Opinião

Disrupção futebolística: a sociedade anônima de futebol

Autor

  • Carlos Henrique Abrão

    é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo doutor em Direito Comercial pela USP com especialização em Paris professor pesquisador convidado da Universidade de Heidelberg e autor de obras e artigos.

27 de março de 2022, 6h15

1 – A criação do clube empresa
Desde tempos imemoriais nosso futebol, tanto masculino quanto feminino, clama por uma reorganização, melhor direção das suas atividades, haja vista que, com a pandemia, agudizou-se a crise das finanças e muitos clubes passam por dificuldades, inclusive tiveram que renegociar suas dívidas e reduzir salários de grandes estrelas e craques da bola.

Divulgação/FFC
Escudo do Figueirense, de Florianópolis
Divulgação

Foi pensando nisso, e sobretudo na conjuntura adversa que, há quase um ano, entrou em vigor a Lei nº 14.193, de agosto de 2021, recebendo alguns vetos presidenciais, notadamente no que concerne ao regime de recolhimento tributário e a forma de sua metodologia.

Enquanto na Europa os clubes de futebol se formam e desenvolvem seus negócios baseados na estrutura societária, somente agora o legislador acordou para essa realidade, mas a grande questão, e de forma emblemática, consiste em saber se a proposta normativa vingará ou será mera submissão aos investidores locais e estrangeiros para coordenar a direção dos clubes e demais agremiações que revelam grande preocupação com o saneamento das próprias finanças.

Num a vol d'oiseau sobre o escopo do legislador, percebe-se nitidamente o viés de adequar os clubes de futebol e lhes permitir, inclusive, a ferramenta do instituto da recuperação judicial, como já há várias agremiações enfrentando o desiderato do plano e submissão ao regime centralizado de pagamentos, mais recentemente o Figueirense Futebol Clube, ostentando passivo na casa de R$ 100 milhões.

A impressão que se tem é que, por motivos das mais diversas naturezas, até o momento a adesão foi reduzida e as experiências estão concentradas num laboratório de poucos clubes, além do que o poder diretivo é, sem dúvida alguma, uma das mais dificultosas lutas intestinas a serem solucionadas, colaciono, à guisa de exemplo, o Cruzeiro de Belo Horizonte.

Com razão, o ingresso de aporte financeiro no clube mineiro, na dicção de SAF (Sociedade Anônima de Futebol), trouxe uma experiência em disputa com o poder diretivo da agremiação e os antigos dirigentes da entidade.

Desta forma, não temos e raramente adquiriremos as estruturas mundiais do futebol europeu; passamos por um estado de pandemia que gerou dezena de centenas de alterações na vida dos clubes e hoje em dia o aproveitamento dos jogadores se faz por meio dos times de base, já que não revelamos grandes contratações, exceto de treinadores estrangeiros.

2 – Formação e constituição societária
O regramento permite adaptação do clube na modalidade de sociedade anônima aberta mediante a transformação, por meio de cisão, por iniciativa de pessoa física ou jurídica ou de fundo de investimento, não lhe retirando o direito de participação em jogos internacionais e todos os demais eventos.

Boa ideia teve o legislador de formatar uma espécie de clube de futebol que rendesse, minimamente, o lucro esperado para custear as despesas e ter forças para competir no cenário local e mais de perto com os clubes estrangeiros, porém temos um conjunto de regras a ser seguido e a capilaridade pede, antes de mais nada, uma governança corporativa, com transparência a nível de boa gestão e administração plúrima.

A sequência permite destacar que a forma de transformação da agremiação em sociedade anônima do futebol será a mais comum e peculiar, já que a cisão envolve um conteúdo patrimonial a ser previsto no estatuto do clube e, com isso, dezenas de problemas virão a ser discutidos no âmbito da realidade econômico-financeira daquela agremiação.

No entanto, a presença de players financeiros é sempre uma atração na atenção da mudança da regra do jogo, haja vista startups, fintechs e mesmo fundos, que estão interessados em levar sua marca para fora dos investimentos, com a respectiva clientela, e manter um retorno consonante a previsão do planejamento realizado.

Em tempos de crise, e num cenário abalado pela guerra do leste europeu, dezenas de jogadores regressaram ao Brasil e necessitam voltar ao campo para ter um rendimento à altura daquilo que precisam; sem uma estrutura forte, sólida e consolidada, nossos clubes não terão meios de honrar a folha de pagamento, além do endividamento com a seguridade social, fundo de garantia, na esfera fiscal e, também, de ordem tributária.

