Interesse Público

Em busca da legitimidade ativa perdida na ação de improbidade administrativa

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31 de março de 2022, 8h00

Em decisão tomada em 17 de fevereiro de 2022, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, em liminar monocrática concedida nas ADIs 7.040 e 7.043, movidas, respectivamente, pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape) e pela Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe), suspendeu o artigo 3º da Lei 14.230/21 e atribuiu interpretação conforme a Constituição aos §§6º-A, 10 e 14 do artigo 17 da Lei 8.429/92 (reformada), a fim de restaurar a legitimidade ativa das entidades públicas nas ações de improbidade administrativa. A decisão do ministro ainda será submetida ao crivo do Plenário, na forma da Lei 9.868/99 e do RISTF.

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Nos termos do decisum, "o art. 129, § 1º, da Constituição Federal — diferentemente da previsão constitucional do inciso I, do artigo 129 da Constituição Federal, que prevê a privatividade da ação penal pública ao Ministério Público — dispõe, expressamente, que a legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas nesse artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto na própria Constituição e na lei".

Os demais argumentos utilizados pela decisão fundam-se em aspectos de ordem moral, a compreender que a lei estaria a conceder "uma espécie de monopólio absoluto do combate à corrupção ao Ministério Público, não autorizado, entretanto, pela Constituição Federal", porquanto "a supressão da legitimidade ativa das pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação de improbidade administrativa pode representar grave limitação ao amplo acesso à jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), com ferimento ao princípio da eficiência (CF, art. 37, caput) e, no limite, obstáculo ao exercício da competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para 'zelar pela guarda da Constituição' e 'conservar o patrimônio público' (CF, art. 23, I), bem como, um significativo retrocesso quanto ao imperativo constitucional de combate à improbidade administrativa".

Antes de adentrar ao âmago da discussão, é preciso deixar claro que sustentar o acerto (ou a erronia) da Lei de Improbidade Administrativa não significa chancelar, por via indireta, qualquer tipo de ato de corrupção ou assemelhado. O debate que se coloca no caso não é relativo à amplificação ou mitigação de atribuições de investigação e punição dos órgãos estatais, tampouco à preservação de nichos classistas de poder no seio do Estado, senão à identificação dos meios jurídicos mais corretos para o exercício das competências públicas, o que serve, do ponto de vista jurídico, para que o bom combate aconteça nos quadrantes estabelecidos pelo direito positivo.

Em acréscimo, convém obtemperar que o fato de o legislador diminuir uma das armas judiciais (diante de tantas existentes no arsenal das entidades públicas), que se predicam a combater movimentos indevidos no campo da Administração Pública, nem de longe consiste em violação à competência material das entidades estatais de zelar pelo patrimônio público.

Se há meios administrativos e judiciais mais efetivos, expeditos e menos gravosos — ainda que sem apelo midiático (ações indenizatórias comuns, ações civis públicas clássicas, processos administrativos disciplinares, tomadas de contas especiais) —, para que se alcancem os resultados desejados, com menor sacrifício de tempo, recursos e direitos dos réus, a questão passa a ser de proporcionalidade e eficiência [1].

Já tive a oportunidade de registrar, sob a redação antiga da Lei 8.429/92, posição que criticava o enquadramento da ação de improbidade administrativa como uma típica ação de natureza civil, in verbis: "as ações de improbidade administrativa não são ações civis por excelência. Tratá-las como tal é um equívoco. São ações de conteúdo punitivo, participantes do microssistema do Direito Administrativo Sancionador. São ações 'penaliformes', subordinadas muito mais de perto à 'principiologia' — repito: à 'principiologia' — típica do Direito Penal e do Processo Penal" [2].

Após a edição da Lei 14.230/21 e à decisão comentada do STF, autores têm manifestado suas opiniões quanto à natureza jurídica da ação de improbidade e quanto à correção ou não da decisão monocrática citada, valendo registrar, entre outros, Carlos Ari Sundfeld [3], Rodrigo Mudrovitsch e Guilherme Nóbrega [4], Tiago Martins [5], Marçal Justen Filho [6].

Realmente, sobre a natureza jurídica da ação de improbidade, o artigo 17-D, caput da Lei 8.429/92 (incluída pela Lei 14.230/21) é categórico-textual e não deixa dúvida de sua intenção, ao dizer que "a ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos".

A respeito dessa qualificação da ação de improbidade, a r. decisão do ministro Alexandre de Moraes, invocou como parâmetro de decidir o parágrafo 1º do artigo 129 da Constituição, segundo o qual "a legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei".

