Opinião

Ruídos da notitia criminis em falsos registros de crimes cibernéticos

Autores

  • Everson Aparecido Contelli

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp) especialista em Direito Processual e em sistemas de Justiça Criminal professor da Academia de Polícia de São Paulo das disciplinas inquérito policial e investigação policial delegado de polícia no estado de São Paulo professor de cursos de pós-graduação e de graduação e autor do livro Acesso à Justiça Criminal entre outros.

  • Rafael Guerreiro Galvão

    é especialista em ciências criminais professor da Academia de Polícia de São Paulo na disciplina de criminologia professor de graduação em Processo Penal e delegado de polícia no estado de São Paulo.

7 de novembro de 2022, 9h08

Cifra invertida, que não se confunde com a eficácia invertida do Direito Penal — espécie de inversão de valores em que a pena é utilizada para sufocar minorias —, a cifra oposta ou invertida está relacionada, normalmente, a serviços securitários não controláveis cujas falsas notícias impactam a investigação criminal, o sistema de justiça e a própria sociedade, porquanto o sobrevalor de gastos e o descrédito gerados impactam de forma reversa à segurança pública do país e a adequada repressão.

Tal fenômeno se agrava e é facilitado em tempos pós-pandêmicos, já que não há mais a necessidade de comparecimento físico-presencial das supostas vítimas para a notitia criminis de alguns crimes, perante as principais polícias judiciárias do país, avanço que, em tese, potencializa falsas comunicações delitivas. Trata-se de fenômeno criminológico que doravante apresentamos à comunidade científica com a denominação "cifra criminal oposta ou invertida".

A criminologia, surgida cientificamente no século XIX, não se confunde com a política criminal ou mesmo com o Direito Penal. Na verdade, aquela funciona como uma bússola e uma matriz científica para estes, bússola esta que, através de um método indutivo, tem por fim subsidiar e clarear a realidade jurídico-penal ao legislador, bem como orientar os gestores públicos nas escolhas políticas a serem executadas como forma de diminuir a criminalidade e chegar-se à tão sonhada pacificação social.

Dentro desta perspectiva criminológica de método indutivo, destaca-se a análise estatística de crimes, responsáveis por orientar maior ou menor contingente de policiamento ostensivo em determinada área, região geográfica ou horários, além de recursos humanos, espécies de policiamento, entre outros aspectos específicos, a depender do caso, bem como de policiamento repressivo e de polícia judiciária, como abertura ou não de distritos policiais, contingenciamento de equipes especializadas e gastos com investigação.

A chamada cifra negra, ou dark number, é caracterizada pela ausência de comunicação de reais delitos às autoridades públicas, o que ocasiona, por consequência, a falta de registro de crimes efetivamente ocorridos, situação que pode ser verificada, por exemplo, em crimes contra a dignidade sexual e em alguns delitos contra o patrimônio, como é o caso do estelionato.

Nesse sentido, segundo Shecaira:

"A existência maior ou menor de comunicação dos delitos depende da percepção social da eficiência do sistema policial; da seriedade ou do montante envolvido no crime; do crime implicar ou não uma situação socialmente vexatória para a vitima (estupro, 'conto do vigário' etc.); do grau de relacionamento da vitima com o agressor; da coisa furtada estar ou não segurada contra furto; da experiência pretérita da vitima com a policia etc". (SHECAIRA, 2004, p.54).

Além de representar o descrédito das intuições policiais, a cifra negra causa os chamados ruídos estatísticos, que significam aquelas deficiências comunicacionais e de análise de dados nas estatísticas policiais, principalmente em delitos monitorados de modo mais incisivo, que acabam por prejudicar as análises e a conversação da ciência da criminologia com a política criminal.

Porém, tem tempos em que, no estado de São Paulo, especificamente a partir de 2021, como projeto inovador da Secretaria de Segurança Pública paulista, por questões da pandemia mundial do Covid-19, permitiu-se uma grande ampliação do leque de crimes que podem ser comunicados no ambiente virtual, passando-se dos meros registros de fatos não criminais e registros de crimes contra animais, para incluir também outros crimes, como a maioria dos patrimoniais.

Paralelamente a isto, cada vez mais os bancos, em suas plataformas também digitais, vêm oferecendo serviços de securitização relativos a roubos de bolsas, carteiras e do próprio numerário financeiro após saques bancários, bem como para roubos e furtos qualificados de celulares.

