Opinião

A ADI 5.637 e o termo circunstanciado impróprio ou anômalo

Autores

  • Rafael Francisco Marcondes de Moraes

    é mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP) professor da Academia de Polícia do Estado de São Paulo e de cursos de graduação e pós-graduação e delegado de polícia do estado de São Paulo.

  • Emerson Ghirardelli Coelho

    é delegado de polícia de São Paulo mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) doutorando em Direito pela Universidade do Porto especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).

29 de março de 2022, 11h19

O Supremo Tribunal Federal, em sessão virtual de 4 a 11 de março últimos, julgou improcedente a ADI 5.637, que questionava o artigo 191 da Lei Estadual 22.257/16, de Minas Gerais, dispositivo que autoriza todos os integrantes de órgãos policiais estaduais a lavrarem o termo circunstanciado do artigo 69 da Lei 9.099/95.

No voto, o ministro relator sustentou, em suma, que o termo circunstanciado não encerra "função investigativa" e tampouco seria "atribuição privativa de polícia judiciária" elaborá-lo, concluindo que, "tendo a norma federal indicado ser possível que qualquer autoridade possa proceder à lavratura do termo, aos Estados cabe apenas indicá-las e foi, precisamente, o que fez o estado de Minas Gerais" [1].

A decisão, contudo, contraria expressas disposições constitucionais e legais, assim como precedentes da própria Corte prolatora, que, ao julgar a ADI 3.612, sedimentou o entendimento de que a formalização de termo circunstanciado, nas hipóteses de infrações de menor potencial ofensivo, constitui atividade de polícia judiciária, caracterizando-se usurpação de função a sua elaboração por agentes do policiamento ostensivo-preventivo [2].

O conteúdo do julgado proferido na ADI 5.637 também desconsidera que a norma federal (Lei 9.099/95, artigo 69) é enfática ao atribuir à autoridade policial, e não a "qualquer autoridade", a lavratura do termo circunstanciado. Inclusive, dispõe a referida lei, de modo explícito, que a autoridade policial providenciará "as requisições dos exames periciais necessários", ação esta de incontestável natureza investigatória, voltada à apuração e comprovação da autoria e materialidade delitivas, ensejando, ainda, apreensões de objetos, instrumentos, drogas ou armas, requisições de documentos, imagens, áudios, vídeos e informações, reconhecimentos de pessoas ou objetos, entre tantas outras diligências essenciais à finalidade apuratória.

A expressão "autoridade policial", contida na Lei 9.099/95, no CPP e no ordenamento processual penal especial, sempre foi empregada pelo legislador para se referir à figura do delegado de polícia [3], como dirigente das atividades de polícia judiciária e titular da investigação criminal, hoje por expressa previsão constitucional (CF, artigo 144, §4º).

A Lei Federal 12.830/13, em seu artigo 2º, §1º, consolidou essa realidade jurídica consagrada na Constituição Federal, reforçando tratar-se o delegado de polícia da "autoridade policial" natural para a condução da investigação criminal, por intermédio de inquérito policial ou "outro procedimento previsto em lei". É, portanto, o termo circunstanciado um dos procedimentos previstos em lei destinados à apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais de menor potencial ofensivo, o que impõe a sua presidência por delegado de polícia.

O vocábulo "termo" significa peça na qual determinados atos jurídicos são formalizados, enquanto "circunstanciado" denota algo detalhado, minucioso, pormenorizado [4], a definir o "termo circunstanciado" como forma procedimental estabelecida em lei, que serve de modelo ao cumprimento de atos afetos à apuração de delitos de menor potencial ofensivo, a obstar uma leitura vulgarizada e a inobservância de ditames processuais penais durante sua formalização e trâmite.

No processo penal forma é garantia [5] e o termo circunstanciado constitui forma mais simples de investigação preliminar [6], materializada em procedimento legal que condensa e, preliminarmente, substitui o auto de prisão em flagrante delito e o respectivo inquérito policial. Logo, trata-se de procedimento investigatório criminal, orientado a documentar a verificação da autoria e da materialidade das infrações de menor potencial ofensivo, mediante diligências investigatórias adequadas às circunstâncias de cada caso concreto [7].

Diante de suspeita de estado flagrancial pelo cometimento de infrações de menor potencial ofensivo, há abordagem e captura do suspeito (prisão-captura). Essa captura pode não ensejar a decretação da prisão em flagrante, via auto prisional (prisão-custódia) [8], caso o investigado se comprometa a comparecer ao Poder Judiciário (Lei 9.099/95, artigo 69, parágrafo único).

Como se nota, a elaboração do termo circunstanciado precede um juízo técnico e justificado de imputação (positivo ou negativo), para apurar se o fato configura ilícito penal e se este é de menor potencial ofensivo, avaliando eventuais conflitos aparentes de normas, majorantes, qualificadoras, concurso de delitos, incidência de diplomas protetivos, como a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06, artigo 41), e tantas outras circunstâncias que evidenciam a importância da prévia decisão jurídica profissional e criteriosa, por intermédio da oitiva de vítimas, de testemunhas (compromissadas com a verdade) e do suspeito de ser o autor da conduta, à luz dos parâmetros legais e das garantias processuais penais [9].

