Tribunal do Júri

Dois (dos muitos) efeitos da psicologia do testemunho na tomada de decisões

Autor

  • Tiago Gagliano Pinto Alberto

    é pós-doutorando em Filosofia (Ontologia e Epistemologia) na PUC-PR pós-doutor em Psicologia Cognitiva na PUC-RS em Direito pela Universidad de León (Espanha) e pela PUC-PR doutor em Direito pela UFPR mestre em Direito pela PUC-PR professor da PUC-PR professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná da Escola da Magistratura Federal em Curitiba da Academia Judicial de Santa Catarina da Escola Superior da Magistratura Tocantinense e da Escola da Magistratura do Estado do Ceará e instrutor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados.

26 de março de 2022, 8h00

Inicialmente, agradeço o convite para publicação nesta coluna gentilmente realizado pelos doutores Daniel Surdi de Avelar e Rodrigo Faucz. Espero corresponder às expectativas.

123RF
Cresce, felizmente, a utilização da psicologia do testemunho no ambiente de tomada de decisões judiciais. Essa vertente da psicologia comportamental, que já alcançou maturidade, autonomia e vem evoluindo muito nos últimos 40 anos está, pouco a pouco, sendo incorporada aos precedentes, tornando-se objeto de aulas, estudos e trabalhos escritos, nacionais e estrangeiros, e sendo cada vez mais correlacionada com o Direito, especificamente na tomada de decisão.

No ambiente da teoria da argumentação jurídica, a utilização de aportes teóricos e práticos hauridos da psicologia do testemunho, assim como interfaces externas com ramos do conhecimento como as neurociências, a psicologia e economias comportamentais, a medicina, entre outras, é estudada no contexto de descoberta, que representa, para a argumentação jurídica, a faceta da análise de fatos e a sua correlação com a tomada de decisão, a partir principalmente da prova. Essa imbricação decorre, por sua vez, de um fenômeno mais amplo que pretende situar o Direito, enquanto ciência, em um patamar diferenciado no século 21. Houve, com as interações intra, trans e extrajurídicas, um giro tal no campo jurídico que a ciência deixou de se circunscrever ao seu próprio eixo, eminentemente jurídico e quejandos, passando a acolher inflexões provenientes de outros setores teóricos. O Direito de hoje definitivamente não é o mesmo de ontem. Mas isso é assunto para outro momento.

Nesse artigo pretendo, sem compromisso de esgotamento do tema, descrever dois dos muitos efeitos conhecidos pela psicologia do testemunho na percepção da realidade e correlacioná-los com a colheita da prova e a percepção do tomador de decisões, nomeadamente o leigo, de sorte a demonstrar como a reconstrução dos meandros fáticos pode acabar fortemente alterada, enviesada e, por conseguinte, ruidosa, a depender do vício que se deixe incutir sorrateiramente na descrição e delineamento do fato bruto (ou natural).

Vamos aos efeitos:

a. Os contornos ilusórios de Kanizsa
O psicólogo italiano Gaetano Kanizsa definiu esse efeito, em diversos trabalhos publicados a partir da década de 70 do século passado, como ilusões ópticas que determinam a possibilidade de visão de algo que não está efetivamente contido em uma figura (ou realidade) e algo que está (GANITZSA, 1955). É famoso o exemplo do Triângulo de Kanizsa, em que, a partir de alguns estímulos, faz-se possível ver um triângulo de cor branca que se situa no contorno das figuras desenhadas. Eis a imagem:

Fonte: Kanizsa, 1955
Fonte: KANIZSA, 1955

No ambiente da tomada de decisão, os contornos ilusórios se centram em duas vertentes: a.1: o tomador de decisão vê (ou percebe) algo que não está no evento; a.2: o tomador de decisão não vê (ou percebe) algo que está posto no fato bruto.

Imagine que você é um jurado e, como leigo que é, não sabe muito bem o que observar durante a exposição dos argumentos no ambiente do Tribunal do Júri. Algo, no entanto, chama a sua atenção: a exposição dos fatos a partir de recursos de multimídia que parecem descortinar todas as controvérsias fáticas descritas pela acusação e defesa durante as respectivas falas e debates. A utilização, nesse caso, de recursos que potencialmente insiram elementos de foco da atenção em uma realidade descrita (como as figuras que parecem "Pac-mans" no desenho do triângulo de Kanizsa) não somente atraem a atenção para o elemento central (da figura ou da realidade descrita), como também ostentam a capacidade de alterar a visão (ou percepção) dos contornos da realidade, inclusive criando e inserindo figuras (traduzidas para o Direito como: realidades completas ou parciais, elementos de atenção e focos centrais ou periféricos de percepção) que definam onde, quando e de que maneira o tomador de decisões focará a sua atenção, de maneira tal que ele estará cego, ou ao menos com muito pouca atenção direcionada para outros elementos.

