Opinião

Literatura e sala de audiência: Borges nos porões da ditadura argentina

Autor

  • Marcílio Franca

    é membro do Comitê Jurídico da International Art Market Studies Association árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam Holanda) da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul docente da Universidade Federal da Paraíba ex-professor visitante das faculdades de Direito das Universidades de Pisa Turim e Ghent pós-doutor em Direito no Instituto Universitário Europeu (Florença Itália) e procurador-chefe da força-tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba.

9 de novembro de 2022, 20h40

A lista dos grandes filmes de tribunal, formada por joias como Testemunha de Acusação (Billy Wilder, 1957) ou O Insulto (Ziad Doueiri, 2018), acaba de ganhar uma nova obra-prima. Trata-se de Argentina, 1985, do diretor Santiago Mitre. Lançada há poucas semanas no país vizinho, a película, além de lotar salas de cinema, tem feito uma entusiasmada audiência aplaudir a atuação estupenda de Ricardo Darín ao final de cada exibição. Aqui, o filme (premiado em Veneza) já está disponível no streaming.

Divulgação
Elenco do filme "Argentina, 1985"
Divulgação

Ao contrário de Testemunha de Acusação ou O Insulto, porém, Argentina, 1985 não é um filme de ficção. O roteiro reconstrói a dramática história da Causa 13/84, o processo que levou ao banco dos réus oficiais-generais integrantes das três primeiras juntas militares da ditadura argentina denominada "Processo de Reorganização Nacional" (1976-1983), por graves e massivas violações aos direitos humanos.

Argentina, 1985 reconstitui um dos julgamentos mais emblemáticos da história contemporânea, só comparável ao Tribunal de Nuremberg (1945-1946) ou ao julgamento de Adolf Eichmann (1961), ambos também transformados em filmes de sucesso. Não foi por acaso que Luis Gabriel Moreno Ocampo, o promotor que auxiliou o promotor-chefe Julio César Strassera na acusação da Causa 13/84, alguns anos mais tarde, viria a ser o primeiro procurador-chefe da Corte Penal Internacional.

Entre 22 de abril e 14 de agosto de 1985, um total de 833 pessoas, entre ex-detentos, parentes das vítimas e agentes das forças de segurança, testemunharam em audiências públicas realizadas no Palácio da Justiça da Nação, em Buenos Aires, sobre o aterrorizante aparato clandestino da repressão. A opinião pública nacional e estrangeira ficou estarrecida com a brutalidade narrada.

Cego, 85 anos, Jorge Luis Borges, o maior escritor argentino, decidiu ir a uma daquelas audiências judiciais, realizada cerca de um ano antes de sua morte. Antiperonista, Borges aplaudiu o golpe de Estado que derrubou Isabelita Perón. Chegou mesmo a almoçar com o general Jorge Rafael Videla em 1976, na Casa Rosada, mesmo ano em que, no Chile, foi condecorado por Augusto Pinochet. Para surpresa de muitos, em 1980, contudo, Borges assinou, ao lado do futuro presidente Raúl Alfonsín e outras personalidades, uma petição pública das Mães da Praça de Maio, com um apelo ao governo militar para que fossem publicadas as listas de desaparecidos.

Reprodução
Borges em uma das audiências do "Juicio a las Juntas" em Buenos Aires
Reprodução

Naquele dia de inverno em que foi ao Palácio da Justiça, Borges ouviu o doloroso depoimento do gráfico Víctor Basterra, sequestrado com sua esposa e filha, em 1979, e levado para a Escola de Mecânica da Armada, o maior dos centros de detenção e tortura utilizados pela repressão argentina. Ficou detido até 1983. Poucos dias depois, o escritor contaria a sua experiência em um pungente artigo publicado no jornal espanhol El País, sob o título "Lunes, 22 de julio de 1985" ("Segunda-feira, 22 de julho de 1985").

