Candidatos legais

Leis são feitas com base em agenda oportunista, não critérios jurídicos, diz Capez

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27 de março de 2022, 14h38

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Esta entrevista inaugura uma série de colóquios com representantes da comunidade jurídica que se propõem a melhorar a qualidade da lei brasileira. Eles postulam uma vaga no Congresso Nacional. Todo brasileiro reclama da vida que tem, mas na hora de votar, os preferidos acabam sendo os folclóricos, os populistas e os néscios. Faz parte.

Como primeiro entrevistado, dentre os pretendentes a uma cadeira na fábrica de leis, este site elegeu um especialista tarimbado. Best seller da literatura jurídica, procurador de justiça e ex-deputado estadual, ele promoveu a maior revolução já vista na defesa do consumidor, como chefe do Procon paulista.

Já autor consagrado, Fernando Capez iniciou sua carreira como promotor no Ministério Público de São Paulo em janeiro de 1988, mas sua genealogia acusatória não o levou a defender cegamente o recrudescimento do sistema penal. Estudioso do assunto, o candidato propõe que as leis penais e processuais penais sejam revistas e compiladas em uma consolidação, buscando maior harmonização entre elas. Pretende também apresentar um projeto que assegure à defesa acesso integral a todos os documentos que já estejam juntados aos autos do inquérito ou PIC, no prazo máximo de 24 horas.

De acordo com Capez, “constantes mudanças de ocasião na legislação criminal agravando penas de determinados crimes para atender à pressão da mídia provocam incompatibilidades do sistema penal, fazendo com que infrações mais leves recebam penas mais severas do que outras de maior gravidade. Tais agravamentos episódicos e oportunistas da sanção penal, das infrações tematicamente mais simpáticas à opinião pública afrontam o princípio da proporcionalidade e deixam um rastro caótico de anarquia legislativa. Em tais hipóteses, o clamor popular influi negativamente na esfera legislativa, edificando um emaranhado de leis desconexas e com penas desproporcionais entre si”.

Fernando Capez, em entrevista à ConJur, afirma que um dos problemas da produção legislativa brasileira é sua obediência "a uma agenda oportunista imposta pela mídia, quando deveria ser orientada por uma sistemática lógica, jurídica, científica".

Capez também acredita que é preciso que os legisladores atuem para impedir os costumeiros abusos de autoridade, que provocam a anulação de provas e frustram a eficácia da persecução penal. Acaba se tornando um aliado da corrupção. "De que maneira ele é aliado da corrupção? O abuso anula tudo, livra o culpado de sua responsabilidade e não raro, atenta contra a honra de inocentes, causando-lhes danos de difícil reversibilidade. Terminado o circo, só resta uma justiça maculada e com eficácia pífia", diz.

Ainda no campo do processo penal, Capez defende a existência do juiz das garantias, o que precisa ser imediatamente implementado por meio de uma emenda constitucional, a fim de ajustar nossa persecução penal ao modelo acusatório do nosso processo criminal, sendo imprescindível um diálogo de alto nível com o STF, já que uma liminar do ministro Luiz Fux suspendeu sua implantação até análise sine die pelo Plenário.

Atualmente diretor do Procon de São Paulo, o candidato a uma vaga na Câmara dos Deputados também propõe alterações no Direito Consumerista. Uma delas é um projeto de lei que determina a obrigatoriedade de os planos de saúde publicarem em seus sites todas as despesas reembolsáveis que tiveram no período anterior, viabilizando a elaboração de um cálculo atuarial transparente que leve um reajuste justo para todos, empresa e consumidor. Outra diz respeito à dosimetria das multas aplicadas às empresas, que devem considerar não apenas o faturamento, mas também o dano causado. “Um produto de R$ 100 com validade vencida pode levar a uma multa superior a R$ 1 milhão, o que é injusto e ilógico”, diz Capez.

Deputado estadual em São Paulo por três legislaturas e ex-presidente da Assembleia Legislativa, Capez pretende usar na Câmara essa experiência, para construir consensos e concentrar esforços nas pautas que considera mais urgentes: desenvolvimento econômico e geração de emprego, o que só será atingido eliminando-se a insegurança jurídica gerada por leis confusas, desnecessárias e pelo excessivo "ativismo judicial".

