Seguros Contemporâneos

Tecnologia em saúde: o impacto na saúde suplementar

Autores

  • Angélica L. Carlini

    é pós-doutorada em Direito Constitucional doutora em Direito Político e Econômico mestre em Direito Civil coordenadora da área de Direito da Escola de Negócios e Seguros (ENS) docente da Universidade Metropolitana de Santos (Unimes) e da Universidade Paulista (Unip) advogada parecerista consultora em seguros e saúde suplementar e pesquisadora em saúde suplementar – avaliação de tecnologias em saúde junto ao Ibmec-Rio de Janeiro.

  • Fernanda Paes Leme

    é doutora em Direito Civil mestra em Direito Civil professora titular de Direito Civil do Ibmec-RJ coordenadora da graduação em Direito do Ibmec-RJ advogada parecerista e consultora.

  • Vivian Vicente de Almeida

    é mestre e doutora em Economia graduanda em Direito professora titular de Economia no Ibmec-RJ economista técnica pericial consultora e pesquisadora em saúde suplementar – avaliação de tecnologias em saúde junto ao Ibmec-RJ.

31 de março de 2022, 8h00

Introdução
A saúde suplementar está no centro de significativa discussão jurídica no Superior Tribunal de Justiça neste momento histórico: a decisão da 2ª Sessão de Direito Privado sobre a taxatividade ou não do rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Para a 3ª Turma do STJ, o rol é exemplificativo e para a 4ª Turma ele é taxativo. O principal argumento da taxatividade é a necessidade de predeterminação de riscos para construção de bases atuariais e estatísticas sólidas que permitam às operadoras garantir sustentabilidade e solvência para os fundos mutuais que organizam e administram. Para os que defendem o caráter exemplificativo do rol o argumento fundamental é que não se pode restringir acesso a procedimentos e eventos que possam ser benéficos para a saúde dos beneficiários de planos de saúde.

O argumento da 3ª Turma em defesa do caráter exemplificativo merece uma reflexão atenta.

O rol de procedimentos, eventos da ANS e avaliação de novas tecnologias
A Resolução Normativa nº 470, de 2021, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), artigo 3º, ao determinar as diretrizes que o processo de atualização do rol deverá seguir, elencou os princípios da avaliação de tecnologias em saúde (ATS) como uma das diretrizes essenciais.

No artigo 4º da mesma resolução a ANS definiu avaliação de tecnologias em saúde como processo contínuo e abrangente de avaliação dos impactos clínicos, sociais e econômicos das tecnologias em saúde, que leva em consideração aspectos como eficácia, efetividade, segurança, custos, entre outros, com objetivo principal de auxiliar os gestores em saúde na tomada de decisões quanto à incorporação, alteração de uso ou retirada de tecnologias em sistemas de saúde.

Lima, Brito e Andrade [1] ressaltam como objetivos da metodologia: "A ATS tem como principal objetivo auxiliar os gestores em saúde na tomada de decisões coerentes e racionais quanto à incorporação de novas tecnologias, evitando a introdução de tecnologias cujo valor é incerto para os sistemas de saúde e optando por uma abordagem política responsável (accountable) pelas decisões para a população".

O imperativo de agir com responsabilidade na incorporação de novas tecnologias em saúde é muito importante em tempos como os atuais em que há forte pressão da indústria de medicamentos, equipamentos para realização de exames de imagem e clínicos, fabricantes de órteses, próteses e material especial (stents coronarianos, placas e parafusos para cirurgias ortopédicas, de coluna e outras) e outros insumos de saúde.

Incorporar tecnologias com responsabilidade e segurança em um momento em que a indústria produz de forma frenética novas tecnologias para a área de saúde, beneficiada pelo aumento da pesquisa e do conhecimento científico e pelo grande impulso da circulação de informações que as redes sociais e a internet permitem, é sem dúvida, um desafio de enormes proporções.

Nesse sentido, Hans Jonas [2] destaca que a ciência vive do retorno que sua aplicação técnica lhe confere, ou seja, o pesquisador não faz pesquisa por interesse ou curiosidade como no início da fase histórica de utilização do método científico. Ao contrário, no mundo contemporâneo os objetivos de pesquisa foram substancialmente modificados para que tragam sempre algum resultado que possa ter utilização prática. Nesse contexto, o financiamento para custeio de pesquisa será mais facilmente obtido se dela resultarem benefícios no campo prático, o que é positivo para a pesquisa científica porque quanto maior a aplicabilidade maiores recursos serão destinados aos pesquisadores e seus centros e institutos. Mas essa relação entre resultados financeiros favoráveis para os investidores em pesquisa e a responsabilidade ética dos pesquisadores precisa ser analisada com objetividade.

Hans Jonas [3] conclui que em razão do relacionamento entre a produção de pesquisa e os resultados práticos, a ciência ingressa no campo da ação social e todos devem responder pelos seus atos: "a onipresente experiência de que os potenciais de uso das descobertas científicas tornam-se irresistíveis no mercado de benefício e de poder — que o que mostraram como exequível se faz, com ou sem prévio consentimento à respeito — e ficará suficientemente claro que nenhuma insularidade da teoria protege agora o teórico de ser autor de enorme e incalculáveis consequências".

