtos.

Como reforço a este último aspecto, tem-se a certificação de qualidade dos produtos pela Anvisa, o que (no mínimo) precisa ser tomado em conta para avaliar a (im)pertinência da intervenção na terapêutica a ser utilizada pelos médicos.

Enfim, não se trata de legitimar o uso irrestrito de tratamentos desconhecidos e potencialmente danosos por médicos em vista de suas prerrogativas e responsabilidades. Nem muito menos de atribuir à anuência dos pacientes força absoluta para que tal seja feito. O ponto central da discussão envolve primordialmente um exame de razoabilidade, em vista do direito à vida e da confiabilidade das análises feitas pela Anvisa em torno de produtos derivados de CBD, para o fim de se definir se de fato é prudente estabelecer vedação à prescrição de tais produtos para tratamentos elegíveis pelos médicos para melhorar a qualidade de vida das pessoas.

Como arremate, os subscritores esclarecem que o presente ensaio não pretende um exame científico da questão, eis que nem mesmo possuem capacidade para tal.

Todavia, em vista dos impactos ocasionados pela proibição estabelecida nos termos da Resolução CFM 2.324/2022, parece adequado exercer uma nova avaliação em torno do contexto dos produtos de CBD e da atuação da Anvisa ao longo dos anos  o que, confia-se, será feito por ocasião das contribuições a serem apresentadas no âmbito da audiência pública em curso.


[1] Artigo 7º Compreende-se entre as competências do Conselho Federal de Medicina editar normas para definir o caráter experimental de procedimentos em Medicina, autorizando ou vedando a sua prática pelos médicos.
Parágrafo único. A competência fiscalizadora dos Conselhos Regionais de Medicina abrange a fiscalização e o controle dos procedimentos especificados no caput , bem como a aplicação das sanções pertinentes em caso de inobservância das normas determinadas pelo Conselho Federal.

[3] Sob o plano procedimental, caberá ao paciente cadastrar-se no site da Anvisa (artigo 5º). A aprovação prescinde de um exame qualitativo do produto, suprido pela prescrição e respectivo cadastramento para autorização (artigi 18). À Anvisa, basta confirmar que o produto é produzido e distribuído por estabelecimento cadastrado em seu país de origem com tal finalidade, e examinar a presença do produto dentre aqueles arrolados em Nota Técnica da própria Anvisa divulgados em seu site (artigo 5º, §3º).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!