Diário de Classe

Precisamos falar sobre dualismo metodológico

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26 de março de 2022, 8h00

O conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia tem tudo para caminhar para uma iminente possibilidade de novos desenhos geopolíticos na Europa, com "outra" cisão global em blocos. Nada de novo até aí. Mas frente aos muitos (já existentes) entraves para a realização de programas de bem estar no mundo, a guerra pode ser o gatilho para, também, reavivar as velhas discussões relacionadas à concretização de direitos sociais, principalmente naqueles países com iniciativas de pretensão universalizante, como o Brasil. A escassez global predará o direito? Essa é a pergunta que move estas sumaríssimas reflexões, de fundo histórico-político. Vejamos.

Com o fim da 2ª Grande Guerra e a Europa arrasada, havia uma preocupação central no Ocidente: impedir o avanço soviético territorial e ideologicamente. O caminho adotado, para além da criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), passou também pela reconstrução do Velho Continente, sob a comum bandeira da União Europeia. Era esse o caminho para colocar no mesmo barco velhos rivais, como França e Alemanha, e principalmente afastar os discursos de cariz socializante que vinham de leste.

Esse é o resumo para esse movimento em um tempo não tão distante, manobrado com uma dupla finalidade: para uma ameaça territorial de proporções continentais — a União Soviética —, criava-se uma organização política que potencializava exponencialmente a individualidade de cada país do grupo, não apenas sob a ótica militar, mas também sob um ideário comum. Como diria Hobbes, o medo é (ou pode ser) uma paixão civilizadora entre indivíduos, que se unem para formar o Estado em nome da própria segurança. Por outro lado, paradoxalmente, o lugar "geopolítico" dessa criação artificial parece nunca deixar de ser um desconfiadíssimo "estado de natureza" diante de seus pares — como a História mostra (e o atual conflito lembra nestas já surpreendentes duas décadas do século 21).

Pois bem. Esse mesmo remanejamento em bloco da Europa pressupôs sua reconstrução no pós-guerra, trazendo à tona um período também por todos conhecido como os Anos de Ouro do Capitalismo, demarcando uma oposição ideológica que fazia contrastar dois mundos absolutamente distintos: fechamento político e estagnação típicos do comunismo burocrático, de um lado, e programas de bem-estar propiciados pelas ondas de pleno emprego (reflexo da própria reconstrução do continente após a guerra) e prosperidade e desenvolvimento, de outro.

No plano jurídico, esse mesmo contexto, por sua vez, era também demarcado pelo "Constitucionalismo Contemporâneo" [1], emprestando normatividade às iniciativas — digamos assim — de "diferenciação" do mundo soviético. No Brasil, o momentum que permitiu essa espécie de alinhamento com o Norte ocidental foi a Constituição de 1988, impondo elevado grau de autonomia ao Direito. Isso significa que, neste Estado Social Democrático de Direito, "reduzir desigualdades" ou "erradicar a pobreza" não poderiam ser, já em fins da década de 1980, uma simples intenção do Estado. Era, na verdade, uma inarredável política desse mesmo Estado. E, justamente pelo já mencionado grau de autonomia do Direito, um dos típicos traços do Constitucionalismo Contemporâneo, essas mesmas políticas de Estado jamais poderiam ser confundidas com políticas de governo. Afinal, era o Direito quem passava a cobrar pedágios da moral, da política e da economia.

Mas, afinal, como toda essa reconstrução de traço histórico e político relaciona-se com a atualidade? Como o conflito entre russos e ucranianos pode afetar programas de bem-estar social, inclusive no Brasil?

Explico. Como temos acompanhado, a guerra tem evidenciado — mais pelas sanções impostas aos russos — um inesperado (e relâmpago) processo de "desglobalização", envolvendo, sobretudo, commodities. Matrizes energéticas de base petroquímica têm escasseado como no início da crise financeira do welfare state, nos anos 1970. De igual modo, insumos agrícolas — que rarearam de uma hora para a outra — têm demonstrado uma sensível dependência internacional da agroindústria nacional, "abrindo espaço" para uma série de entraves ao financiamento de programas de bem-estar. Afinal, o que é escasso é, também, mais caro.