Confira os principais trechos da entrevista:

ConJur — De modo geral, como o senhor avalia a qualidade das leis produzidas no Brasil?
Fernando Capez —
O problema da produção legislativa no Brasil é que ela obedece a uma pressão exercida pela mídia para aplacar a comoção do momento, em vez de ser orientada por uma sistemática lógica, jurídica e científica. Basta acontecer um crime de grande repercussão e o Parlamento logo se reúne para fazer uma lei de ocasião, para atender àquela demanda popular surgida com o clamor provocado. Isso acaba sendo prejudicial pois anarquiza todo o sistema jurídico, gerando confusão e um emaranhado legislativo contraditório entre si.

A primeira necessidade que existe, no âmbito do Direito Penal e do Processo Penal, é uma ampla revisão da legislação esparsa e a sua consolidação em um compêndio. São inúmeros procedimentos, novos crimes com penas maiores que a de outros de maior gravidade, além de tipos penais anacrônicos e inúteis. (…) O Direito Penal e o Processo Penal têm sido muito maltratados nas últimas décadas. A dogmática e o estudo foram abandonados. Há casos de julgadores que demonstram não saber sequer a diferença entre denúncia e queixa.

ConJur — Mas como evitar esse "populismo penal", considerando que os parlamentos são abertos à opinião pública?
Fernando Capez —
Existe o que a gente chama de déficit legislativo, que é a natural demora do Legislativo em traduzir as necessidades da população em leis pensadas dentro de um sistema lógico e coerente. O Parlamento é heterogêneo e parte dos debates, da polêmica, do enfrentamento, e isso acaba tomando tempo demasiado (…) Disso resulta um vácuo que acaba sendo preenchido pelo Judiciário, que subtrai função típica do Legislativo, por meio de súmulas, súmulas vinculantes ou decisões, algumas delas até polêmicas e contrárias à Constituição, como a inclusão da discriminação por orientação sexual e gênero na Lei de Racismo. Num Estado Democrático de Direito, o Judiciário, que não tem a representatividade popular do voto, não pode discutir o mérito das leis, muito menos criar normas incriminadoras, já que sua legitimidade é técnica. Isso acontece, a meu ver, dentro de uma escalada do ativismo judicial provocado, sim, por um déficit do sistema Legislativo. Um juiz, ainda que dá mais alta Corte, não pode se substituir à vontade do Congresso Nacional.

Quando fui presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, o parlamento fez uma união de esforços de todos os partidos e chegamos a aprovar mais de 70 projetos de lei do Executivo em um ano. Facilitou bastante a agilidade da administração pública.

É importante também que o Congresso Nacional acelere suas respostas à sociedade. O principal entrave do desenvolvimento econômico é que se leva dez anos discutindo questões absolutamente acessórias, para fazer o essencial somente no décimo primeiro ano. A primeira providência que se deve tomar é de ordem organizacional. Harmonia e união dos partidos no interesse nacional, superando as naturais divergências políticas e ideológicas, na busca de consensos, a fim de concentrar o Congresso em questões necessárias ao destravamento da economia e à criação de um ambiente seguro para atrair o investimento estrangeiro e gerar emprego. As respostas legislativas devem ser rápidas, claras e descomplicadas. A contribuição que pretendemos dar é no sentido de uma maior harmonia, menor antagonismo, reduzindo as tensões desnecessárias, as agressões de parte a parte, que não levam a lugar nenhum. Ter, evidentemente, adversários; mas não inimigos políticos. Assim fica mais fácil atingir o consenso.

É necessária uma reorganização do país para sanar nossa maior carência, que trava o desenvolvimento: falta de segurança jurídica. Quando o Judiciário passa a arbitrar permanentemente os conflitos sociais em caráter genérico, preventivo, como se ditasse normas, usurpando o poder soberano do legislador isso cria uma enorme instabilidade. Todos deixam de estar submetidos à vontade da lei, para se submeterem à vontade de um único julgador, colocando-se em risco a democracia. O grande problema do nosso país hoje é a retomada do desenvolvimento econômico e a geração de emprego, mas ninguém fará isso em um ambiente de insegurança jurídica. Essa é uma demanda fundamental para o século 21.

