Opinião

Julgamento pendente no STF sobre Lei Maria da Penha e sua constitucionalidade

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30 de março de 2022, 9h14

No decorrer do ano de 2019, foi publicada a Lei nº13.827/19 introduzindo na Lei Maria da Penha importantes alterações no que tange às medidas protetivas de urgência e sua decretação. Desde o momento em que as mudanças implementadas pela nova norma foram publicadas, surgiu no universo jurídico uma grande onda de indagações acerca da sua constitucionalidade, motivo pelo qual o Supremo Tribunal julgará nos próximos dias a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.138 movida pela Associação de Magistrados do Brasil, a qual pretende a decretação de inconstitucionalidade da referida norma. Este diploma legal introduziu a competência de que os delegados de polícia e policiais militares possam, em determinados casos, afastar provisoriamente do lar o agressor em casos de violência doméstica. O artigo inserido é o 12-C, e contém a seguinte redação:

"Artigo 12-C: Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:
I – pela autoridade judicial;
II – pelo delegado de polícia, quando o município não for sede de comarca; ou
III – pelo policial, quando o município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.
§1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente".

Quando analisamos a compatibilidade, ou não, de um diploma normativo ao ordenamento jurídico como um todo, é necessário verificar se há na norma analisada convergência com os Tratados e Convenções Internacionais nos quais o Brasil seja signatário, e verificar se há compatibilidade da nova norma com os preceitos Constitucionais.

No que tange ao Controle de Convencionalidade, por meio da Convenção de Belém, o Brasil se compromete a implementar medidas jurídicas que busquem erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher. Ademais, através da Convenção Americana de Direitos Humanos, foi instituído a necessidade que os países signatários criassem medidas para potencializar a efetiva proteção à vítima de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Assim, sob a ótica da convencionalidade, a ideia do Delegado de Polícia determinar o afastamento do agressor do lar, vai ao encontro dos compromissos globais firmados pelo Brasil.

Entretanto, a problemática trazida pela novidade legislativa encontra barreira na constitucionalidade. O motivo intentado pela ADI 6.138 é exatamente no que tange à própria natureza do afastamento do lar, que nada mais é do que uma medida cautelar como qualquer outra. Sendo medida cautelar, a matéria encontra guarida na reserva de jurisdição, e portanto, não pode o Delegado de Polícia, um agente da Administração Pública, implementar uma medida desta natureza sob nítida afronta ao artigo 2º da Constituição, o qual determina a separação entre os poderes da república.

Certo é que, por vezes, um poder pode praticar atos que seriam inerentes à atuação de outro poder. Entretanto, essa atuação é sempre restritiva e baseada através de um permissivo constitucional, o que não ocorre na situação em comento.

Não obstante, é importante ressaltar que a Lei Maria da Penha havia sido modificada pela Lei 13.505/17, fazendo constar no bojo do artigo 12-B a possibilidade da autoridade policial implementar, por si só, medidas protetivas de urgência, dentre elas o próprio afastamento do lar. Na época este preceito legal foi vetado pela presidência da república, exatamente com base na infringência ao princípio constitucional da reserva de jurisdição e ao argumento de que essa atribuição transbordaria os poderes de polícia judiciária confiados no artigo 144, §4º da Constituição.

Vozes pela constitucionalidade do dispositivo ora analisado afirmam que a sistemática do artigo 12-C não descarta à necessidade de reserva de jurisdição para a aplicação efetiva do afastamento do lar, baseado no fato de que após a decretação subsidiária do delegado de polícia ou pelo policial, o juiz competente será informado acerca da restrição no prazo máximo de 24 horas, e decidirá sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada. Vejamos que a sistemática analisada por esse ângulo demonstra que a situação em comento possui extrema similitude ao implemento de uma prisão em flagrante, nos termos do artigo 306, §1° do Código de Processo Penal. Este dispositivo legal determina que, a prisão em flagrante será encaminhada ao juiz competente em até 24 horas, ademais, no mesmo prazo o juiz irá designar audiência de custódia para nela decidir acerca da manutenção ou não da prisão, conforme Resolução do CNJ.

Estaríamos diante de uma medida absolutamente excepcional, um exercício anômalo da jurisdição e que não seria propriamente estranho, tendo em vista que a fiança arbitrada pelo Delegado de Polícia é comumente citada como exemplo de exercício anômalo da jurisdição, já que possui natureza cautelar tal qual uma medida de afastamento do lar.

Outro argumento muito forte pela constitucionalidade da Lei 13.827/19 diz respeito ao preceito constitucional contido no artigo 226, §8° da Constituição, o qual estabelece ser dever do Estado a proteção integral à família, na pessoa de cada um dos seus integrantes.

Se somarmos este preceito ao princípio da vedação a proteção deficiente e ao fracasso, por vezes, dos mecanismos atuais contidos na Lei Maria da Penha, o disposto na Lei em questão seria uma forma de dar uma concretude maior às Convenções Internacionais firmadas pelo Brasil sobre o tema e na proteção às vítimas de casos envolvendo violência doméstica e familiar, sem de fato afastar a reserva de jurisdição, visto que em 24 horas a medida será revista pelo Poder Judiciário.

É importante ter em mente que, talvez uma inovação dessa natureza não tenha tanto sentido em realidades de grandes centros urbanos, entretanto, existem lugares de regiões interioranas nos quais o acesso à justiça não é tão simples assim.

A questão é de extrema relevância e será em breve analisada pelo Supremo Tribunal Federal. Levando em consideração o perfil adotado pela Suprema Corte nas últimas decisões envolvendo o tema, sobretudo sem negar a primazia da jurisdição, é possível que toda essa relação abarcada pela Lei 13.827/19 seja reconhecida como constitucional.

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