Como em todas as inovações, sejam elas as da Polícia Civil, cada vez mais presentes virtualmente através dos computadores e smartphones dos cidadãos, sejam as dos bancos, que asseguram bens e serviços patrimoniais aos clientes por meio de meros toques virtuais de contratação, surge também um lado pernicioso e distorcido destas facilidades cibernéticas contemporâneas: as falsas comunicações de crime para fins dos vulgarmente chamados "golpes de seguros", perpetrados por falsas vítimas.

É aqui que encontramos o conceito do que nomeamos como cifra oposta ou invertida: se a cifra negra constitui a não comunicação de delitos existentes com interferência na criminalidade real, a cifra oposta é exatamente o contrário, ou seja, a comunicação oficial de delitos inexistentes fazendo com que também a criminalidade revelada não constitua a realidade. Como modelo:

Essas falsas comunicações de crimes atingem diversos aspectos, que não se restringem a déficits e problemas na alocação de recursos financeiros, humanos, falsos horários de incidência de crimes, deslocamentos desnecessários de tropas ostensivas mais equipadas e de necessidade de (re)abertura ou não de novos distritos policiais em sistema de plantão, o que impacta nas ações da Polícia Militar e na polícia judiciária e investigativa.

Nesse sentido, dentro do estudo da criminalidade eletrônica de massa, percebe-se não somente seus danos diretos às vítimas e à sociedade, mas também a sua faceta econômica indireta e de externalidades. Ou seja, todo aquele rescaldo econômico que a existência de crimes traz para a sociedade através do aumento de custos de produção e acessórios, como contratação de seguranças, seguros, migração geográfica para regiões e cidades mais seguras, investimentos em setores de inteligência internos etc.

E o pior, engana-se quem pensa que tais custos são absorvidos somente pelo empresário ou pela vítima potencial/efetiva. Numa sociedade de consumo, como sempre, as perdas são socializadas através do preço maior ao consumidor final.

E o mesmo é sentido, mormente na área atuarial, no caso da cifra oposta. Com maior incidência do pagamento de indenizações, o maior prejudicado é o cidadão que efetivamente quer se valer, de modo honesto, de tal serviço, pagando, certamente, um prêmio securitário que já leva em conta as cifras opostas e seus custos às seguradoras.

Apurações da Polícia Civil paulista (PC-SP) e levadas a efeito pelos pesquisadores Contelli e Galvão identificou um forte ruído nas estatísticas, quando passou a trabalhar com a finalidade macroeconômica ao inquérito policial, garantindo a lisura das estatísticas e, com isto, foi mapeada uma organização criminosa que ensinava todo o passo a passo da aplicação do golpe através de scripts e roteiros do modus operandi de crime criado que servirá tão somente para fundamentar um pedido de pagamento de seguro.

A título de ilustração do intercâmbio comunicacional da criminologia e da política pública de segurança com o direito penal, surge aqui a incidência do delito de falsa comunicação de crime, previsto no artigo 340, do Código Penal, com pena de detenção de um a seis meses, ou multa, conduta que visa a provocar a ação de autoridade, comunicando-lhe um fato criminoso que não ocorreu. No mais, subsiste ainda a capitulação esculpida no artigo 171 e seus parágrafos do Código Penal, que tratam do estelionato.

Ademais, conforme se demonstrou na operação desencadeada pela PC-SP, as condutas em questão podem, inclusive, subsumir a crimes de associação criminosa, previsto no artigo 288, do Código Penal ou de organização criminosa, tipificado no artigo 2º, da Lei 12.850/13 (Lei de Organização Criminosa), a depender do caso.

Essa operação de inferência estatística pode gerar grandes efeitos no que diz respeito à prevenção criminal geral e à repressão, relacionada à credibilidade das instituições de Estado, já que a percepção de que os crimes em questão estão sendo efetivamente investigados e punidos acaba por inibir o cometimento de delitos do mesmo tipo.

Nesse sentido, faz-se imprescindível uma ação contundente por parte da polícia judiciária em relação a esses delitos, já que o incremento de determinadas espécies de crimes está relacionada, entre outros fatores, com a sensação de impunidade por parte dos indivíduos que os praticam, ausência de controle das instâncias formais ou mesmo por puro espírito emulativo.