Por exemplo: aprova-se uma determinada lei autorizando um empreendimento imobiliário. Ele tem início, é feita uma ampla publicidade, os consumidores adquirem suas unidades habitacionais, o empreendedor faz vultoso investimento, quando, de repente, do nada, aparece uma polêmica jurídica sobre um vício no processo legislativo ou em uma audiência pública mal feita, ou não feita. Essa polêmica passa a travar todo o processo econômico. Os juristas assumem a condução da economia: a obra é suspensa por tempo indeterminado, até sua degradação, enquanto o Judiciário leva anos para decidir, muitas vezes sem o conhecimento econômico ou técnico da questão. Resultado: o vaidoso e erudito debate jurídico interrompe o desenvolvimento. É uma trava que o Congresso precisa eliminar: as ações civis públicas são um poderosíssimo instrumento e evitam os desmandos na administração. No entanto, precisamos verificar até que ponto a polêmica jurídica não se torna um fim em si mesmo. Há muitas ACPs em que há eloquentes e estéreis debates retóricos. Um desfile de erudição, doutrina estrangeira, jurisprudência, raciocínios gongóricos e bonitos construídos em extensas petições. O juiz se intimida diante da pressão da mídia, da erudição ou do volume da petição, e muitas vezes concede uma liminar — “commodus discessus” —, paralisa tudo até o longínquo e improvável fim do processo. Enquanto isso, o operário fica sem trabalhar, o governo sem arrecadar tributos e o comprador, sem casa para morar. Então, uma das questões urgentes que o Congresso precisa rever é a transposição do artigo 21 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro para o CPC e a Lei da Ação Civil Pública, como requisito de admissibilidade da ação. Primeiro se verifica a descrição do impacto econômico e social daquela ação – antes mesmo da análise das condições da ação e dos pressupostos processuais. Eventualmente [na minha proposta], a admissibilidade de uma ação que provoca grave dano ao erário ou à economia pode reverter em responsabilidade do agente. Com isso, obtém-se uma maior prudência nessa avalanche de ações propostas sem comprometimento com a realidade econômica e social.

ConJur — É possível criar parâmetros objetivos para se aferir esse impacto econômico e social?
Fernando Capez —
Sempre haverá certo nível de discricionariedade. Cabe a cada juiz analisar as peculiaridades do caso concreto. O autor da ação deverá demonstrar quais os impactos econômicos e sociais positivos que serão gerados por aquela ACP. Por outro lado, antes do recebimento da ação, a defesa poderá demonstrar que os impactos serão nefastos. Caberá ao juiz justificar e fundamentar que o impacto não será negativo, mas positivo. E essa será uma polêmica a ser enfrentada dentro do Poder Judiciário. A lei não tem a menor condição de antever todas as hipóteses. Sua função será apenas a de estabelecer alguns parâmetros gerais.

ConJur — No ano passado, uma resolução alterou vários dispositivos do regimento interno da Câmara dos Deputados, sob a premissa de tentar dar mais eficiência ao processo legislativo. Essas mudanças, de maneira geral, restringiram o chamado direito à obstrução. A oposição disse que, com as mudanças, as minorias foram silenciadas. O que o senhor pensa a respeito?
Fernando Capez —
Entendo correto restringir a obstrução, que é um direto legítimo, mas que se empregado de modo excessivo acaba por obstar o funcionamento do Parlamento, provocando completa paralisação. A oposição reclama porque é a oposição. Quando ela se transformar em situação, vai aplaudir essa medida. Se um PL não agrada a oposição, vamos ouvi-la e verificar quais são suas sugestões para aperfeiçoá-lo. Não se pretende massacrar as minorias, ao contrário, é importante que sejam chamadas a participar. Não é porque é oposição que ela não tem propostas construtivas. Mas a paralisia do Congresso prejudica toda a sociedade.

ConJur — De certa maneira, a obstrução não pode ser importante para evitar, por exemplo, casos de "populismo penal"?
Fernando Capez —
Esse é um ponto fundamental. Tem que ter discussão, e não obstrução. O Parlamento deve fornecer mecanismos para que a oposição tenha ampla possibilidade de discutir e de contribuir. Ela pode fazer isso sem travar o processo, discutindo, debatendo, articulando, reunindo-se num colégio de líderes para debater e buscar o consenso. O processo legislativo é uma marcha para frente.