Destarte, aplicam-se ao termo circunstanciado, como em qualquer procedimento investigatório criminal, as garantias inerentes ao devido processo penal, em especial o exercício da defesa, composta pelos direitos de presença, de audiência e de postular à autoridade legitimada (delegado de polícia), questionando a própria caracterização da suposta infração penal pela qual tenha sido capturado, que permeiam o direito ao silêncio e à não autoincriminação (autodefesa negativa) e de prestar sua versão dos fatos (autodefesa positiva), e pela faculdade de acionar defesa técnica, com participação ativa na apuração e apresentação de razões ou quesitos.

Aludido raciocínio encontra acolhida na fórmula redacional do artigo 32 da Lei 13.869/19 (Lei de Abuso de Autoridade), que tipifica penalmente a conduta de negar acesso aos "autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal", reconhecendo o legislador a publicidade e o acesso franqueado ao material coligido na etapa extrajudicial do processo penal, como premissa fundamental para o exercício do direito de defesa [10].

Com efeito, o suposto autor de infração de menor potencial ofensivo, enquanto imputado lato sensu e sujeito de direitos (CF, artigo 5º, LV), dispõe da garantia da ampla defesa na formalização e tramitação do termo circunstanciado, de modo a harmonizar a apuração estatal às citadas disposições que cuidam da autodefesa e das prerrogativas do defensor na atuação em autos investigatórios (Lei 8.906/94, artigo 7º, III, XIV e XXI e Súmula Vinculante 14).

Na divisão entre as funções de polícia administrativa (prevenção criminal) e de polícia judiciária (investigação criminal), a atribuição desta começa no instante em que termina o trabalho daquela [11]. Frustrada a prevenção de fatos delituosos e não evitada a prática da infração penal, mesmo de menor potencial ofensivo, inicia-se o encargo das instituições de polícia judiciária na apuração do caso [12]. O suspeito deve ser apresentado ao delegado de polícia, para que este avalie e decida sobre a classificação jurídica e o correspondente procedimento legal aplicável.

Como se vê, no julgado ora comentado, a guinada de visão da Suprema Corte brasileira, além de desalinhar o agir estatal e provocar insegurança jurídica e disfuncionalidades, dificulta uma melhor integração entre os órgãos do sistema de Segurança Pública e Justiça Criminal e gera duas categorias de termos circunstanciados.

De um lado, há o termo circunstanciado próprio ou autêntico, procedimento formalizado por autoridade de polícia judiciária, mediante prévia análise e decisão jurídica, instruído com diligências investigatórias (apreensões, oitivas, reconhecimentos, requisições de perícias, de informações, de documentos, de dados etc.), sob um regime jurídico processual penal, com observância das garantias do devido processo e da imbricada devida investigação criminal [13].

Em lado oposto, surge, segundo o novo olhar do STF, um termo circunstanciado impróprio ou anômalo, consistente em mero registro de fato que supostamente configura infração de menor potencial ofensivo (notitia criminis), lançado em formulário padronizado, por agente de policiamento ostensivo e preventivo, do qual não se exige formação jurídica, nele constando apenas dados dos envolvidos com anotações precárias de entrevistas informais.

Esse registro de notícia de fato não se caracteriza como procedimento de investigação criminal, porquanto não elaborado no âmbito de um órgão investigante natural, com atenção aos corolários da devida investigação criminal, e por não ser presidido por delegado de polícia de carreira, autoridade que detém outorga constitucional e legal para conduzir os procedimentos que formalizam a fase extrajudicial da persecução penal (CF, artigo 144, §4º, CPP, artigo 4º e Lei 12.830/13, artigo 2º, §1º). Nele não se admite a prática de atos coercitivos ou constritivos de polícia judiciária, como compelir partes envolvidas a se dirigirem a repartições públicas diversas das unidades de polícia judiciária (delegacias e distritos policiais), promover apreensões ou emitir requisições periciais.

Diante dos óbices de cunho processual penal, um termo circunstanciado impróprio ou anômalo, elaborado por órgãos sem função constitucional e legal para tanto, quando encaminhado diretamente ao Juizado Especial Criminal, sem prévia apreciação do delegado de polícia, poderá ensejar ônus processuais ilegítimos ou acusações infundadas, ante a possibilidade de submissão de alguém à transação penal ou à denúncia sem lastro suficiente para uma ação penal.

Nesse prisma, se o propósito genuíno e subjacente da nova posição sobre o tema ora tratado consiste em lidar com tais ilícitos penais como algo de somenos importância, a pretexto de "desburocratizar" e dispensar as formas e as garantias da tutela processual penal, os esforços deveriam se voltar ao debate sério e racional sobre a descriminalização de condutas e a declaração de não recepção de diversos tipos penais pela Constituição Federal, abandonando a cultura punitivista e tratando o Direito Penal como verdadeira ultima ratio do sistema jurídico [14].