Isso porque, antes de optar por cometer ou não um delito, o indivíduo pondera de forma racional sobre a relação de custo-benefício daquela ação delituosa e, caso se perceba uma deficiência de ações por parte do Estado e demais colaboradores visando a combater com veemência tais condutas, evidentemente haverá uma constante no aumento dos índices relacionados a delitos da mesma espécie. Em outros termos, uma inversão, porquanto o Estado deverá manejar mais recursos públicos para região que não necessita de uma complementação.

No mesmo sentido Viapiana, ao asseverar que "os agentes criminosos, em suas condutas, estão imbuídos de uma profunda racionalidade, a qual, em última instância, se baseia na ponderação de custos e benefícios" (VIAPIANA, 2006, p. 37, apud Gonçalves e Cardoso, 2016).

Ademais, o papel da polícia judiciária não se restringe às investigações de infrações penais, mas passa por uma das principais finalidades do estudo da criminologia, qual seja, a de informar a sociedade acerca do fenômeno criminal, o que, no caso em estudo, acaba por auxiliar as instituições financeiras em ações que dificultem o cometimento de delitos relacionados a serviços securitários, numa verdadeira função transcendental, política, social e macroeconômica do inquérito policial e do delegado de polícia resolutivo.

Ante os aspectos em questão, se nas análises das chamadas cifras criminais encontramos as cifras negras, que se perfazem com a ausência de comunicação de crimes efetivamente ocorridos, por uma ótica invertida e contrariamente ao que ocorre com as cifras negras, surgem as chamadas cifras opostas, que se relacionam com os crimes que são comunicados às autoridades, notadamente aqueles relacionados a serviços bancários de seguro, mas que, na realidade, não ocorreram, conduta que é tipificada, a princípio, como falsa comunicação de crime, mas que se coaduna com outros tipos penais, a depender do caso concreto.

Portanto, o estudo relacionado ao incremento dos índices criminais deste segmento e o entendimento acerca da cifra oposta ou invertida mostram-se relevantes no trabalho da polícia judiciária, visto que, de acordo com estas análises, torna-se possível não somente realizar um trabalho mais efetivo de investigação, levando-se em conta o modus operandi dos indivíduos envolvidos nesse tipo de conduta criminosa, mas também contribuir com a prevenção de crimes do mesmo tipo, por meio de uma das finalidades precípuas da criminologia, qual seja, a de informar a sociedade acerca do fenômeno criminal e de seus aspectos contemporâneos e com eles traçar estratégias públicas mais efetivas.


Referências
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Critica do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. – 6ª ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2011.

COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. Journal of Law & Economics, v.3, p. 1-44, out. 1960. Disponível em: https://www.law.uchicago.edu/files/file/coase-problem.pdf. Acesso em: 04 dez. 2021.

CONTELLI, Everson A. Acesso à Justiça Criminal: NECRIM’s — Núcleos Especiais Criminais como alternativa Consensual, Restaurativa e Dialógica na Persecução Criminal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

CONTELLI, Everson A.; COSTA, Ilton Garcia. Teoria da Ação de Direito Material no Processo Penal e a Proteção Eficiente da Vítima. In: Ilton Garcia da Costa. (Org.). Direito e Justiça: Aspectos Atuais e Problemáticos. v.1. Curitiba: Jurua, 2015. p.301-320.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Org. e Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FULLER, Greice Patrícia. Os delitos e as novas tecnologias em face da relação dialógica com os direitos humanos. In: SARLET, Ingo Wolfgang; WALDMAN, Ricardo Libel. Direitos Humanos e fundamentais na era da informação. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2020. Cap. 8. p. 215-232.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. p.49.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 2ª ed. São Paulo: RT, 2004

Autores

  • é doutorando em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), mestre em Direito pela Uenp, especialista em Direito Processual e em sistema de justiça criminal, professor da Academia de Polícia de São Paulo das disciplinas inquérito policial e investigação policial, delegado de polícia no estado de São Paulo, professor de cursos de pós-graduação e de graduação em direitos humanos, Direito Digital, medicina forense e psicologia jurídica e autor do livro Acesso à Justiça Criminal; Drones, Investigação Criminal e Segurança Pública e de capítulos de livros e artigos jurídicos no Brasil e exterior.

  • é especialista em ciências criminais, professor da Academia de Polícia de São Paulo na disciplina de criminologia, professor de graduação em Processo Penal e delegado de polícia no estado de São Paulo.

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