ConJur — O senhor acha que advocacia, a doutrina e a própria magistratura deveriam ser mais chamadas para participar do processo legislativo, ou isso já vem ocorrendo a contento?
Fernando Capez —
Já vem ocorrendo. É sempre necessária a formação de um corpo de juristas trabalhando dentro determinados e pauta definida. Igualmente, o Congresso deve buscar sempre o diálogo direto com o STF e o STJ, principalmente, a fim de evitar desarmonia entre os poderes. Essa é uma das questões que o Congresso precisa rever. Precisa se reunir e conversar com o STF a respeito, para que se busque uma alternativa. Não é possível, liminares travando todo o trabalho do Poder Legislativo.

ConJur — Mas de modo geral o STF não tem sido deferente para com o Parlamento, principalmente por meio da doutrina interna corporis?
Fernando Capez —
Persiste ainda uma incursão exagerada sobre o trabalho do Legislativo. Por outro lado, o STF somente dá liminares contra processos legislativos porque os próprios parlamentares recorrem a ele, ou seja, o próprio parlamentar desprestigia o Legislativo ao bater toda hora às portas do Judiciário. Quando é necessária uma decisão judicial para intervir no processo legislativo, é porque o diálogo fracassou completamente.

ConJur — Como conciliar, por um lado, o dever de eficiência legislativa — de produzir com agilidade leis que sejam coesas e harmônicas com o todo jurídico — e, por outro lado, respeitar a representação popular, que é feita por meio de representantes que estão expressando no Parlamento toda a diversidade social?
Fernando Capez —
Foi muito importante para mim a experiência intensamente vivida em três mandatos de deputado estadual, mais a presidência da maior Assembleia Legislativa do país. Noventa e quatro deputados de todos os partidos, de todas os matizes ideológicos. Nós conseguimos buscar ali um espaço de consenso sobre o que era necessário e útil para a população. Claro que certos temas são polêmicos, principalmente os relacionados à pauta de costumes. Mas há temas econômicos que são fundamentais, em relação aos quais é necessário buscar-se o consenso. Sem diálogo, tolerâncias e respeito , não existe vida parlamentar útil. Todo aquele que bate às portas do Legislativo achando que vai resolver sozinho todos os problemas, que vai apontar o dedo para seus colegas parlamentares, que vai se destacar, normalmente é um demagogo. O que a sociedade deve esperar de um parlamentar não é que ele se porte como um pretenso mártir, que vá incendiar o Congresso, tal e qual Nero incendiou Roma. O que se espera é maturidade política e de vida.

Outro ponto importante é evitar que processos sejam anulados por violação ao direito de defesa e a garantias constitucionais. Todo esse atropelo ao processo penal, essa pressa em produzir fatos midiáticos, termina sempre do mesmo jeito: nulidade e impunidade. Então é necessário, sim, construir, de maneira correta e com ética, com diálogo, com entendimento e harmonia, um caminho para acelerar as mudanças. O país ficou, nos últimos quatro anos, discutindo questões absolutamente secundárias, quando o que todos nós esperamos é um Estado eficiente, que não desperdice dinheiro público em áreas em que ele não precisa atuar. O Estado não pode ser um paquiderme gastão e inchado, mas um Estado leve, viável, eficiente e concentrado nas áreas que são fundamentais: educação, justiça, saúde, segurança. Há hoje duas propostas diferentes para o país: uma estatizante, que convive com o mito do welfare state, achando que o Estado tem condições de atender a todas as demandas. E uma visão liberal, progressista, que dá ao cidadão a oportunidade de crescer por ele mesmo, de geração de emprego, de redução da carga tributária, um Estado que gaste menos, que corte as suas despesas e as concentre naquelas áreas fundamentais.

Há outras demandas urgentes afetas à eficiência do processo e ao respeito à dignidade humana. Hoje, muitas vezes, o sujeito toma conhecimento somente pelos jornais que ele está sendo processado. Ele lê a denúncia inteira no jornal, mas seu advogado não tem acesso aos autos. Ele vai procurar o processo ou inquérito, e não acha, porque é sigiloso. Sigiloso para a parte e não para a imprensa. Pretendo apresentar um projeto que explicite melhor as prerrogativas do acusado e de seu defensor. Assim, quando a medida restritiva ou a ação forem à mídia, a defesa terá acesso integral a todos os documentos que já estejam juntados e anexados aos autos no prazo máximo de 24 horas a partir do pedido. Essa é uma regra clara que tem que ser proposta. É necessário que se busque um determinado consenso para evitar que o abuso de autoridade se torne aliado da corrupção. De que maneira ele é aliado? Ele anula tudo, provoca danos, muitas vezes de difícil reversibilidade à honra dos indiciados, e traz uma eficiência pífia. Nesse caso, a Lei de Abuso de Autoridade necessita de aperfeiçoamento.