É dizer que o dispositivo constitucional utilizado pelo ministro Moraes (§1º do artigo 129) considerou a ação de improbidade como ação civil, já que a constituinte exige cumulativamente, para o reconhecimento da legitimidade ativa de terceiros em relação às ações descritas no artigo 129, que: (a) se trate de ação civil; (b) haja dispositivo constitucional ou legal a atribuir a legitimidade a outrem, que não o Ministério Público.

Como decorrência disso, nota-se que a regra do parágrafo 1º do artigo 129 da Constituição somente pode estar associada à disposição do inciso III caput do artigo 129, que faz alusão apenas à ação civil pública, cujo objeto é a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, e que se regula ordinariamente pela Lei 7.347/85 (LACP). Esta lei deveras prescreve legitimidade ativa concorrente ao MP e às entidades lesadas (e, ainda, às associações civis), conforme se pode inferir da disposição do seu artigo 5º, caput.

Por outro lado, uma vez que o legislador não mais enquadra a ação de improbidade administrativa como uma ação de natureza civil — e ele é explícito quanto a isso —, o fundamento constitucional para a legitimidade ativa das entidades públicas (lesadas ou interessadas) não pode mais decorrer do artigo 129, §1º combinado com o inciso III do artigo 129 da Constituição, tal como expresso na r. decisão do ministro Moraes. Depois das novidades legislativas sobressarem duas possibilidades para o caso:

a) Ou a ação de improbidade administrativa deve ser encarada como ação penal (de natureza não criminal, porém administrativo-sancionatória), encartando-se na legitimidade ministerial ativa exclusiva, por força do artigo 129, I da Constituição (promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei);

b) Ou a ação de improbidade deve ser encarada como ação de caráter punitivo de natureza não civil, sui generis, assentada na competência genérica atribuída ao Ministério Público pelo artigo 129, IX da Constituição ("exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas").

Em ambos os casos, o constituinte não autoriza a extensão da legitimidade ativa a terceiros, tal como se passa, na forma do artigo 129, parágrafo 1º da Constituição com ações civis.

Data vênia, é claro!


[1] JUSTEN FILHO, Marçal. A suspensão dos direitos políticos e o Ministério Público. Jota. 8/3/2022. Acesso em 22/3/2022, onde se lê: "O interesse da pessoa estatal, vítima da improbidade, quanto à indenização pelos prejuízos (se houver) e à imposição da sanção pela infração pode ser satisfeito por vias específicas, no âmbito do processo administrativo ou por ação comum".

[2] Ver, por todos, FERRAZ, Luciano. Ausência de Duplo Grau de Jurisdição obrigatório nas ações de improbidade administrativa. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jan-30/interesse-publico-ausencia-duplo-grau-jurisdicao-obrigatorio-acoes-improbidade. Acesso em 22/3/2022. Nesse sentido, o STJ chegou a orientar que 'o objeto próprio da ação de improbidade é a aplicação de penalidades ao infrator, penalidades essas substancialmente semelhantes às das infrações penais. Ora, todos os sistemas punitivos estão sujeitos a princípios constitucionais semelhantes, e isso tem reflexos diretos no regime processual. É evidente, assim — a exemplo do que ocorre, no plano material, entre a Lei de Improbidade e o direito penal —, a atração, pela ação de improbidade, de princípios típicos do processo penal" (REsp 885.836/MG (2006/0156018-0), relator ministro Teori Zavascki, 1ª T, DJ de 2/8/2007, p. 398)

[3] SUNDFELD, Carlos Ari. A advocacia pública não depende da ação de improbidade. Jota, 22.02.2022.

[4] MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt. NÓBREGA, Guilherme Pupe da. A separação entre ação de improbidade e ação civil pública. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/improbidade-debate-separacao-entre-acao-improbidade-acao-civil-publica.

[6] JUSTEN FILHO, Marçal. A suspensão dos direitos políticos e o Ministério Público. "Jota". 8/3/2022. Acesso em 22/3/2022. Registra Marçal: "A punição primordial por improbidade administrativa é a suspensão dos direitos políticos. A sanção reflete a repulsa a quem se prevaleceu da função pública para obter vantagens indevidas, lesar os cofres públicos ou infringir princípios administrativos essenciais. Os danos sofridos não impõem legitimidade ativa da Administração para a ação de improbidade. Na ação de improbidade, tal como se passa com os crimes contra a Administração Pública, incumbe ao Ministério Público exercer a pretensão punitiva da comunidade em geral. A sentença condenatória impõe punição ao infrator da sociedade, não para satisfazer interesse próprio ou pessoal do autor da ação".

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