Público & Pragmático

Utilização de dispute board em contratos administrativos continuados

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27 de março de 2022, 8h00

Desde a edição da Lei nº 14.133/2021, que atualiza a regulamentação das licitações e contratos administrativos no Brasil, vem ganhando espaço de discussão a modalidade do Comitê de Resolução de Disputas, previsto no artigo 151 como procedimento de prevenção e de solução de conflitos oriundos da relação contratual.

De fato, trata-se de uma inovação quanto aos métodos alternativos de solução de conflitos que já vêm sendo adotados e os quais gozam de relativo conhecimento por parte da comunidade jurídica, como a mediação, a conciliação e a arbitragem [1].

Quando se fala em inovação na Administração Pública, a cronologia dos acontecimentos costuma ser parecida: 1) muita desconfiança; 2) necessidade de autorização legal; 3) regulamentação extensiva; 4) aplicação por meio de tentativas, erros e acertos; 4) discussão jurisprudencial no Judiciário e nos órgãos de controle; 5) consolidação da inovação por meio da comparação de cenários – o modelo tradicional é bastante insatisfatório.

O Dispute Boards, ou Comitê de Resolução de Disputas, ganhou seu incentivo legal por meio da Lei nº 14.133/2021. De forma apenas autorizativa, a lei nacional não tratou de regulamentar o instituto, mas alguns entes federativos já o fizeram. Inicialmente, houve a edição de leis municipais tratando do tema [2] e, recentemente, a edição da Lei nº 15.812/2022, que prevê a instituição de Comitê de Prevenção e Solução de Disputas em contratos administrativos continuados celebrados pelo Rio Grande do Sul.

Em vários aspectos, a lei gaúcha é similar àquelas que já foram editadas, ao prever (a) a natureza revisora, adjucativa ou híbrida do comitê; (b) a composição do painel por meio de três pessoas capacitadas tecnicamente e de confiança das partes; (c) a possibilidade de revisão da decisão do comitê pelo juízo estatal ou arbitral; (d) a obediência ao princípio da publicidade; (e) os impedimentos a que estão sujeitos os membros do comitê e a sua equiparação ao funcionário público.

Diversamente das demais legislações, a Lei nº 15.812/2022 não estabelece de antemão qual parte contratante arcará com os encargos do comitê, mas contém a exigência de que o seu custo seja estimado no edital de contratação, ou mediante concordância das partes, este último no caso da incidência sobre contrato já em andamento. Também de maneira diversa, a lei estadual gaúcha prevê a possibilidade de constituição de um cadastro prévio de membros de comitês, a serem indicados para atuação nos contratos e cuja composição poderá ter apoio do Conselho Regional de Administração, do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia e da Ordem dos Advogados do Brasil, no Rio Grande do Sul.

Concomitantemente à Lei nº 15.812/2022, foi editado o Decreto estadual nº 56.423, que regulamenta seus dispositivos. Cumpre destacar que não houve a prévia delimitação de matérias que podem ser submetidas ao comitê, nem bem o estabelecimento de valores mínimo e máximo do contrato. O requisito é que o instrumento contratual lide com direito patrimonial disponível e que a sua duração seja continuada no tempo, o que sem dúvidas possibilita uma ampla atuação do instituto [3].

O decreto estadual prevê a possibilidade de um escalonamento nas modalidades de solução de controvérsias, incentivando que, antes de acionar o comitê, as partes contratantes busquem diretamente um acordo ou transação, ou uma solução mediada por meio do Sistema Administrativo de Conciliação e Mediação que atua no estado.

Outro ponto que merece ser destacado do referido decreto regulamentador é a previsão de participação da procuradoria-geral do estado em todas as etapas de atuação do comitê, a quem cabe representar a Administração Pública contratante.

Cabe refletir, portanto, sobre a atuação da advocacia pública diante deste mecanismo alternativo de solução de controvérsias. Não se discute que se trata de metodologia que visa trazer maior eficiência na execução dos contratos administrativos, em especial de obras e construção, cuja complexidade demanda intervenções de ordem técnica e contemporânea aos acontecimentos.