O STF já tem súmula vinculante — a 14 — a respeito do direito de acesso da defesa a documentos já anexados em inquérito numa investigação ou processo, ainda que sigiloso. Não é possível que continue havendo essa inobservância. É necessário então fazer uma lei regulando essa questão que foi sumulada e trazendo punições imediatas para o caso de inobservância.

O Legislativo deve também chamar todas as súmulas vinculantes, debatê-las e transformá-las em lei, aperfeiçoando-as. As súmulas vinculantes foram editadas pela ausência de poder legislativo.

Outra questão importante que tem que ser buscada pelo consenso: há muitas pessoas que não têm condições de pagar um plano privado de saúde e por essa razão recorrem ao SUS. Quanto maior o número de pessoas com condições econômicas para pagar o sistema privado de saúde, menos sobrecarregado e mais eficiente será o SUS. O que temos visto é que o comportamento ganancioso de alguns planos de saúde, aumentando suas margens de lucro além do que seria proporcional, acaba provocando uma fuga do sistema privado para o SUS, o qual passa a receber milhões de novos usuários que poderiam ter permanecido com seus planos privados de saúde, se o reajuste tivesse sido fixado dentro de parâmetros de razoabilidade. Os planos, recentemente, fizeram reajustes e alguns chegaram a 100% contraditoriamente em um ano de pandemia, no qual foram suspensas todas as cirurgias eletivas e não urgentes. A despesa dos planos de saúde aumentou durante o período da COVID-19? Claro que não. Então, por que um reajuste desse nível? O Procon quis saber: se o reajuste foi de 100%, que as empresas mostrem todas as suas despesas reembolsáveis do ano anterior. Se tiveram um aumento de 100% dessas despesas, nós entenderemos como justo e correto que haja o aumento, caso contrário estará caracterizada prática abusiva (…) Nós precisamos apresentar um projeto de lei que determine a obrigatoriedade do plano de saúde publicar em seu site todas as despesas reembolsáveis que teve no período anterior, com o cálculo atuarial que justificou tal reajuste, para que todos, com transparência, possam ver se houve uma prática abusiva ou simplesmente uma correção natural.

Outro ponto importante, no Direito do Consumidor, é a questão da proporcionalidade das multas. Muitas vezes, a multa aplicada ao estabelecimento é proporcional a seu faturamento. A proporcionalidade deve ser também em relação ao dano. Essa dosimetria precisa ser mais bem regulada pelo Código de Defesa do Consumidor. Nesse caso, a injustiça ocorre com o fornecedor. Um dano ao consumidor no valor de 500 reais, pode levar a uma punição de 10 milhões em se tratando de uma rede de supermercados. Essa desproporção atrapalha a retomada do crescimento econômico. A proporcionalidade deve ser com relação à gravidade da infração combinada com o valor do dano.

ConJur — São poucas as operadoras de saúde que oferecem planos diretamente para pessoas físicas, e a gente sabe por que elas fazem isso. O senhor proporia também alguma alteração nesse sentido?
Fernando Capez —
A ANS dita o montante do reajuste dos planos individuais e não se mete no reajuste dos planos coletivos. Por isso, as operadoras estão se livrando dos planos individuais, muitas vezes com procedimentos ilegais, como ocorreu recentemente. Então é necessário também adotar uma isonomia entre planos individuais e de planos coletivos.

ConJur — O senhor acha que o Direito do Consumidor tem que ser olhado também sob a ótica concorrencial?
Fernando Capez —
O Código do Consumidor protege o bom fornecedor e pune aquele que adota práticas ilegais. Então, a empresa que atua de maneira correta, se não houver a fiscalização prevista pelo CDC, será prejudicada pela esperteza não punida de seu concorrente, pois tem mais despesas justamente porque respeita a lei. O CDC protege a boa concorrência e protege o bom fornecedor. O que é importante é que os órgãos de fiscalização atentem para uma injustiça: a empresa que investe em nosso país, que gera emprego, é a mais visada. Ela fica muito mais exposta à fiscalização dos Procons. Já essas plataformas digitais, que vêm aqui e sobrevoam o país como aves de rapina, não geram emprego, não estão estabelecidas, não pagam impostos, vendem produtos contrabandeados, vendem sem nota fiscal, demoram na entrega e não sofrem nenhuma consequência. Essas é que devem ser o alvo prioritário da fiscalização. Este é um dos projetos que irei apresentar. Nosso projeto vai considerar a plataforma digital corresponsável pelos produtos vendidos em sua prateleira. Além disso, elas deverão suportar uma carga tributária maior porque fazem concorrência injusta com as que se estabelecem fisicamente no país.

