Consultor Tributário

Jurisprudência defensiva se reflete em polêmicas sobre coisa julgada

Autor

  • Hugo de Brito Machado Segundo

    é mestre e doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (de cujo programa de pós-graduação — mestrado/doutorado — foi coordenador) professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado) membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA) advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität em Viena (Áustria).

2 de novembro de 2022, 12h19

O Supremo Tribunal Federal discute, nos dias que ora correm, os efeitos futuros de uma decisão que afirma indevida a cobrança de um tributo, quando posteriormente a jurisprudência daquela Corte se orienta no sentido da validade da exigência.

Spacca
A questão se coloca, fundamentalmente, quando se trata de uma relação jurídica continuativa, vale dizer, relação que se funda em, ou decorre de, fatos que se repetem no tempo.

Se se discute questão relacionada a evento isolado no passado, como a validade de uma multa cobrada diante de determinado comportamento, e a sentença transita em julgado aplicando entendimento que, tempos depois, vem a ser alterado pela jurisprudência, em princípio não se cogita de sua rescisão ou revisão. O fato recebeu o tratamento que se considerou devido à época, e a garantia da coisa julgada impede a reabertura da questão.

Entretanto, se se discute a existência de uma relação jurídica baseada em fatos que se repetem, os efeitos da sentença tendem a se projetar para o futuro. Imagine-se a situação do contribuinte que realiza determinada atividade, e questiona em juízo se ela deve sujeitar-se ao ICMS. Caso a sentença afirme indevido o tributo, porque não incidente sobre a atividade, seus efeitos declaratórios deverão ser respeitados inclusive em relação ao período subsequente à prolação da sentença. Não faria sentido que o contribuinte tivesse de mover nova ação, a cada mês, ou a cada ano, para o juiz declarar novamente a mesma coisa, a saber, que a sua atividade não é tributada pelo ICMS. Salvo se houver mudança no binômio que serve de fundamento para a decisão, a saber, alteração na situação de fato (o contribuinte passa a exercer outra atividade, talvez esta sim sujeita ao ICMS), ou se as normas aplicáveis forem alteradas, de sorte a que a atividade em questão passe a ser tributável.

É em situações desse tipo, de relações continuativas, que se coloca o problema que o Supremo Tribunal Federal atualmente enfrenta, quando não há propriamente mudança na situação de fato vivida pelo contribuinte, ou nas normas legislativas aplicáveis a ela, mas alteração no entendimento jurisprudencial. A sentença transita em julgado desobrigando o contribuinte ao pagamento de um tributo, em uma relação continuativa, por considera-lo inconstitucional, e o Supremo Tribunal Federal, em momento posterior, decide pela validade do tributo.

A discussão ocorre no julgamento dos REs 949.297 e 955.227 (Temas 881 e 885), que diferem porque em um se debate a situação na qual a mudança de entendimento no STF se dá em controle difuso, e, no outro, em controle concentrado. No plano acadêmico, o assunto é discutido há bastante tempo, entendendo-se de modo razoavelmente pacífico que se a mudança ocorre com efeitos normativos, erga omnes, a alcançar pessoas para além das parte do processo (em ADI, ADC, ou, mesmo em RE, se houver repercussão geral ou edição de súmula vinculante), tem-se situação equivalente àquela na qual há edição de novos atos normativos (mudança na legislação), hipótese na qual os efeitos da decisão passada em julgado cessam de imediato, tão logo a nova decisão inicia a produção dos seus. Tem-se hipótese análoga à da sentença que afirma indevido um tributo, por falta de amparo legal, e em seguida o Poder Público edita uma lei conferindo esse amparo. A partir dela, da lei, o tributo se faz devido, e, a sentença, deixa de afastar sua cobrança, porque desaparece seu fundamento (a falta de lei).

O problema mais delicado se coloca quando a mudança no entendimento jurisprudencial não ocorre em controle concentrado, ou em controle difuso com efeitos expandidos por uma repercussão geral ou uma súmula vinculante. E, também, quando a mudança se dá no entendimento do STJ, em torno de questão legal, aspecto que o STF não está examinando no julgamento dos tais temas, mas é análogo a eles. Em casos assim, entendo ser necessária uma nova ação judicial, para discutir se subsistem, ou não, os efeitos da decisão passada em julgado. Para o manejo desta ação não há prazo, até porque a mudança jurisprudencial pode ser realizada mais de dois anos depois do trânsito em julgado da decisão cuja revisão se cogita. Seus efeitos, porém, são sempre ex nunc. Com isso se concilia segurança, de um lado, quando ao passado acobertado pela coisa julgada, e igualdade, de outro, quanto ao futuro ao qual ela não mais será aplicada (CPC, artigo 505, I). Ao definir o prazo para rescisória, nos casos de mudança jurisprudencial, como partindo da mudança, o CPC de 2015 parece (artigo 535, parágrafo 8º) sinalizar no sentido de que o instrumento adequado para isso seria a própria rescisória, o que não é adequado porque a rescisória pressupõe erro da decisão rescindenda, e seus efeitos podem ser ex tunc. A mudança de jurisprudência, contudo, não faz errada a decisão anterior que acolhe entendimento diverso, e não é razoável a rescisão com efeitos ex tunc, surpreendendo quem vinha se comportando nos moldes até então ditados pelo Judiciário. Se se entender que ela é o remédio adequado, que se dê, pelo menos, efeito ex nunc à decisão que vier a rescindir outra com fundamento em mudança jurisprudencial (CPC, artigo 535, parágrafo 6º). No STF, o placar está adiantado nesse sentido – de reconhecer efeitos expansivos apenas quando a decisão em controle difuso tem repercussão geral – com voto vencido do Ministro Gilmar.