Os procedimentos para a realização de uma pesquisa que atenda rigorosamente os métodos científicos e as fases clínicas definidas por parâmetros objetivos de segurança, perdem em velocidade para as necessidades da sociedade que, cada vez mais, deseja novas tecnologias em saúde principalmente na área de medicamentos.

Paula Moura F. de Lemos Pereira [4] ressalta sobre esse aspecto que

"Nos séculos XX e XXI a procura pelo progresso, pelo saber científico ligado à medicina, se desenvolveu de forma acelerada e novos interesses conduziram as pesquisas. A medicina acabou influenciando na definição dos comportamentos, pessoas e coisas e na busca por medicamentos que são utilizados para propósitos que muitas vezes extrapolam a função precípua de aliviar sintomas e curar doenças. Procuram-se novos serviços não apenas para fins terapêuticos, mas também para o desenvolvimento de especialidades médicas. (…) A força do setor farmacêutico — guiado por causas superficiais a serviço da lógica do mercado — introduz novas tendências, que aumentam o consumo de medicamentos. (…) Constantemente as indústrias farmacêuticas utilizam métodos para construir sua hegemonia, valendo-se não só de propaganda e publicidade dirigidas aos médicos e aos consumidores, mas também controlando investigações, financiando congressos, cursos de formação etc. O resultado pode ser o uso irracional dos medicamentos, a intensificação de processo de medicalização e o incremento da automedicação, com a mercantilização da produção e da prescrição."

A autora revela, ainda, a possível adoção de padrões éticos diferenciados da indústria farmacêutica para países desenvolvidos e países periféricos [5]. Para esses, quaisquer benefícios resultantes dos experimentos já seriam superiores àquilo de que dispõem em seu sistema de saúde pública. A proposta caracteriza dupla ética de pesquisa com seres humanos, uma para países economicamente mais desenvolvidos e outra para países periféricos, questão já discutida pelo Conselho Nacional de Saúde e pelo Ministério da Saúde [6].

Com esse cenário é indiscutível que a ética e a responsabilidade precisam ser valorizadas quando se trata de pesquisa científica e incorporação de novas tecnologias em saúde.

O Brasil, infelizmente, já foi protagonista de um episódio lamentável em termos de inserção de substância não aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não aprovada por órgãos de fiscalização em nenhuma parte do mundo e, severamente questionada pelos especialistas da área. Trata-se da fosfoetanolamina que foi chamada de pílula do câncer, produzida e fornecida indevidamente por um pesquisador da Universidade de São Paulo, no campus de São Carlos.

Vários pacientes receberam prescrição de seus médicos para utilizarem essa substância que não estava registrada na Anvisa, não estava sendo testada com métodos de pesquisa clínica e para a qual sequer se conhecia a posologia adequada para utilização. Todos eram pacientes portadores de algum tipo de câncer em diferentes estágios.

O Supremo Tribunal Federal, em outubro de 2015, em decisão monocrática do ministro Luiz Edson Fachin, concedeu liminar para suspensão da decisão denegatória do TJ-SP e autorizou que a substância fosse oferecida ao paciente. Desnecessário lembrar que na esteira dessa decisão outras milhares de liminares foram concedidas para que outras tantas pessoas pudessem utilizar a substância.

Não havia pesquisa e nem evidência científica de que a fosfoetanolamina pudesse ser benéfica para portadores de câncer. De outro lado, foram muitas opiniões de oncologistas desfavoráveis a utilização exatamente pela completa ausência de sustentação científica para garantir a eficiência da substância e, principalmente, para que ela não agravasse o estado de saúde dos usuários.

Neste caso específico, a pressão sequer foi da indústria de fármacos, mas dos próprios portadores de câncer que, diante da possibilidade de encontrarem auxílio para o tratamento, não hesitaram em optar por ingerir substância duvidosa. O que impressiona é que para todos os casos em juízo, havia prescrição médica para que o paciente pudesse ingerir substância que não havia sido objeto de ensaios clínicos, tampouco havia sido aprovada pela Anvisa.

ATS como fator de segurança
O rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS passou a obedecer às regras determinas pela Lei 14.307, de 2022, que estabeleceu o prazo de 180 dias contados da data em que foi protocolado o pedido, prorrogável por mais 90 dias quando as circunstâncias o exigirem.

O prazo será menor — 120 dias — quando se tratar de cobertura de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso orla, incluindo medicamentos para controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvante; e, cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais de uso oral, incluindo medicamentos para controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvante.

As tecnologias avaliadas e recomendadas positivamente pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), instituída pela Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011, cuja decisão de incorporação ao SUS já tenha sido publicada, serão incluídas no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar no prazo de até 60 dias.