Esse é o ponto. Como crises financeiras costumam trazer a reboque todo um catálogo de questionamentos de traço ideológico, o cenário é também a tempestade perfeita para discursos de viés economicista, em que se interroga pelas condições de possibilidade para a concretização de direitos sociais. Muito por isso, impossível não pensar no velho dualismo metodológico [2], ambientado num já distante século 19 — e que pode ser resumido justamente nisso: uma contraposição entre normatividade e realidade.

O "fenômeno" alinhava-se ao conceito de mutação constitucional dos professores Paul Laband e Georg Jellinek, posteriormente radicalizado por ninguém menos que Hans Kelsen. Nessa propositura, talvez mais voltada a problemas de ordem metodológica (mas com implicações práticas bastante severas), havia uma espécie de cisão nos estudos sobre o Estado. De um lado, o Estado era um objeto de estudo histórico e social, verificável empiricamente. De outro, era um produto jurídico, ligado a um sistema normativo.

Essa cisão, sem nenhum filtro hermenêutico, como de resto já parece claro, opunha uma teoria política e outra jurídica, fazendo a distinção entre o prevalente ser de uma realidade empírica e o dever ser desse mesmo conjunto normativo. Ou seja, a moral e a política, no pessimismo de Kelsen, ficavam no campo do ser, que é essa realidade concreta, bem separada do dever ser, que é a ciência "pura". Eis o ranço positivista presente até hoje: a norma, que é o fato social posto pela mão humana, só pode (ou só deve) ser descrita pelo cientista do Direito. E, quando se faz isso sem nenhum conteúdo axiológico, chega-se novamente a outro dever ser, sucessiva e infinitamente. Muito por isso, a barreira é, como se vê, intransponível.

Entretanto, frente a esse estado de coisas já tão duradouro nas nossas cotidianidades — produto dos esforços acadêmicos de Laband, Jellinek e Kelsen —, a questão, contemporaneamente posta, é: "vale a pena" contentar-se com a "descrição"? "Naturalizar realidades", como a que limita direitos frente ao argumento econômico ou diz que o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é?

A resposta é sempre negativa. Afinal de contas, para além das consequências do predomínio desse paradigma, é preciso olhar para a outra face desse contexto, em que se dá o edifício de sistemas normativos, sobremodo, voltados à diluição de riscos sociais. Mais que uma espécie de solução de compromisso para acomodar as tensões geradas no cerne do liberalismo — ou mesmo uma simplista ruptura paradigmática nas finalidades e funções do Estado —, eles são o ímpar produto do que nos diferencia de outras espécies: uma inigualável capacidade imaginativa [3] que, não é demais lembrar, procurou, na singularidade destas discussões, justamente romper com as cada vez mais agudas diferenças existentes entre nós. O Direito não naturaliza. Ele emancipa. Existe justamente para inverter o polo de nossas cotidianas desigualdades. Claro. É ele quem transforma a realidade. Domestica-a. Esse é o ponto: se falharmos com ele, o Direito, falhamos como humanidade. Que o futuro nos diga algo sobre isso.


[1] Termo cunhado por Lenio Streck para a oportuna diferenciação do Neoconstitucionalismo. Remeto o leitor interessado a seu Dicionário de Hermenêutica e a um texto publicado aqui na Conjur: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017, e Eis porque abandonei o neoconstitucionalismo. Consultor Jurídico, São Paulo, 13/3/2014. Disponível aqui. Acesso em: 20/3/2022.

[2] Além do Dicionário de Hermenêutica do professor Lenio Streck, já referenciado, remeto o leitor interessado no tema a CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Contribuições para uma teoria crítica da Constituição. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017.

[3] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: História breve da humanidade. Elsinore, 2013.

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    é doutor em Direito pelo programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Com bolsa Capes/PNPD, realiza estágio pós-doutoral na mesma instituição, junto ao Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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