Castigo em dobro

Mulher que já cumpriu totalidade da pena recebe nova ordem de prisão

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26 de março de 2022, 8h42

Uma mulher que passou mais tempo detida em prisão preventiva e, posteriormente, domiciliar do que o total da pena a que foi condenada pode ser presa novamente. No último dia 17, o juiz Edegar de Sousa Castro, da 3ª Vara Criminal da Comarca de São Bernardo do Campo, determinou a expedição de mandado de prisão contra ela, que foi sentenciada por roubo majorado.

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Mulher foi presa quando estava grávida e já cumpriu 100% do tempo de condenação
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A mulher teve a prisão em flagrante convertida em preventiva em maio de 2017, quando estava grávida. Ela ficou detida no CPD de Franco da Rocha durante a gravidez, enquanto aguardava julgamento, e foi transferida temporariamente para uma outra unidade prisional em razão do nascimento do bebê.

No fim de março de 2018, após o parto e depois de um HC coletivo ter sido concedido pelo Supremo Tribunal Federal para liberar todas as presas grávidas e mães de crianças, ela teve prisão domiciliar concedida.

A carta precatória, porém, não foi cumprida. A ordem foi expedida para a prisão de Franco da Rocha e o oficial foi até o presídio para o qual ela tinha sido transferida, mas não a encontrou lá. E ninguém mais tomou nenhuma providência. A situação só mudou com a descoberta do caso pela pesquisadora de Direito Penal Josianne Pagliuca dos Santos.

Em maio de 2018, Josianne interveio e conseguiu fazer com que a decisão fosse cumprida, quase dois meses depois da expedição da ordem. À ConJur, ela contou que, naquele momento, o país atravessava a greve dos caminhoneiros, que causou uma onda de desabastecimento, mas assim mesmo ela gastou seus últimos litros de gasolina para levar o oficial de São Paulo para Franco da Rocha e de volta, para que a mulher presa, já mãe, pudesse sair da prisão.

Após a intervenção de Josianne, a decisão foi cumprida e a mulher passou a responder pelo crime em prisão domiciliar. A partir dali, ela passou a ser representada pela Defensoria Pública, que seguiu recorrendo enquanto ela cumpria a pena. A sentença a que ela foi condenada, em janeiro de 2020, determinava a revogação da domiciliar. Dois meses depois, após a apreciação dos recursos, a condição foi restabelecida.

O processo transitou em julgado em dezembro do ano passado, com pena fixada em quatro anos, um mês e 23 dias de prisão. No último dia 17, o juiz Edegar de Sousa Castro expediu um novo mandado de prisão contra a ré.

A advogada Viviane Balbuglio, em caráter pro bono, entrou com um contramandado, argumentando que a pena tinha sido integralmente cumprida em setembro de 2021 (mesmo descontando o intervalo em que a prisão domiciliar foi revogada e, posteriormente, restabelecida) e pedindo a suspensão do mandado.

Em resposta, o Ministério Público afirmou apenas que o pedido "não possui embasamento jurídico, tendo em vista que se trata de prisão decorrente de sentença definitiva para início de cumprimento de pena, portanto, plenamente legal", e que "eventuais discussões referentes a progressão de regime de cumprimento de pena deverão ser direcionadas ao Juízo da Execução Penal".

"O parecer do MP me pareceu bastante desproporcional", afirma Josianne Santos. "Afinal, se a pessoa cumpre 100% do tempo de condenação em preventiva dentro de unidade prisional, ninguém espera que o processo seja analisado pelo juiz de execução para expedir alvará de soltura".

"O MP aqui pretende que ela seja presa, retirada novamente do convívio com a filha criancinha, do trabalho, para esperarmos sabe-se lá quanto tempo para ter o processo de execução organizado e aí, só então, um juiz falar: 'Realmente, ela já cumpriu 123% do tempo de pena'", diz ela.

Detração penal
O criminalista Mário de Oliveira Filho explica que a prisão preventiva cumprida no regime domiciliar por questão de ordem personalíssima do preso tem de ser descontada da pena aplicada.

"Existem vários julgados do STJ, como no julgamento do HC 11.225. Quando a sentença é proferida em primeira instância, o juiz da causa é responsável por fazer a detração penal e descontar o tempo cumprido em prisão preventiva ou temporária", explica.

O advogado lembra que o STJ já definiu também que o juiz do processo, ao sentenciar e condenar, deve descontar o tempo cumprido em prisão temporária ou preventiva, seja ele em regime fechado ou em prisão domiciliar, como nos julgamentos do HC 455.097, do AgRG  nos EScl no Agravo em Recurso Especial 1.647.599 e também no HC 342.011

"O que esse juiz fez é uma temeridade. Eu não acredito que um juiz faça isso por ignorância e que um promotor se manifeste desse jeito por desconhecimento. Isso é maldade pura. Todo mundo sabe. É o óbvio ululante. Até medidas cautelares restritivas de liberdade ao meu ver são passíveis de detração penal", argumenta Oliveira Filho. 

O advogado Welington Arruda, por sua vez, lembra que a detração está prevista no artigo 42 do Código Penal, que estipula que, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação devem ser descontados. 

Ele explica que o STJ admite que a medida diversa da prisão que impede o acautelado de sair de casa assemelha-se ao cumprimento de pena em regime fechado, ou semiaberto quando pode sair no período diurno como no julgamento do HC 455.097

"Embora não exista previsão legal quanto ao instituto da detração para medidas cautelares alternativas à prisão, no caso concreto, entende-se que o período de recolhimento à prisão domiciliar, por comprometer a sua liberdade, deve ser reconhecido como período detraído, em homenagem ao princípio da proporcionalidade e em apreço ao princípio do non bis in idem, que determina que não se deve aplicar a mesma pena duas vezes pelo mesmo crime", resume.

Processo 0000701-54.2019.8.26.0564

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