Opinião

Trunfo da pandemia reduz honorários mínimos em 7.400 vezes

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  • é advogado inscrito no Brasil e em Portugal mestre em Direito dos Contratos e da Empresa na Universidade do Minho em Portugal pós-graduado em Direito do Consumidor pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) MBA em Gestão de Negócios pelo Ibmec ex-membro do Comitê Técnico Regional Jurídico Sudeste da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp) e profissional CPA-20 certificado pela Ambima.

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31 de março de 2022, 11h17

A advocacia comemorou no último dia 16 de março a proibição de reduzir honorários de sucumbência para abaixo dos limites legais. Para espanto e indignação de alguns, a Corte Especial do STJ determinou que os magistrados devem aplicar exatamente o que está previsto de forma detalhada no CPC. Não entrarei no mérito dessa correta decisão. O problema é que o assunto não está encerrado. Em 21 de fevereiro deste ano, o STF [ACO 2.988] usou argumentos incompreensíveis para reduzir honorários de 1% para 0,000135%. Em matemática simples, dividiu o valor mínimo por 7.400. Muitas críticas já foram feitas. Entretanto, é necessário observar a decisão também sob o ponto de vista financeiro. Digo isso, pois a linha argumentativa utilizada pelo STF escora-se em uma lógica financeira enigmática. Ora, todos sabemos que honorários de sucumbência, multa e juros de mora têm natureza jurídica bem diferente. Contudo — do prisma estritamente financeiro — são idênticos: aumentam a dívida.

Ocorre que, na referida ação, depois de perder no mérito e, para evitar um acréscimo financeiro de 1%, o Estado-devedor jogou a carta da Covid-19 dizendo que 1% era: "inegavelmente desproporcional, capaz de gerar prejuízo extraordinário aos cofres públicos, num cenário sanitário e econômico, que exige maior dispêndio de recursos na prestação de serviços públicos e na proteção da população vulnerável". Diante dessa assertiva, o acórdão acolheu a tese. Vejamos: "a fixação dos honorários em percentual do valor da causa gera à parte sucumbente condenação desproporcional e injusta". Para tanto, o voto do relator sustenta uma teórica coerência com dois precedentes. O primeiro diz que é possível aplicar a equidade se a condenação for desproporcional, injusta e colocar em risco "de modo grave e/ou irreversível, a continuidade da execução de políticas públicas ou a prestação de serviços essenciais à coletividade" [ACO 637 ED]. O segundo precedente fixa honorários em 5%. [ACO 1.650]. Ou seja, um percentual 37.000 vezes maior do que a apreciação equitativa supostamente promovida pela decisão mais recente do STF.

Veja que os fundamentos argumentativos não alegam um suposto enriquecimento sem motivo. Dirigem-se, em verdade, à onerosidade financeira excessiva para o devedor. Segundo o cálculo matemático do STF, o aumento de uma dívida do Estado-devedor em 1% — isso mesmo, 1% — é injusta e põe em causa prestação de serviços essenciais. Em outras palavras, podemos compreender que, como o poder executivo deve proteger sua população mais vulnerável durante a crise sanitária e econômica, os valores devidos aos advogados devem ser reduzidos 7.400 vezes. Chama atenção que não foi deferido parcelamento ou diferimento. O STF acredita que a existência da pandemia exige mesmo um corte definitivo no valor da dívida estatal (mesmo que a ação tenha sido proposta há cinco anos e se refira à compensação de tributos entre 1988 e 1999.)

Com o máximo de respeito aos ministros, parece estarmos diante de uma hipótese clássica em que há absoluta contradição entre os fundamentos da decisão e o dispositivo. Mesmo que fosse possível reduzir os honorários advocatícios para abaixo do mínimo legal, deveria ter sido realizada uma apreciação financeira com outros paradigmas.

Falando de tributos, em alguns casos, o contribuinte inadimplente vê sua dívida agravada em mais de 100% apenas pela multa. Certo é que, atualmente, espera-se que o STF [Tema 1.195 – Repercussão Geral] limite a multa a 100%. O que justificaria tamanha desproporção? Ao mesmo passo em que o STF ainda vai decidir se a dívida do Estado-credor pode ser agravada em mais de 100%, o Estado-devedor, tem o acréscimo de sua dívida reduzido (por argumento de equidade) para 0,000135%. Significa um valor 740.000 vezes inferior ao teto que acreditamos que o STF irá definir para o Estado-credor.

Peço licença para recordar também que uma dívida, fruto de um ato ilícito do Estado-devedor reconhecido pelo STF, é corrigida pela Selic. Em grandes números, representa hoje que, a cada mês, o débito aumenta em 1%. Retroagindo a um prazo mais longo de 10 anos, a correção pela Selic acumulada é de aproximadamente 123%. Isso quer dizer que R$ 100,00 devidos pelo Estado-devedor há dez anos representariam R$ 224,00. Sendo R$ 100,00 de valor original; R$ 123,00 de Selic e, apenas R$1,00 relativo a honorários. Logo, o acréscimo de 1% é insignificante para impedir a prestação de serviços essenciais.

Ainda do ponto de vista financeiro, não custa destacar que uma simples execução fiscal agrava o débito do contribuinte de 5% a 20% a título de honorários (artigo 827 CPC). Traduzindo: o Contribuinte-devedor pode ter o débito agravado em honorários em até 20%, já o Estado-devedor, por "equidade", tem sua dívida acrescida em honorários em 0,000135%.

Por fim, as fazendas públicas não são hipossuficientes que enfrentam uma poderosa horda de contribuintes. Pelo contrário, as estatísticas do CNJ comprovam que estão no papel de maiores litigantes a consumir a máquina do poder judiciário. Por tudo isso, há muita dificuldade em compreender uma equidade financeira que opera de maneira tão incisiva justamente a favor do mais forte. Sim, a OAB ainda terá muito trabalho na luta pela proibição de fixar honorários abaixo do mínimo legal. No entanto, permanece a confiança de que a interpretação da Corte Especial do STJ vai prevalecer.

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  • é advogado inscrito no Brasil e em Portugal, mestre em Direito dos Contratos e da Empresa na Universidade do Minho em Portugal, pós-graduado em Direito do Consumidor pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), MBA em Gestão de Negócios pelo Ibmec, ex-membro do Comitê Técnico Regional Jurídico Sudeste da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp) e profissional CPA-20 certificado pela Ambima.

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