Opinião

Dispensa de licitação sem dolo não configura improbidade

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29 de março de 2022, 15h24

Não é novidade que atos praticados no âmbito de processos licitatórios são os que mais dão margem a ação judicial, em especial a de improbidade administrativa. Nesse cenário, contratações diretas, por dispensa ou inexigibilidade de licitação raramente passam em branco, sem questionamento.

Argumentos como motivação insuficiente do ato administrativo, exercício da discricionariedade em termos não condizentes com critérios compreendidos pelo Ministério Público como os mais adequados são argumentos costumeiros para requerer a aplicação de penas de suspensão dos direitos políticos, multa civil, ressarcimento ao erário e demais sanções da Lei 8.429/92 (artigo 12). Ainda que a maior parte dos procedimentos legais sejam notados, um detalhe ou outro que passa desapercebido resulta numa longa e cara ação de improbidade.

Aliás, embora antigo o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no esteio de que a mera irregularidade não configura improbidade [1], sendo necessário o elemento volitivo indispensável aos tipos ímprobos (má-fé, desonestidade e desprezo à coisa pública), basta compulsar algumas ações desse calibre para ver que, na prática, é a mera irregularidade que respalda as acusações  sendo de se louvar a capacidade de alguns membros do Ministério Público de articular teses e manipular os fatos em prol da acusação. O que endossa (e até piora) esse comportamento são sentenças e acórdãos que, referendando esse modus (de acusação por atos de improbidade por meras falhas), condenam requeridos nos termos da inicial, sem uma análise profunda quanto ao dolo e a má-fé do réu.

Nesse contexto foi que, positivando o óbvio, o Legislador incluiu, na reforma da Lei de Improbidade pela Lei 14.230/2021, dispositivos que externam exatamente aquilo que há muito vem repetindo o Superior Tribunal de Justiça: da mera irregularidade não resulta improbidade, sendo essencial, ao ato ímprobo conduta eivada de dolo. Nesse sentido são os artigos 1º, §3º, 10, §§1º e 2º, e 11, §§1º ao 4º da Lei 8.429/92 reformada.

Atenta a essa problemática e ao novo cenário legal, em 16 de março de 2022, a 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo reformou sentença de primeiro grau que condenava Prefeito Municipal por atos de improbidade administrativa que teriam violado princípios administrativos (artigo 11, inciso I, da Lei 8.429/92), em função de dez contratos administrativos firmados entre a Prefeitura e um mesmo escritório de advocacia por dispensa de licitação, "para a prestação de serviços de consultoria e assessoria jurídica".

Nos termos da sentença, muito embora "Os honorários e cláusulas ad exitum pactuados nos contratos não destoam do valor médio praticado no mercado", os ajustes teriam base em "justificativas genéricas, desprovidas de profunda análise do objeto concretamente contratado", além de que os serviços contratados diretamente não seriam daqueles singulares, aptos a justificar dispensa do certame  a sentença, portanto, referendava a cultura do Ministério Público de, em parte considerável dessas ações, processar agentes públicos ante irrisórias irregularidades, premiando o autor com a condenação dos réus.

Contudo, aplicando o Direito e a Lei ao caso de forma mais adequada, o TJ-SP [2] entendeu que "houve a observância formal ao procedimento administrativo prévio", além de que a “insuficiência ou o erro na motivação do ato” não servem para caracterizar improbidade. Ainda, a Corte entendeu que o dolo necessário "agregado pela Lei nº 14.230/21 ao artigo 11, §1º, da Lei nº 8.429/92, qual seja, o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade" não teria sido comprovado nos autos, reformando a sentença com base nesses fundamentos.

Em que pese a animosidade social (correta e justificada) quanto ao tema de combate à corrupção, para a coletividade, o ideal seria que precedentes como esse do Tribunal Paulista fossem repedidos, de sorte que a punição recaísse só mesmo a condutas com notório viés de desprezo ao bem público.

É que ações como essa destacada, pautadas em falhas do Gestor compõem a maior parte das demandas ajuizadas com fulcro na Lei 8.429/92 em todo o País, e essa realidade traz efeitos deletérios ao próprio interesse público  que, ao fundo, também deveria ser tutelado pelas ações de improbidade.

Essa perseguição absurda de simples erros atemoriza os Administradores, que decidem cada vez menos por considerar cada decisão como um risco, em especial em licitações, o que impacta negativamente na eficiência do Poder Público. Daí a origem do que se conhece como "crise das canetas" ou "apagão das canetas": acuados, os gestores não mais atuam apenas na busca da melhor solução ao interesse administrativo, mas também para se proteger [3].

O controle exercido pelo Ministério Público sobre os atos administrativos, em especial quanto as contratações públicas tem relevância óbvia. Não se desconhece a corrupção reiterada que parece estar enraizada no País. Mas é preciso ter maior ponderabilidade e razoabilidade nessa fiscalização e entender que, a rigor, falhas são naturais do homem e não podem ensejar punições absurdas. Não pode, a pretexto de fiscalizar, o Ministério Público ditar ao Gestor como administrar, submetendo absolutamente tudo ao Poder Judiciário requerendo aplicação de penas tão danosas como aquelas da Lei 8.429/92.

Por isso se reafirma: para a sociedade, o ideal seria que meras falhas, sem dolo, deixassem de ser submetidas ao judiciário, para que as canetas dos gestores passassem a ter luz, ao invés de apagão. Nesse sentido, talvez seja necessária uma mudança e abrandamento de visão dentro do próprio Ministério Público, também com vistas ao interesse público.


[1] REsp 1036229/PR, relatora ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/12/2009, DJe 02/02/2010

[2] TJSP; Apelação Cível 1007472-31.2015.8.26.0286; 8ª Câmara de Direito Público; 16/03/2022

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