ConJur — Nos últimos anos, foram aprovadas várias leis para tentar modernizar a economia e o ambiente de negócios. E outras novas leis tiveram o objetivo de evitar abusos como os da “lava jato”. O senhor pretende apresentar alguma proposta para revogar ou alterar algumas dessas normas? Reforma Trabalhista, nova LIA, nova Lei de Recuperação Judicial, pacote “anticrime”…
Fernando Capez —
É claro que a legislação trabalhista precisa ser modernizada, tem que haver uma discussão. Eu entendo que todos devem pagar honorários, reclamantes e reclamados. O STF derrubou a norma que previa isso e então é preciso revê-la no nível constitucional. O país deve premiar quem produz e proteger o trabalhador contra o mau empregador. Está faltando um pouco mais de equilibro. Nem o capitalismo explorador do século XIX, nem uma legislação que seja inimiga de quem empreende.

[Sobre o juiz das garantias, previsto pelo “pacote anticrime], acho que falta um pouco de diálogo com o STF, a fim de estabelecer um caminho. Um juiz instrutor não tem isenção psicológica para julgar a mesma causa, na qual determinou uma prisão cautelar ou uma medida restritiva. Não é conveniente. No momento em que ele determina a medida restritiva, uma prisão, por exemplo, psicologicamente ele já se comprometeu com a tese da acusação. Como ele vai absolver um réu cuja prisão ele decretou? Vai reconhecer que a prisão foi injusta? Então é urgente que o juiz instrutor não seja o mesmo juiz que vai julgar o mérito. Isso é uma questão, a meu ver, que tem que ser rediscutida dentro do Congresso, sobretudo trazendo uma emenda constitucional para resguardar o direito de defesa.

Há um desequilíbrio entre acusação e defesa. Quando isso ocorre, todo o sistema desmorona. Como pode haver uma investigação sem qualquer regramento (os documentos que não interessam à causa acusatória são simplesmente rasgados e eliminados)? É necessária uma rediscussão. Não porque eu seja contra a acusação, eu sou representante do Ministério Público da ativa e meus colegas de instituição dizem que sou um dos que dignificam a classe, sobretudo por tudo o que já realizei pelo MP, seja nas minhas atuações, seja como parlamentar. Ocorre que a instituição não pode continuar a se desgastar com demandas absolutamente abusivas ou ineficazes, como tem se repetido nos últimos anos. Com isso, perdemos a credibilidade. A ação penal ou civil deve caminhar para o sucesso final e sem nulidades, como sempre fizemos. O Ministério Público é uma das instituições mais sérias do país e merece respeito por parte de quem o representa. Respeito não é bater no peito e fazer juras de amor, mas honrar a carreira com atuações à altura da sua história de eficiência. É necessário sim fazer uma regulação. Essa é uma demanda interna também, sobretudo dos órgãos de comando e controle interno, não é só uma demanda da defesa, e é necessário reequilibrar o processo penal para evitar a mácula da nulidade do processo. Nós vimos o que está acontecendo, estão caindo por terra todas as investigações. E por quê? Porque as garantias constitucionais foram atropeladas. Há casos de coação de testemunhas e adulteração de provas. Assim não é possível. O Processo Penal foi rasgado em algumas investigações.

ConJur — O senhor fez menção à figura do juiz das garantias, que já é prevista por lei. Então a saída seria alterar a Constituição para conseguir superar a liminar do STF…
Fernando Capez —
Eu acredito que, dentro daquela linha de harmonia e respeito, do diálogo jurídico e construtivo, da articulação, a primeira coisa que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados tem que fazer é dialogar com o Supremo, em termos científicos, dogmáticos e jurídicos, para procurar entender as razões pelas quais foi concedida uma liminar. E em seguida buscar um caminho legislativo. Sem diálogo, sem articulação, sem a negociação política, não existe democracia. O bom parlamentar é aquele que consegue buscar o consenso não apenas dentro do Legislativo, mas também com os outros Poderes.

