Os cruzamentos entre Música, Direito e Linguagem
5 de novembro de 2022, 11h37
Arte e Direito se constituem e se manifestam a partir de um mesmo fenômeno: a linguagem, cuja intersubjetividade a revela como condição de possibilidade e compreensão às manifestações artísticas e normativas. Arte, conceitualmente, corresponde a dimensão estética da linguagem; o direito, por sua vez, a dimensão normativa. É por meio da linguagem intersubjetiva, e apenas através dela, que Arte e Direito se entrecruzam e encontram condições necessárias à delimitação e ao estabelecimento de sentidos, bem como a substância de suas próprias expressões.
A motivação deste breve texto decorre de um conceito que ouvi recentemente de um produtor musical, que define música como “barulho organizado”. Ainda imerso na reflexão conceitual, fui tomado por lembranças da escola de música, onde professores faziam referência ao conceito dado pelo saudoso Tom Jobim: “A música é o silêncio que existe entre as notas”. Lembrei-me, igualmente, de um velho ogã de Duque de Caxias, que compreendia música como experiência subjetiva – “o som que toca o espírito”. A favor dos mais céticos, há quem reduza música à objetividade dos fenômenos físicos que a materializam, a exemplo da frequência 440 Hz, referência dos diapasões, que corresponde a nota “Lá”. Ou seja, música seria apenas produto de manifestações físicas expressadas objetivamente.Para além da busca de conceitos uníssonos, muitos pesquisadores se interessaram por temas que relacionam música e ciências sociais, a exemplo da Criminologia Crítica desenvolvida por Becker e Faulkner, autores da obra O jazz em ação, descrevendo a influência da música na vida de músicos profissionais. Adorno, outro exemplo, com a Introdução à Sociologia da Música, estudou o desenvolvimento da música e suas respectivas manifestações a partir das relações sociais. O tema é vasto e há muitos outros exemplos.
a perspectiva da hermenêutica jurídica, a música pode servir de fio condutor ao revolvimento histórico em que se manifesta um determinado fenômeno jurídico, permitindo ao intérprete aferir as condições sociopolíticas que constituíram o objeto investigado. Adoniran Barbosa, o grande cronista de São Paulo, descreveu como ninguém, com as canções Saudosa maloca (1951), Despejo na favela (1969), Abrigo de vagabundo (1974) etc., as condições e o tratamento hostil que o Estado dispensava aos sem-teto que habitavam a Terra da Garoa. Bezerra da Silva, a voz das favelas cariocas, dono de um repertório que incluía as músicas Violência gera violência (1988), A fumaça já subiu para cuca (2000), Meu bom juiz (2003), entre outras, denunciou como ninguém as práticas judiciais e repressão estatal contra os mais pobres.
Não se pode desconsiderar que certas manifestações musicais, de igual modo, foram potencializadas ou contingenciadas em razão de uma determinada ordem jurídica. Bom exemplo disso ocorreu durante a censura imposta à época do regime autoritário deflagrado em 1964. Muitos autores driblaram a censura por meio de figuras de linguagem, a exemplo das ricas metáforas utilizadas por Juninho da Adelaide, alcunha que Chico Buarque usava para se esquivar da perseguições militar – “pai, afasta de mim esse cálice”.
Mesmo após o giro ontológico-hermenêutico, há quem ainda insista reduzir toda a complexidade da interpretação ao pretenso maniqueísmo entre objetivismo e subjetivismo. Streck, entusiasta da Literatura, demonstra, a partir da obra shakespeariana Medida por medida, que o giro linguístico estabeleceu novos paradigmas ao processo de interpretação. E é justamente a partir desse giro linguístico que encontramos respostas às referidas indagações.
Afinal, o que é isto – a música?
Música é a qualidade atribuída a sons organizados entre intervalos de silêncio (ritmo) a partir de sentidos compartilhados que estruturam a compreensão. Ou seja, música não é a manifestação sonora em si, tampouco a experiência sensorial que decorre dela (relação sujeito-objeto). É, antes, um atributo que se constitui por meio da linguagem intersubjetiva.
Ao ouvirmos, por exemplo, o som ordenado da batucada de tamborins, a compreensão constituída por meio da linguagem intersubjetiva revela a música enquanto predicado daquele fenômeno sonoro. É um processo quase que imperceptível, porque se compreendemos antes mesmo de interpretarmos.
Percebe-se que a organização rítmica de sons, em si, conforme a definição do produtor musical, é insuficiente para o conceito de música. Se a organização do sons fosse suficiente, concluiríamos, por exemplo, que a sirene de uma ambulância (que é rítmica) é música. De igual modo, a presença de sentido compartilhado, por si só, também é insuficiente para a definição de música. Basta lembrar que o som de um alarme de incêndio corresponde a um sentido compartilhado: perigo.
Portanto, para se estabelecer um conceito-limite, deve-se considerar o componente estético (regime da arte que identifica as coisas da arte como coisas do pensamento)[1] que o atributo música estabelece com os substantivos que se associam a ele por meio do processo de interpretação.
Certamente, ao ouvir a marcação de um tambor, ninguém há de questionar o seu predicado musical, tampouco há confundir samba e bolero. Mas não porque existe “sambosidade” no ritmo do tambor, tampouco porque o intérprete assim deseja defini-lo (linguagem privada), e sim porque há sentidos compartilhados a partir da linguagem pública, dotados de componente estético, que nos permitem compreender e interpretar a referida manifestação sonora enquanto música.
O mesmo processo de compreensão e interpretação é observado no Direito. Apesar de multifacetário, o Direito, aqui compreendido como dimensão normativa da linguagem, pode ser igualmente observado como predicado de uma determinada manifestação política, preservando seu grau de autonomia a partir dos limites estabelecidos pela linguagem pública.
Em razão do aniversário do nosso professor Lenio Streck, concluo com um poema cuja inspiração busquei em seus textos.
Interpretar, vocação que me inspira o goleiro de Agudo
apanhador de palavras, segurando-as firmemente
constrangendo os que tropeçam em si mesmos
que ignoram a sabedoria da mais antiga moradora da ilha
ela, a mais velha, que sempre tem algo a nos dizer
por todos os lados, nas coisas mais insignificantes
que nada dizem, mas que tudo nos falam.
[1] RANCIÈRE, Jacques. O Inconsciente estético. São Paulo : Editora 34, 2009 (1.ª edição), p. 11.
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