Aparada a primeira aresta da lei em vigor, a sujeição à lei de sociedade anônima ainda permitirá aporte por meio de lançamento escritural de debêntures ou ações negociadas no mercado primário e secundário, tudo terá um preço na medida em que aquela entidade será destinada a angariar o lucro e aumentá-lo gradativa e permanentemente.

Trata-se de uma constituição ou de uma transformação sem volta, explica-se mais e melhor o raciocínio: uma vez existente a sociedade anônima de futebol com registro na junta comercial, daí surgirão todas as consequências de compor o conselho de administração, aquele fiscal, e ter um CEO que presida a agremiação com pulso firme e ouça todo o leque de interessados, fornecedores, clientela, associados, além daqueles que procuram cooperar e colaborar na dinâmica do clube empresa.

Problema interessante poderá advir da não transferência da arena e do centro de treinamento para o clube empresa, o que seria um ponto fora da curva, já que terá por consequência arrendar, ou obter por meio de um contrato, a exploração do local, se lhe convier.

Muitas arenas construídas no período de ufanismo da copa do mundo ainda não foram integralmente quitadas, e isso é um grande retrocesso na vida da agremiação, mais ainda se transferir o débito para a sociedade anônima a ser constituída.

3 – Governança corporativa da sociedade
Visando evitar concentração e procedimentos de natureza societária, o legislador limitou o poder de controle a ser exercido, de modo a impedir qualquer participação ou posição majoritária em outra agremiação.

Separa-se o joio do trigo e se vislumbra uma concorrência bastante interessante e de alto grau de competitividade quando o detentor do clube que exerce o controle está legalmente impossibilitado de desempenhar igual função ou participar de semelhante agremiação desportiva.

O acionista detentor de 10% ou mais do capital votante, ainda que não detenha o controle, se eventualmente participar de outra sociedade anônima do futebol, também não poderá exercer o direito de voto nem de voz na companhia nas respectivas assembleias gerais a serem realizadas, menos ainda terá cargo de administração ou indicação de pessoa de sua confiança, vedação essa que busca diluir a participação e minorar o abuso do poder de controle.

Colima-se com isso dar maior governança corporativa, com transparência e clareza de propósito, sem que exista um controlador totalmente dominante ou por meio de um fundo de investimento que passe a ser majoritário e influencie as decisões com efeitos colaterais.

Regulamentados foram os conselhos de administração e fiscal, respectivamente, e para se inibir o conflito de interesses, uma série de restrições foi colocada no módulo de indicação, de tal sorte que não poderá ter função alguma na agremiação, ser atleta profissional contratado, treinador em atividade, ou até mesmo árbitro de futebol.

Com isso, busca-se minimizar impasse e a intenção é o distanciamento de situações conflituosas no exercício do cargo para o qual fora indicado ou nomeado.

A remuneração do membro do conselho de administração não poderá ser cumulativa com qualquer outro cargo exercido na sociedade original enquanto permanecer na companhia, dinamizando a exclusividade e impondo regras severas de controle até para confiança dos acionistas.

Há, também, vedação para o conselho fiscal e diretoria no intuito de coarctar dupla função dentro da agremiação e ressaltar a finalidade da sociedade anônima no propósito do seu objeto social para a qual foi criada, transformada ou cindida.

Bastante interessante, ainda, verificar que a participação igual ou superior a 5% da sociedade implica no dever de informação dos dados completos de contato da pessoa natural, sob pena de suspensão de direitos políticos e retenção dos dividendos, medida amarga que poderá resultar em consequências desagradáveis.

Vantajoso permitir a publicação de todos os atos societários e o próprio balanço de forma eletrônica quando a receita for igual ou superior a 78 milhões de reais por ano, cujos informes permanecerão no site eletrônico pelo prazo de dez anos.

Cataloga-se, assim, uma nova forma de construção da sociedade anônima de futebol, para que seus administradores e gestores cumpram seus deveres e obrigações conforme os estatutos, a lei do rito, sem esquecer o acesso por meio da Bolsa de Valores, contemplando rigorosa fiscalização a cargo da Comissão de Valores Mobiliários.

O arquétipo legal revela uma estrutura dentro do nível de pujança de grandes clubes Brasil afora e cria princípios muito transparentes ao estabelecer governança, dentro do dever de informar e participar indistintamente o quadro geral evolutivo da sociedade anônima de futebol.

4 – Da sucessão obrigacional
Ao ser formatada a sociedade anônima do futebol, as obrigações componentes do passivo do clube não se transmitem, ato contínuo, para a empresa. A exceção ficou delineada dentro do princípio da identidade do objeto social, e com escala de pagamento para os respectivos credores tal qual estabelecido no diploma legal.