ConJur — Falando desse reequilíbrio entre acusação e defesa: o que mais deveria acontecer nesse cenário pós "lava jato" para se combater o crime, de modo geral, e a corrupção, em específico?
Fernando Capez —
A criminalidade é combatida com medidas estruturais eficientes, dando meios para as polícias e o MP. E ao mesmo tempo atribuir responsabilidade para aqueles que abusam dos seus poderes. Nós já temos um aparato legislativo moderno e muito aperfeiçoado, embora confuso. Mas é necessário investir também na questão estrutural, e aí nós voltamos à questão econômica. Temos que ter um Estado leve, para ter uma estrutura de segurança pública preventiva e judiciária eficaz, uma justiça mais célere. Ao mesmo tempo, temos que desjudicializar uma série de questões que batem desnecessariamente às portas do Judiciário, pois toda e qualquer polêmica é levada para lá. Então, é necessário sim criar requisitos processuais como o esgotamento das vias administrativas antes de se ingressar com determinada ação. Ouvir os TJs, os TRFs, o STJ, o STF, o TST, as associações de juízes e promotores, para verificar onde está o gargalo da Justiça e como fazemos para desafogá-la. A partir desse momento, você tem uma justiça desafogada, uma polícia não sobrecarregada, um MP concentrado naquelas questões institucionais que são realmente fundamentais – e não obrigar o prefeito a consertar a calçada ou trocar banco de praça. Agora, você tem o instrumento da prisão preventiva, as medidas cautelares, o instituto da colaboração premiada, um processo criminal mais ágil, o MP dotado de autonomia. Hoje temos um Judiciário independente, uma imprensa vigilante. Já existem as medidas necessárias para enfrentar a corrupção. O que precisa ser feito é combater os desvios de conduta e evitar anulações. É isso que está atrapalhando a persecução penal e que está levando à nulidade dos processos. Não é a falta de legislação, não é a falta de autonomia. Aconteceu comigo isso. Uma vergonha para todos nós promotores. Teve fraude na prova, coação de testemunhas provada por gravações. Um circo de horrores para promover a imagem de um mau representante do MP. Um caluniador despreparado para a função. Tudo isso vem influenciado por recentes e sistemáticas violações à CF e à legislação processual. É o descumprimento de garantias constitucionais e o atropelamento das regras processuais. Isso termina em quê? Nulidade.

ConJur — Falando de política criminal de um modo geral, um dos gargalos é a questão do tráfico de drogas. O senhor acha que a Lei de Drogas tem que ser revista?
Fernando Capez —
Bom, o que tem que ser revisto é um sistema amplo de combate ao tráfico. Claro que a Lei de Drogas pode ser aperfeiçoada. Mas o que adianta aperfeiçoar a lei se o poder das drogas é altamente corruptor? Se as drogas estão em todos os locais? É preciso buscar a união nacional. Todas as forças possíveis que puderem estar unidas devem ser chamadas. Em primeiro lugar, é necessária estrutura econômica e investimento para clínicas de internação. E o tráfico entra pelas nossas fronteiras o tempo todo, então precisamos unificar todas as forças de segurança, incluindo as Forças Armadas, estabelecer mecanismos de controle e de desvio de conduta e de comportamento relacionados a essa área. No campo da prevenção, é necessário chamar outros atores dentro desse sistema. Por exemplo, as igrejas. Independentemente da fé de cada um — o estado é laico —, a força de uma igreja atuando e buscando a recuperação de drogados é uma realidade prática. O vício é psicológico, talvez uma contraforça psicológica elimine o vício. Os especialistas e a área médica têm que ser chamados. Assistentes sociais. E a criação de forças de elite, muito bem remuneradas, selecionadas, preparadas, fiscalizadas, capazes de proceder a esse enfrentamento. A investigação deve ser profunda, com todos os mecanismos da lei do crime organizado, que já existem e que precisam apenas ser aplicados. E investimentos pesados na área da educação, com escolas em período integral, combinando estudo com atividade esportiva, artística e cultural e recebendo a família nos finais de semana, período em que a escola se transforma em ambiente de integração das famílias. Antes disso, eu não mexeria na Lei de Drogas, a não ser para correções pontuais.

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