Por outro lado, é evidente que, para além de questões técnicas, dúvidas jurídicas e mesmo de interpretação das cláusulas do contrato acompanharão as demandas relacionadas ao projeto ou à obra propriamente dita. Neste ponto, a atuação de um advogado externo, seja como próprio membro do comitê ou mesmo como seu contratado [4], pode conflitar de alguma forma com a atividade da advocacia pública, mais especificamente com a sua função de consultoria dos órgãos da Administração Pública.

Com efeito, a atividade de consultoria realizada pela advocacia pública concentra grandes esforços na elaboração da modelagem contratual dos órgãos contratantes, além de dirimir dúvidas jurídicas ao longo da execução e mesmo após o cumprimento do objeto do contrato. Inclusive, a orientação é para que os órgãos da Administração direta (por vezes indiretas também, a depender da lei orgânica de cada advocacia pública) encaminhem aos órgãos de advocacia pública respectivos as dúvidas e as análises referentes às contratações, desde a elaboração do edital.

Dessa forma, a atuação de um advogado como membro do comitê deve levar em conta as orientações que já foram emanadas pela advocacia pública, até porque a atividade de consultoria desses órgãos também se presta a uma intervenção preventiva e com vistas a evitar judicialização de conflitos. Além disso, não se pode dizer que o requisito da imparcialidade não está presente na atividade consultiva, pelo contrário. Por meio de consultas e pareceres, a advocacia pública não só orienta como também viabiliza alternativas e construção de soluções, como forma de proporcionar a boa execução do contrato e o atendimento de sua finalidade.

Quer dizer, ultrapassado o desafio da legislação e da regulamentação, o momento é oportuno para "colocar a mão na massa" e verificar o andamento do instituto na prática, com todas as complexidades e surpresas que só o direito administrativo brasileiro é capaz de proporcionar [5]. A certeza é de que o cenário de excessiva judicialização dos contratos administrativos deve ser substituído, como deixou bem sinalizada a Lei nº 14.133/2021. Salutar, portanto, qualquer iniciativa que busque trazer para o plano concreto a tentativa de mudança, como faz agora o Rio Grande do Sul.


[1] Além do incentivo expresso no Código de Processo Civil, citam-se as Leis nº 13.129/2015 e nº 13.140/2015, que preveem a utilização da arbitragem e da mediação com a Administração Pública, respectivamente.

[2] Lei Municipal nº 16.873/2018 (São Paulo); Lei Municipal nº 11.241/2020 (Belo Horizonte) e Lei Municipal nº 12.810/2021 (Porto Alegre).

[3] É verdade que o debate a respeito do que consiste o direito patrimonial disponível também é amplo. A exemplificação legal pode ser encontrada na Lei nº 13.448/2017, a qual estabelece diretrizes gerais para prorrogação e relicitação dos contratos de parceria nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário da administração pública federal. Em seu artigo 31, consta expressamente que controvérsias decorrentes dos contratos de que trata a lei, no que se refere aos direitos patrimoniais disponíveis, podem ser submetidas a arbitragem ou a outros mecanismos alternativos de solução de controvérsias. E, no §4º do referido artigo, estão expostas a que se refere tais controvérsias, a saber: I – as questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos; II – o cálculo de indenizações decorrentes de extinção ou de transferência do contrato de concessão; e III – o inadimplemento de obrigações contratuais por qualquer das partes.

[4] Há possibilidade que o próprio comitê contrate o serviço profissional de advogado para emissão de parecer, por exemplo.

[5] O caso da construção da Linha Amarela do Metrô de São Paulo comprova o que se afirma, ainda que a atuação do Comitê tenha promovido a solução de nove divergências, dentre as onze que lhe foram submetidas. Para um relato mais detalhado desta que foi a primeira experiência de utilização de Comitê no Brasil, conferir: JOBIM, Jorge Pinheiro; RICARDINO, Roberto; CAMARGO, Rui Arruda. A Experiência Brasileira em CRD: O Caso do Metrô de São Paulo. In: TRINDADE, Bernardo Ramos (Coord). CRD – Comitê de Resolução de Disputas nos Contratos de Construção e Infraestrutura: Dispute Resolution Board: São Paulo: Editora PINI, 2016.

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