A avaliação de novas tecnologias deverá ser efetivada nos prazos determinados pela nova lei e a ANS contará, para isso, com os recursos da Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, que foi criada pela mesma lei e a qual compete assessorar a ANS nas atribuições designadas no parágrafo 4º do artigo 10 da Lei 9.656, de 1998, ou seja, definir a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive para transplantes e procedimentos de alta complexidade.

Os prazos mais curtos adotados pela lei não devem ser um fator de negligência para que as diretrizes da Resolução Normativa 470, de 2021, especificadas no artigo 3º, sejam rigorosamente cumpridas. As diretrizes impõe a defesa do interesse público na assistência à saúde suplementar, de modo a contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país; as ações de promoção à saúde e de prevenção de doenças; o alinhamento com as políticas nacionais de saúde; a utilização dos princípios da avaliação de tecnologias em saúde (ATS); a observância aos princípios da saúde baseada em evidências (SBE); a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor; e a transparência dos atos administrativos.

Sem avaliação de tecnologia em saúde realizada de forma científica e confiável, atendendo às melhores normas internacionais das redes de ATS existentes em várias partes do mundo, não haverá como garantir que o rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS seja seguro, ético e responsável.

Se os prazos mais curtos para a incorporação de novas tecnologias atendem a anseios legítimos da sociedade, também colocam em risco a segurança e ampliam a vulnerabilidade para as pressões financeiras da cadeia de suprimentos do setor de saúde suplementar.

Conclusão
Parte da sociedade brasileira fez uma clara opção pela contratação de saúde suplementar por entender que o Sistema Único de Saúde (SUS), em que pese todos os esforços de seus trabalhadores, ainda não atende com eficiência todo o território nacional. Neste momento, são quase 49 milhões de pessoas que contratam saúde suplementar no país, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar [7].

Manter o sistema de saúde suplementar sustentável e solvente, com atendimento de qualidade para os beneficiários é papel primordial das operadoras de saúde e da ANS, porém, a segurança na incorporação de novas tecnologias em saúde é, também, um aspecto essencial que não pode ser negligenciado.

Velocidade de incorporação e ampliação do escopo dos procedimentos podem, por esse critério, transitarem de possibilidades para objetivos, sem que necessariamente se traduzam em benefícios para os usuários. A avaliação de tecnologias de saúde surge, nesse sentido, como importante ferramenta para adoção das melhores técnicas. A pressão financeira da indústria de suprimentos da cadeia de fornecedores para saúde é intensa, isso ocorre em todos os países do mundo e tem preocupado os gestores em saúde pública e privada.

Segurança na incorporação com uso de avaliação de tecnologia em saúde é tema que precisa estar presente nas reflexões sobre o rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS. Rol exemplificativo poderá não ser o mais seguro para todos.

* esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.


[1] Lima, Sandra Gonçalves Gomes; Brito, Cláudia de; e Andrade, Carlos José Coelho de. O processo de incorporação de tecnologias em saúde no Brasil em uma perspectiva internacional. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2019, v. 24, nº 5 [Acessado 17/2/2022], pp. 1709-1722. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018245.17582017.

[2] JONAS, Hans. Técnica, Medicina e Ética. S. Paulo: Paulus, 2013, p. 107.

[3] op. cit., p. 108.

[4] PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. Responsabilidade Civil nos Ensaios Clínicos. Indaiatuba: Editora Foco, 2019, p. 13-15.

[5] op. cit., p. 16.

[6] Resolução nº 404/2008 do CNS. "(…) considerando que apesar de haver item na Declaração de Helsinque recomendando que, se possível, os voluntários tenham acesso aos cuidados de saúde reconhecidamente eficazes independente de seu local de origem e capacidade econômica bem como item recomendando não utilizar placebo quando há tratamento eficaz, duas notas de esclarecimento sobre estes dois itens enfraqueceram estes requisitos abrindo espaço para excepcionalidades que facilitam o duplo standard (tratamento diferente de voluntários dependendo de sua origem e capacidade econômica)".

[7] Sala de Situação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) Beneficiários – 48.945.306. Disponível em: https://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Perfil_setor/sala-de-situacao.html. Acesso em 25/3/2022.

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    é pós-doutorada em Direito Constitucional, doutora em Direito Político e Econômico, mestre em Direito Civil, coordenadora da área de Direito da Escola de Negócios e Seguros (ENS), docente da Universidade Metropolitana de Santos (Unimes) e da Universidade Paulista (Unip), advogada, parecerista, consultora em seguros e saúde suplementar e pesquisadora em saúde suplementar – avaliação de tecnologias em saúde junto ao Ibmec-Rio de Janeiro.

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    é doutora em Direito Civil, mestra em Direito Civil, professora titular de Direito Civil do Ibmec-RJ, coordenadora da graduação em Direito do Ibmec-RJ, advogada, parecerista e consultora.

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    é mestre e doutora em Economia, graduanda em Direito, professora titular de Economia no Ibmec-RJ, economista, técnica pericial, consultora e pesquisadora em saúde suplementar – avaliação de tecnologias em saúde junto ao Ibmec-RJ.

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