Direito Civil Atual

Prescrição nas ações reparatórias do "cartel do suco de laranja" (parte 1)

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7 de novembro de 2022, 10h44

Questão problemática nas ações reparatórias de dano concorrencial (ARDC) é a prescrição. Esta coluna avança o tema em razão do julgamento do REsp 1.971.316 [1], no dia 25/10/2022, quando a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça confirmou decisão advinda do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) e consignou estar prescrita a pretensão de um produtor rural paulista de ser reparado por supostos danos resultantes do denominado "cartel do suco de laranja" [2].

ConJur
Em 27/9/1999, o Cade instaurou processo administrativo para apurar alegado conluio de empresas compradoras de laranja no mercado de processamento de suco concentrado congelado. O caso, que foi alvo de inúmeros questionamentos judiciais, era um dos mais antigos em trâmite na autarquia, até seu encerramento em meados de 2018 [3].

No ponto que interessa, em 28/02/2018, o Tribunal [do Cade] decidiu pelo arquivamento do processo em relação às pessoas físicas e jurídicas que celebraram Termo de Compromisso de Cessação de Condutas (TCC), por força do cumprimento integral das obrigações firmadas, conforme estabelece o artigo 85, §9º, da Lei 12.529/11 [4]. Não houve, nesse sentido, decisão condenatória por parte da autarquia, mas extintiva pelo cumprimento do TCC.

O acordo tinha por premissas o encerramento das demandas judiciais e o reconhecimento de participação nas condutas descritas no histórico elaborado pela SG, no qual constou, apenas, eventual compartilhamento de informações entre concorrentes, mas não as demais condutas anticoncorrenciais investigadas (acordo de preços e divisão de mercados) [5].

Na esteira desse desfecho, citricultores ajuizaram ações para serem reparados pela venda de caixas de laranja a preços alegadamente cartelizados, consignando que a extinção dos processos administrativos, em decorrência dos TCCs, importaria confissão das empresas compromissárias quanto ao suposto cartel.

Uma delas é a ação autuada sob nº 1013956-91.2019.8.26.0037, que deu ensejo ao REsp 1.971.316. Nela, produtor rural que celebrara contrato de compra e venda de laranja com uma das signatárias de TCC pleiteava, dentre outras coisas, indenização correspondente à diferença entre o preço contratado para a venda das caixas de laranja e o preço "que deveria ter sido pago" se ausente a suposta infração concorrencial.

Antes de prosseguir às decisões tomadas no processo, é importante frisar alguns marcos temporais:

– o Cade instaurou o processo administrativo em 1999;
– os contratos foram celebrados em 2001 e 2003, tendo por objeto as safras de 2001/2002 a 2005/2006;
– 
o Tribunal Administrativo do Cade proferiu a decisão extintiva em 2018;
 a ação foi ajuizada pelo citricultor em 2019.

Em sentença, o juiz de primeiro grau reconheceu a ocorrência de prescrição: assinalou que o prazo prescricional aplicável seria o decenal [6], mas compreendeu que o autor teria ciência do ilícito desde a celebração dos contratos [7], e, por isso, sua pretensão estaria prescrita antes mesmo do ajuizamento da ação.

O autor então recorreu ao TJ-SP, sustentando que prescrição deveria ser contada da publicação da decisão extintiva do Cade.

A 31ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP manteve a sentença.

Quanto ao termo a quo, a Câmara consignou que embora a Corte Paulista tenha assentado orientação de que, nas chamadas ações follow-on, a prescrição fluiria a partir da decisão condenatória do Cade por infração da ordem econômica, no caso concreto o Conselho teria proferido decisão homologatória de TCC, de natureza diversa, razão pela qual a prescrição teria fluído desde a celebração dos contratos, conforme decidido na sentença.

Já no que concerne ao prazo prescricional, o acórdão, dissentindo do Juiz de primeiro grau, registrou que como a demanda estaria embasada em suposto cartel de preços (ilícito concorrencial), e não em descumprimento contratual, o prazo aplicável seria o trienal, atinente às pretensões reparatórias provenientes de ilícito extracontratual.

A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento unânime, decidiu em linha com o TJ-SP [8].