Hoje, quando alguns poucos afrontam a constituição brasileira e o código penal nacional e pedem o fim do Estado de Direito e uma nova ditadura no Brasil, as palavras de Borges merecem ser lidas novamente:

"Assisti, pela primeira e última vez, a uma audiência judicial. Uma audiência de um homem que havia sofrido cerca de quatro anos de prisão, chicotadas, assédio e tortura quotidiana. Eu esperava ouvir queixas, insultos e a indignação da carne humana submetida interminavelmente àquele milagre atroz que é a dor física. Algo diferente aconteceu. Algo pior aconteceu. O desumano havia entrado inteiramente na rotina de seu inferno. Falou com simplicidade, quase com indiferença, sobre o bastão elétrico, a repressão, a logística, os turnos, o calabouço, as algemas e os grilhões. Também do capuz. Não havia ódio em sua voz. Sob tortura, ele traiu seus companheiros; eles iriam acompanhá-lo mais tarde e dizer-lhe não guardar rancor, porque depois de algumas sessões de tortura qualquer homem declara qualquer coisa. Diante do promotor e diante de nós, enumerava com valentia e precisão os castigos corporais que foram o seu pão nosso de cada dia. Duzentas pessoas o ouviram, mas me senti como se estivesse na cadeia. O mais terrível de uma cadeia é que quem entra nunca pode sair. Deste ou do outro lado das grades seguem sendo presos. O prisioneiro e o carcereiro acabam sendo um só. Stevenson acreditava que a crueldade é o pecado mortal; exercê-la ou sofrê-la é chegar a uma espécie de insensibilidade ou inocência horrível. Os desumanos são confundidos com seus demônios; o mártir, com quem acendeu a pira. A prisão é, de fato, infinita.

Das muitas coisas que ouvi naquela tarde e que espero esquecer, vou referir a que mais me marcou, para me livrar dela. Aconteceu no dia 24 de dezembro. Eles levaram todos os prisioneiros para uma sala onde nunca haviam estado antes. Não sem alguma surpresa eles viram uma longa mesa posta. Viram toalhas de mesa, pratos de porcelana, talheres e garrafas de vinho. Depois vieram as iguarias (repito as palavras do anfitrião). Era o jantar de véspera de Natal. Eles haviam sido torturados e não sabiam que seriam torturados no dia seguinte. O senhor daquele inferno apareceu e lhes desejou feliz Natal. Não era uma zombaria, não era uma manifestação de si mesmo, não era remorso. Era, como eu disse, uma espécie de inocência do mal.

O que pensar de tudo isso? Eu pessoalmente não acredito no livre arbítrio. Eu não acredito em punições e recompensas. Eu não acredito no inferno e no céu. Almafuerte escreveu: 'Nós somos os anunciados, os previstos, / se há um Deus, se há um ponto onisciente; / e antes de ser, já são, nessa mente, / o Judas, o Pilatos e os Cristos'.

No entanto, não julgar e não condenar o crime seria promover a impunidade e tornar-se, de alguma forma, cúmplice.

É curioso que os militares, que aboliram o código civil e preferiram o sequestro, a tortura e a execução clandestina ao exercício público da lei, queiram agora se valer dos benefícios dessa velharia e buscar bons defensores. Não menos admirável é que existam advogados que, desinteressadamente sem dúvida, se dedicam a proteger de todo perigo os negadores de ontem." (trad. nossa)

Finda a instrução processual, nas audiências de 11 e 18 de setembro de 1985, o promotor Julio César Strassera apresentou as suas alegações finais. Concluiu o seu pronunciamento com um argumento simples, uma frase que, em verdade, não era dele, nem sequer apenas do povo argentino: Nunca mais! Que dias como aqueles não se repitam em lugar nenhum.

Autores

  • é professor visitante da Universidade de Pisa (Itália). Tem pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália). Membro do Comitê Jurídico da International Art Market Studies Association. É árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam, Holanda), da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul. Professor da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!