Se você é um tomador de decisões técnico (um juiz, por exemplo) e acha que ficou fora da ilusão óptica de Kanizsa, repense. Imagine que uma parte da fala da testemunha (acusado ou vítima, o que é indiferente para a psicologia do testemunho), um trejeito, um olhar, uma alteração comportamental, forma de respirar, ou até mesmo uma interjeição, ocasionaram em você uma reação mental tal que aparentemente confirme ou refute, total ou parcialmente, alguma versão inicialmente apresentada e descrita nos autos. Você não sabe muito bem por qual motivo passou a ter essa certeza, mas sabe que a tem. Nesse caso, esses sutis elementos tiveram o mesmo efeito dos "Pac-mans" da imagem do triângulo e você, técnico, porém incipiente nesse campo de análise, deixou-se convencer pela realidade construída e não pela reconstrução do fato bruto que se narra no procedimento judicial.

Fique atento!

b. O Verbal Overshadowing effect
Chad Dodson, Márcia Johnson e Jonathan Schooler nos lembram, a propósito do verbal overshadowing effect, que o quão bem nos lembramos de um determinado evento depende em parte do critério que utilizamos para avaliar a informação que chega à nossa mente (DODSON, JOHNSON and SCHOOLER, 1997). Se a descrição verbal de uma pessoa (ou realidade), por exemplo, não se encontra síncrona à percepção da imagem que temos dessa mesma pessoa (ou realidade), a tendência será reescrever a realidade, ou a anular, criando uma terceira forma de exposição (MAZZONI, 2019).

Deixe-me ser mais claro, a partir de um exemplo. Joana foi roubada, tendo havido ameaça à sua integridade física, sem, no entanto, a utilização de arma de qualquer natureza [1], a fim de que entregasse a bolsa ao roubador. Ela, ciente da orientação geral de não reação, obedeceu, sem questionar se a ameaça poderia ou não vir a ser cumprida como noticiada. Após o evento, Joana foi à delegacia de polícia para confecção de boletim de ocorrência e o policial José a informou que naquelas redondezas era corriqueira a atuação de uma gangue cujas fotos ele já tinha disponíveis no sistema. Então, com o objetivo de tentar encontrar o culpado pelo crime, ele mostra as fotos da gangue à Joana, que, em seguida, tenta descrever verbalmente o rosto do meliante.

Nesse ponto, o verbal overshadowing effect opera. A imagem anteriormente mostrada à Joana confluirá decisivamente em sua descrição verbal e será capaz de alterar a feição do rosto do roubador, (1) anulando o verdadeiro rosto, (2) criando um novo rosto gerado a partir da junção da imagem com a descrição, ou simplesmente (3) ratificando o rosto visto pela imagem, ainda que não corresponda à face do roubador durante a consecução do fato bruto. A situação pode ainda piorar se o agressor for de diversa etnia, ou cor da de Joana, que terá ainda mais dificuldades na descrição e poderá ser severamente influenciada pelo efeito em exame (LOFTUS, 1979).

Na ponta da linha, haverá alguém que será acusado talvez sem qualquer participação naquele crime e, nada obstante, identificado com alto grau de certeza pela vítima, que, em nítido processo conhecido na neurociência como "paradoxo plástico" (DOIDGE, 2021), estará influenciada pela interferência externa (external bias), alterando de tal sorte a sua visão da realidade que até mesmo as conexões neurais a propósito do que ocorreu poderão ter sido (re)construídas de maneira a que a nova imagem seja a acertada na visão da vítima, sem qualquer espaço para dúvida.

Nesse contexto, não será de se estranhar que Joana afirme ao juiz que está 100% certa de que o acusado realmente cometeu o roubo.

Esses são apenas dois dos muitos gatilhos na mudança da percepção da realidade descritos, estudados e delineados pela psicologia do testemunho e que podem alterar decisivamente a percepção da realidade por parte do player que se insira no contexto de descrevê-la para fins de apoiar a tomada de decisão ao final lançada. Outros existem e podem ser descritos, em momento oportuno.

Agradeço o convite para publicação nessa coluna, decerto oriundo muito mais da amizade e apreço que nutro pelos colunistas do que, propriamente, pela inovação do tema.

Um abraço a todos!

Referências bibliográficas
DODSON, Chad S., JOHNSON, Marcia K. and SCHOOLER, Jonathan W. The verbal overshadowing effect: Why descriptions impair face recognition. In: MEMORY & COGNITION, 1997, 25 (2), 129-139.

DOIDGE, Norman. O cérebro que se transforma. Como a neurociência pode curar as pessoas. Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Record, 16ª ed., 2021, p. 14.

KANIZSA, G (1955), Margini quasi-percettivi in campi con stimolazione omogenea, Rivista di Psicologia , 49 (1): 7–30.

LOFTUS, Elizabeth F. Eyewitness Testimony. London: Cambridge, Massachusetts, 1979, p. 37-38.

MAZZONI, Giuliana. Psicología del Testimonio. Madrid: Editorial Trotta, 2019, p. 58.


[1] O que é relevante saber, a fim de que outro efeito não se revele patente, o Weapon effect.

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