Diante desse contexto, despontam relevantes questões sobre a prescrição em ARDCs. Uma primeira discussão envolve o termo inicial da contagem do prazo prescricional. Conforme visto, as decisões do STJ e do TJSP tomaram como marco os contratos celebrados pelo citricultor, e não a decisão extintiva do Cade. Seria esse o entendimento correto?

Outra diz respeito aos prazos prescricionais aplicáveis, resultante de controvérsia antecedente sobre o posicionamento dogmático da responsabilidade civil por infração concorrencial (seria enquadrável nas categorias tradicionais de Direito Civil ou espécie de responsabilização extraída diretamente do artigo 47 da Lei 12.529/2011?) e da natureza do próprio ilícito antitruste (seria tratado como categoria autônoma ou remissível às fontes clássicas do dever de indenizar, a violação de um dever contratual ou extracontratual?[9].

A parte 2, a ser publicada, buscará fornecer subsídios para, pelo menos em parte, responder a essas inquietações.


[1] STJ, REsp 1.971.316, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 25/10/2022.

[2] STJ mantém prescrição de prejuízos causados pelo 'cartel do suco de laranja'. Conjur, São Paulo, 03 nov. 2022. O acórdão ainda não foi disponibilizado.

[3] Cade encerra processo contra cartel no mercado de compra de laranjas. Cade, Brasília, 28 fev. 2018. Disponível em: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/cade-encerra-processo-contra-cartel-no-mercado-de-compra-de-laranjas

[4] Veja-se o que constou da decisão, tomada em julgamento ocorrido durante a 118ª Sessão Ordinária do Tribunal Administrativo no dia 28/02/2018: "O Plenário, por unanimidade, determinou o arquivamento […] em relação a Sucocítrico Cutrale Ltda.; Bascitrus Agroindústria S.A.; Cargil Agrícola S.A.; Fischer S.A. Agroindústria (atual denominação de Citrosuco Paulista S.A.); Citrovita Agro Industrial Ltda.; Louis Dreyfus Commodities Agroindustrial (atual denominação de CoinbraFrutesp S.A.); Associação Brasileira de Exportadores de Cítricos (Abecitrus); José Luis Cutrale; Horst Jakob Happel; Antônio Francisco Armelin Gomes; Reinaldo Roberto Sesma; Ademerval Garcia; e Plínio Moraes Rossetti, tendo em vista o cumprimento integral das obrigações estabelecidas nos respectivos Termos de Compromisso de Cessação por eles celebrados com o Cade, […] tudo nos termos do voto do Conselheiro Relator".

[5] O histórico da conduta constou do acórdão da apelação 1013956-91.2019.8.26.0037, podendo ser acessado pela ferramenta de consulta pública de jurisprudência do TJSP: "Os COMPROMISSÁRIOS reconhecem que informações levantadas por sua equipe comercial no Brasil junto ao mercado citrícola, em especial junto a produtores e comerciantes de laranjas independentes, podem ter sido eventualmente compartilhadas com concorrentes no contexto de discussões setoriais sobre esse mercado, o mesmo ocorrendo com informações equivalentes obtidas junto ao mercado por seus concorrentes, durante o período investigado". (TJSP, Apelação Cível 1013956-91.2019.8.26.0037, desembargador relator Adilson de Araujo, 31ª Câmara de Direito Privado, j. 18/05/2021, d. 18/05/2021)

[6] Isso em decorrência da compreensão de que a demanda veicularia questão afeita à responsabilidade civil contratual.

[7] O seguinte trecho foi utilizado pelo Juiz como ilustrativo da ciência: "Portanto, aos produtores, entre eles o Autor, fragilizados pelo brutal estreitamento de opões, premidos pela natureza perecível do produto e combalidos pelos baixos preços praticados pelas indústrias, que, nem sequer, cobrem os custos de produção, só restou aderir aos contratos para não desaparecer" (fls. 4 nos autos do processo 1013956-91.2019.8.26.0037).

[8] STJ mantém prescrição de prejuízos causados pelo 'cartel do suco de laranja'. Conjur, São Paulo, 03 nov. 2022.

[9] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito da concorrência e enforcement privado na legislação brasileira. Revista de Defesa da Concorrência, v. 1, nº 2, p 11-31, 2013.

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