Frise-se que o passivo trabalhista não está vinculado à formação da sociedade anônima e será pago de forma parelha ao débito tributário, por meio das receitas próprias e da arrecadação e conforme o espírito associativo, por força da remuneração da participação societária.

Em linhas gerais, a criação do modelo de sociedade anônima aberta veio ao encontro de dificuldades cotidianas de clubes de futebol, tanto masculinos quanto femininos, a fim de que tenham uma infraestrutura adequada, compatível com as despesas e gradual aumento das receitas.

Meticuloso o legislador no ponto de contemplar mecanismos de pagamento da dívida, por meio de seu alongamento e conforme as receitas auferidas pela sociedade anônima, sem deixar dúvida no sentido da não sucessão obrigacional com o passivo macro dos clubes de futebol.

Pensando no projetado espelho de dissociar o clube da sociedade anônima, inclusive no tocante à arena e centro de treinamentos, viu-se a enorme possibilidade de uma reforma do estatuto e consagração de sinergia entre o novo poder diretivo em respeito da manutenção da agremiação.

O tempo demonstra que algumas entidades de futebol começam a requerer a recuperação judicial, mesmo antes da transformação em sociedade anônima, e a dúvida que se estabelece não é apenas de direito intertemporal, mas de saber se o requisito da constituição em anônima se torna imprescindível para efeito de preenchimento dos requisitos de forma e de fundo do ajuizamento do pedido.

Os próprios atletas, comissão técnica e funcionários da agremiação desportiva fazem parte do elenco dos credores trabalhistas para fins de haver um redutor na liquidação da obrigação não suscetível de colocar em risco as finanças da entidade de esporte.

Com a pandemia e a completa paralisação de jogos em todo o país, muitos clubes reduziram a folha, mandaram jogadores e demais atletas embora e revisaram todos os critérios para ter condições de continuar suas atividades ao longo do período crítico, assim compreendido como a falta de direito de arena, uma vez que as responsáveis pelas transmissões cessaram completamente por falta de jogos e de patrocínio.

Os clubes que hoje já se apresentam nos moldes de verdadeiras empresas não terão maiores empecilhos, uma vez que um grande patrocinador confere sua marca e responsabilidade nos ajustes, contratações e folha de pagamento, além da percepção de vantagens como locação da arena e do direito incorpóreo; no entanto, é plausível afirmarmos que o tempo será a condicionante indispensável na concretude da assertiva do diploma legal.

5 – Do regime centralizado das execuções
Um regime que seria muito adequado à reorganização societária foi colimado pelo legislador ao permitir um regime único de centralização das execuções e um prazo de seis anos voltado para o adimplemento da obrigação.

Mas não é só.

Com isso se estabelece o arcabouço do juízo único universal, essencial para dirimir o conflito e sanar dúvidas, alimentando a perspectiva de um banco de dados no propósito de credores alinhados na dimensão do quadro geral esboçado.

Com razão, o regime centralizado visa reduzir o número de constrições envolvendo as bilheterias e demais dependências do clube de futebol, alinhando-se poderosa ferramenta para reorganizar o passivo e dimensionar, conforme cláusulas e condições específicas, o andamento da liquidação das obrigações, por meio da novação.

Haverá um prazo de até 60 dias para que a devedora apresente um plano de pagamento aos credores que se habilitaram, ou fizeram parte da relação elencada pelo clube, mas para tanto a entidade necessitará atender requisitos, dentre os quais balanço patrimonial, demonstrações contábeis do último triênio, obrigações consolidadas e auditadas, fluxo de caixa e sua projeção para os próximos três anos, termos de compromisso de controle orçamentário.

Tudo terá sua devida publicidade e será oportunizado e divulgado no site da entidade, facilitando, com isso, o acesso à lista de credores e a respectiva ordem para que possam apresentar eventual impugnação, ou mesmo questionar o valor declinado na relação.

Na tipologia estratificada são preferencialistas os credores idosos, portadores de doenças graves, natureza salarial inferior a 60 salários mínimos, gestantes, vítimas da infortunística e os credores que concederem deságio de pelo menos 30%.

Pauta-se o princípio pela livre negociação entre as partes interessadas, podendo o credor convolar o valor da obrigação em participação na agremiação societária, ou mediante títulos a serem emitidos com previsão legal.

A cessão de crédito trabalhista está prevista com ciência e anuência à devedora, e atualmente há no Parlamento projeto para regulamentar a respectiva operação com eficácia plena, sem limitação, até porque o próprio fundo de investimento que opera no clube poderá ser o primeiro interessado a liquidar o passivo da empresa.