[1] Os equívocos dos argumentos invocados no voto da ADI 5.637 foram advertidos: LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; SAYEG, Ronaldo. Termo circunstanciado e (in) segurança jurídica. Consultor jurídico, 16 dez.2021. Disponível em:<www.conjur.com.br/2021-dez-16/opiniao-termo-circunstanciado-inseguranca-juridica>.

[2] STF, ADI 3.614, j.20/09/2007. No mesmo sentido: STF, RE 702.617-AM, j.28/08/2012; STF, ADI 3.441, DJ 09/03/2007; STF, ADI 2.427, DJ 30/08/2006; STF, ADI 3.460, DJ 31/08/2006. Não se olvida que, ao decidir a ADI 3.807 (j.29/06/2020), que impugnava o §3º do artigo 48 da Lei 11.343/06, o STF admitiu a formalização de termo circunstanciado por magistrado, sustentando que não seria procedimento investigativo e incumbência privativa de polícia judiciária. LIMA FILHO, Eujecio Coutrim. Funções da polícia judiciária no processo penal brasileiro: o papel do delegado de polícia na efetivação de direitos fundamentais. Londrina, PR: Thoth, 2020, p.111-114; MACHADO, Leonardo Marcondes. Termo circunstanciado na visão do STF: o julgamento da ADI 3.807. Consultor Jurídico, São Paulo, 28 jun.2020. Disponível em: <www.conjur.com.br/2020-jun-28/marcondes-machado-termo-circunstanciado-visao-stf-julgamento-adi-3807>; DAVID, Ivana; LOMBARDI, Raquel Kobashi Gallinati. Decisão do Supremo sobre lavratura de TC é marco histórico. São Paulo, Consultor Jurídico, 3 jul.2020. Disponível em:<www.conjur.com.br/2020-jul-03/david-lombardi-decisao-stf-lavratura-tco>.

[3] ROSA, Alexandre Morais da; KHALED JR., Salah. Polícia militar não pode lavrar termo circunstanciado. Justificando, 1 jul. 2014; NICOLITT, André Luiz. Manual de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.526; RANGEL, Paulo. Direito processual penal. São Paulo: Atlas, 2014, p.180; GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2012, p.118; TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. Salvador: Juspodivm, 2016, p.224;MOREIRA, Rômulo de Andrade. A polícia rodoviária federal pode lavrar o termo circunstanciado?. JusBrasil, abr.2015; SANTOS, Anne Caroline Souza Silva. A polícia judiciária e as infrações de menor potencial ofensivo: legitimidade para lavratura de termo circunstanciado. In: IBRAHIN, Francini Imene Dias; BELIATO, Araceli Martins (Org.). Direito policial: temas atuais. Salvador: JusPodivm, 2021, p.59-77; SILVA, Márcio Alberto Gomes. Eficiência e respeito a direitos fundamentais na atividade investigativa – um discurso possível. Salvador: JusPodivm, 2022, p.106-111; SANNINI NETO, Francisco. STF e o jeitinho brasileiro, Jus Navigandi, mar.2022; HOFFMANN, Henrique. Termo circunstanciado deve ser lavrado pelo delegado, não pela PM ou PRF. São Paulo, Consultor Jurídico, 29 set.2015. Disponível em:<www.conjur.com.br/2015-set-29/academia-policia-termo-circunstanciado-lavrado-delegado>.

[4] HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva: 2009, p.1833 e 473.

[5] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.389.

[6] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p.187.

[7] TAIPINA, Thales Flores. Flagrante e prisão. Belo Horizonte: D’Placido, 2018, p.203.

[8] SAAD, Marta. Direito ao silêncio na prisão em flagrante. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (Org.). Processo penal e democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.435.

[9] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador, JusPodivm, 2020, p.187.

[10] BADARÓ, Gustavo; BREDA, Juliano (Coord.). Comentários à lei de abuso de autoridade. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p.161-164; CARNEIRO, José Reinaldo Guimarães. Comentários ao artigo 32 da Lei 13.869/19. In: MOREIRA FILHO, Guaracy (Coord.). Nova lei do abuso de autoridade comentada artigo por artigo. São Paulo: Rideel, 2019, p.98; LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GIUDICE, Benedito Ignácio. Nova Lei de Abuso de Autoridade: diretrizes de atuação de polícia judiciária. São Paulo: Academia de Polícia, 2020, p.134-141.

[11] KEEDY, Edwin. The preliminary investigation of crime in France. University of Pennsylvania Law Review, v. 88, n.4, February, 1940, p.407.

[12] BARBOSA, André Luis Jardini. O excesso policial e o excesso de polícia: a incompatibilidade entre o sistema atual de atuação policial e o Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p.103.

[13] COELHO, Emerson Ghirardelli. Investigação criminal constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2017, p.47-48.

[14] COELHO, Emerson Ghirardelli. Teoria do bem jurídico e limites à intervenção penal, Jus Navigandi, 8 mar.2022.

Autores

  • Brave

    é delegado de polícia de São Paulo, mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP), docente e palestrante em cursos de graduação e pós-graduação e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).

  • Brave

    é delegado de polícia de São Paulo, mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutorando em Direito pela Universidade do Porto, especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).

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