Mas o propósito deste texto, leitora, nem era propriamente o de cuidar especificamente do tema da coisa julgada, algo que a literatura especializada faz há bastante tempo com profundidade. Pretende-se em verdade alertar para um aspecto importante, que nem sempre é percebido pelos que atuam no contencioso, notadamente tributário. É o de que esta discussão, que o STF trava em 2022 sobre os efeitos da coisa julgada relativamente a decisões referentes à CSLL proferidas cerca de trinta anos atrás, é um dos custos a pagar pela jurisprudência defensiva.

Sabe-se que os tribunais superiores adotam entendimentos que nem sempre guardam compromisso com a razoabilidade, no que tange aos requisitos de admissibilidade de recursos, para com isso diminuir o excesso de processos que têm de julgar. Daí o nome, “defensiva”, pois por meio dela as cortes se defendem da inviabilização pela quantidade de processos a serem apreciados. A excludente de ilicitude franquearia entendimentos que de outro modo seriam inadmissíveis, tais como a inadmissão de recursos porque interpostos antes de iniciado o prazo, ou por vícios formais sanáveis no pagamento de custas ou preparo, por exemplo.

É certo que deve haver um filtro para acesso às cortes superiores, mas quando esse filtro é a jurisprudência defensiva, não se leva em conta o mérito, a relevância e a importância da causa. Há elevada carga de aleatoriedade, imperando fatores não relacionados ao tema em disputa.

O CPC de 2015 procurou superar tais entraves, esclarecendo serem inadmissíveis, mas em muitos casos isso apenas mudou o fundamento usado para não conhecer de recursos, de modo igualmente irrazoável. Passou-se à aplicação desmedida e muitas vezes impertinente da Súmula 7/STJ, mesmo quando só se discute matéria de direito, ou do requisito do pré-questionamento, mesmo quando o artigo de lei que se aponta como violado está citado e transcrito várias vezes no acórdão recorrido.

O efeito, de curto prazo, de tais entendimentos, até pode ser a redução de trabalho nos gabinetes dos ministros. Mas, no longo prazo, criam-se situações de desigualdade. Duas pessoas, com situações iguais, submetem-se a entendimentos diferentes, porque uma delas consegue chegar à corte superior, e a outra não, por conta de um carimbo ilegível, ou de uma afirmação de que se discutem fatos, quando a questão é meramente de direito. Firmado o entendimento pela corte superior, quanto ao mérito, em sentido diverso daquele que prevaleceu na decisão não revista e por isso passada em julgado graças à jurisprudência defensiva, naturalmente que a parte prejudicada não se conformará, suscitando o problema em novos processos, sejam rescisórias, sejam ações de revisão da coisa julgada, seja em ações de conhecimento comuns. É o que a Fazenda está pretendendo, nos temas ora discutidos no STF, sendo certo que muitos dos que obtiveram decisões passadas em julgado afirmando a inconstitucionalidade da CSLL, lá nos idos de 1992, não as viram ser reformadas na ocasião graças a entendimentos que não conheciam dos recursos da Fazenda por razões formais irrazoáveis como a ilegibilidade de um carimbo em uma xerocópia anexada a um agravo.

Isso faz lembrar a verdadeira finalidade do processo, e do Judiciário. Não é criar novos problemas, internamente. É resolver aqueles que lhe são externos e anteriores. Quando se deslinda o mérito de uma questão, ou, no caso das cortes superiores, de um recurso, isso pode até dar um pouco mais de trabalho no presente, se se considerar a alternativa de aplicar, copiando e colando, um modelão de inadmissibilidade por falta de pré-questionamento. Mas, no longo prazo, reduzirá, e muito, o trabalho do Judiciário, pois resolverá em definitivo a questão, evitando que, tal como os temas 881 e 885, continuem 30 anos depois a ocupar os ministros da Suprema Corte.

Autores

  • é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!