No patamar estabelecido, e segundo sua lógica, não mais será permitido qualquer tipo de constrição ou penhora, mesmo bloqueio patrimonial, principalmente de valores ou receitas presentes, ou a serem compostas no futuro, o que guarnece a agremiação de maior liquidez e menor intranquilidade para o exercício da sua atividade.

Temperou o legislador o passado com o presente para alargar o futuro da empresa de futebol, sempre com o intuito de gerar um regime único centralizado de pagamento, sob supervisão e fiscalização direta da autoridade, que terá em mãos todos os elementos indispensáveis ao cumprimento daquilo pactuado no regime do plano de liquidação das obrigações da entidade.

6 – Recuperação empresarial
As entidades que passam a funcionar sob a rubrica de empresa, sob a égide de sociedade anônima, terão direito ao enquadramento na Lei 11.101/05 para fins de recuperação judicial ou extrajudicial, e no ponto tratado, vários clubes já propuseram pedidos de reorganização, e a primeira visão do assunto está a demonstrar que o Judiciário tem aceito, com alguma folga, a realidade que foi completamente dilacerada pela pandemia e crise internacional, as quais alastram seus efeitos pelo Brasil.

Ao ser requerida a recuperação, os contratos serão preservados, e o mais importante é a possibilidade de transferência para a entidade empresarial, no caso a sociedade anônima de futebol.

Notadamente a previsão está delimitada, mas resta saber se o atleta poderá vetar a mudança do seu empregador naquela oportunidade, ou se a conveniência e oportunidade de prosseguir no intuito de resguardar de qualquer solução continuidade contratual.

O princípio da boa-fé deverá ser demonstrado no momento do pedido de recuperação com a relação de credores e o soerguimento por meio do plano com a respectiva subordinação e aprovação pela assembleia geral.

As sociedades anônimas que ingressarem com pedido de recuperação farão constar do registro perante as juntas comerciais para conhecimento e ciência de terceiros, o que não inibe a continuidade dos negócios e a preservação dos contratos.

Resta saber, na prática, quais receitas poderão ser incluídas no plano para pagamento dos credores e sua respectiva liquidez, ou se, alternativamente, a empresa controladora, eventual fundo de investimento poderá fazer aporte e se tornar credor da própria companhia para a qual deu alento à sua criação.

Muitas agremiações desportivas, em vários estados do Brasil, formularam pedidos de recuperação e isso demonstra, ao menos, pela breve vigência do diploma legal, o salvamento dos clubes de futebol, que passa, inexoravelmente, por uma reorganização societária e parcelamento das suas dívidas, dentro do binômio receitas e despesas.

7 – Síntese legal geral
A formatação de um diploma normativo criador de sociedades anônimas futebol é ainda uma incógnita para que seja alcançado e adotado sem qualquer ressalva, na medida em que a disputa entre o novo e o antigo será sem tréguas, pois que a mentalidade dos dirigentes continuará imperturbável e não suscetível de reviravolta.

Não se pode primar, por tal ângulo, que a finalidade exclusiva da Lei 14.193/21, aprovada com vetos, fora de permitir o requerimento de recuperação judicial e distinguir as dívidas do passado com aquelas do presente e, com isso, gerar caixa à altura do grau de endividamento.

Muito pelo contrário, o espírito primacial do legislador foi na direção de se criar uma cultura empresarial e um modelo disruptivo futebolístico, livre das mãos e do domínio de grupos acastelados, anos a fio, na consolidação de suas próprias mazelas, e atribuir um profissionalismo que possa aglutinar valores e levar o Brasil novamente ao cenário internacional do esporte que mais tem o aplauso da população.

Após décadas fora da disputa de um título mundial e premidos pela supremacia Europeia, cujos clubes têm valores vultosos e patrimônios incalculáveis, chegou o momento dos clubes de futebol brasileiros, masculinos e femininos, saírem da estreiteza do comando imprimido sem valores de governança e transparência, donde a transformação em sociedades anônimas criará um salto de qualidade e ditará uma musculatura correspondente aos investimentos que o futebol bem jogado está a merecer.

Inelutavelmente, o modelo permeado deveria servir de diretriz para toda matriz esportiva, vôlei, basquete, tênis, atletismo, a fim de que, definitivamente, construamos uma mentalidade sem a dependência de um patrocinador, mas com a vontade de participar das competições, subir ao pódio e ganhar medalhas, elevando o nome do Brasil nas competições internacionais.

Autores

  • é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, doutor pela USP com especialização em Paris, professor pesquisador convidado da Universidade de Heidelberg e autor de obras e artigos.

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