Estúdio Conjur

Sanção penal premial: espécie de pena ou subespécie distinta de sanção?

Autor

  • Sebástian Borges de Albuquerque Mello

    é advogado sócio do escritório Sebastian Mello Marambaia e Lins Advogados. Professor de Direito Penal da Graduação e Pós-Graduação (mestrado e doutorado) da UFBA (Universidade Federal da bahia). Mestre e Doutor em Direito pela UFBA.

25 de março de 2022, 14h07

Escrevo este ensaio como um breve estudo a partir de uma provocação feita por Alexandre Wunderlich, nas primeiras semanas após a aprovação da Lei 13.964/19, sobre os limites à negociação das penas pactuadas em acordos de colaboração premiada. Ele escreveu um artigo na ConJur[1], no qual se posiciona pela existência de duas categorias distintas de sanção penal: pena e sanção premial, que demandariam tratamentos jurídicos distintos.

Com efeito, percebe-se uma interessante intersecção entre Direito Penal e Processual no que se refere às sanções penais negociadas. Questões relevantes ainda não estão devidamente alicerçadas, sobretudo no que se refere: 1) às necessárias distinções entre pena e sanção penal negociada; e 2) suas relações com culpabilidade. Cada uma destas questões submete a Teoria da sanção penal a novas tensões, haja vista que sua construção, como sabido, se orienta para conceber a pena como consequência de um processo adversarial.

Deste modo, algumas questões merecem ser postas, e a primeira delas é se pena e sanção penal negociada são tipos distintos de sanção penal, ou se entre uma e outra se estabelece uma relação entre espécie e gênero.

A abordagem da matéria até agora tem se dado no âmbito processual, em que se discute a colaboração como meio de obtenção de prova, e o "prêmio" (entre aspas) concedido ao colaborador é visto apenas como um efeito — secundário, acessório e subordinado — de um negócio jurídico processual.

Mas a questão da natureza jurídica das "penas" negociadas ainda não foi objeto de estudos mais aprofundados. E algumas questões permanecem pendentes: 1) pena e sanção premial (aqui utilizada como sinônimo de sanção penal negociada) são tipos distintos de sanção penal? 2) Não há pena sem culpabilidade. Há sanção premial sem culpabilidade?

O problema da sanção penal
Ninguém duvida de que a pena é uma espécie de sanção aplicada em decorrência de um ato ilícito — crime ou contravenção. No entanto, uma sanção penal negociada pode ser considerada como pena? A sanção premial é uma subcategoria de pena, à qual fica subordinada, ou pena e sanção premial são duas espécies de um gênero de sanção penal, que se radicam num elemento comum, mas tem características e funções distintas?

Para tanto, deve-se perquirir quais são os elementos identificadores da pena dentro de uma teoria da sanção. Nesta linha, pode -se dizer que a pena possui elementos empíricos/instrumentais e comunicativos/simbólicos, e pressupõe culpabilidade para sua imposição.  A pena é sempre um mal (elemento empírico) — ligado à reprovação (elemento comunicativo) pela infração de uma norma penal de conduta[2], atribuída a um sujeito culpável.  

Então, logo no começo da conversa, a pena pode ser vista como um mal. Mas não um mal qualquer; é um mal que representa a privação — efetiva ou potencial — de um direito fundamental.

Mas o mal, por si só, é insuficiente para configurar a pena. Existem males que são decorrentes de outros ramos do Direito, que são inclusive atos ilícitos. Mas este mal, por si só, não justifica sua imposição. Ela possui um elemento comunicativo, que é uma manifestação oficial de desaprovação de um comportamento, que justifica ou legitima a imposição desse mal. O elemento comunicativo vai ser a justificação da punição.

Como pontua Feinberg, a punição tem um significado que normalmente não se manifesta nos outros tipos de punição, como se fosse um modo simbólico de devolver o mal ao criminoso, de expressar um tipo de ressentimento vindicado[3]

Mas a censura, sem a imposição do mal antes referido, é insuficiente para caracterizar uma sanção penal. Existem uma série de censuras — jurídicas e não jurídicas — que são inofensivas. Para Ferrajoli, seria apenas um conselho "sem sanção a lei é conselho e não mais lei", e o Direito "não seria mais que uma vã palavra se não tivesse por implícito conteúdo a faculdade de defender-se[4]". Neste aspecto que vem o elemento de força, próprio das sanções punitivas. 

A estes dois pilares deve ser adicionado um terceiro, para além do elemento empírico/instrumental (a imposição de uma privação ou restrição de direitos fundamentais) e do elemento comunicativo/simbólico (representação de um juízo de desaprovação de um comportamento). Trata-se de um fundamento para sua imposição, que tradicionalmente se associa a uma ideia de reprovação[5] que nós chamamos de culpabilidade.  

A pena é uma coerção que impõe sofrimento, e parece que a imposição de dor ou sofrimento é vista como sendo necessária como forma de solução de conflitos. E neste aspecto se insere a culpabilidade: como fundamento e limite para a imposição deste sofrimento.

Tais características da pena se aplicam também à sanção premial?
Definidas três características essenciais da pena como sanção penal (imposição de um mal como elemento instrumental, juízo de desaprovação como elemento simbólico e culpabilidade como pressuposto), resta investigar se a sanção premial cumpre tais requisitos.

No que tange ao elemento empírico/instrumental, a sanção premial, assim como a pena, acarreta a imposição de um mal, entendido como privação de direitos fundamentais e eventual imposição de privação de liberdade.

E no que tange ao elemento comunicativo/simbólico? A sanção premial representa um grau de reprovação equivalente àquele que representa a pena? Certamente que não. Para tanto, é preciso analisar a sanção premial dentro de uma Teoria da Sanção, para averiguar se tratamos de uma espécie de pena (e a ela subordinada) ou representa um tipo de sanção penal distinta da pena.  

Inicialmente, deve-se deixar claro que a pena não esgota todas as espécies de sanção penal. Medidas de segurança, inegavelmente, são sanções penais, cujos elementos empíricos, e sobretudo, comunicativos, são distintos daqueles incidentes. Importante salientar que as medidas de segurança, quando foram gestadas, tinhas a pretensão de serem eticamente neutras (incolores), no sentido de que não expressariam uma reprovação de conduta e, portanto, não fazem efetiva uma responsabilidade jurídica. Alheias à ideia de culpabilidade e guiadas pelo princípio de utilidade, deviam alcançar seus fins sem afligir ao condenado com o conteúdo juridicamente desfavorável que caracteriza as penas[6]

De igual forma, as medidas socioeducativas também são sanções penais, embora também distintas da pena. A medida socioeducativa imposta ao adolescente como resposta ou reação estatal ao cometimento do ato infracional tem inquestionável, não se distinguindo da pena numa perspectiva estrutural qualitativa. A medida socioeducativa cumpre a mesmo papel de controle social que a pena, possuindo finalidades e conteúdo assemelhados, diferindo apenas quanto ao sujeito destinatário. Isto é, como já dito, representa a política de controle social do delito na adolescência e funda-se no reconhecimento de que se adultos e adolescentes são seres em condições e realidades diferentes, também o Direito deve ajustar-se a tais diferenças[7].

Medida de segurança e medida socioeducativas têm fins e funções que não são coincidentes com os fins da pena, além de que suas respectivas cargas comunicativas simbólicas são distintas. Por esta razão o mal como consequência da infração é outro. O mesmo raciocínio deve ser feito em relação à sanção penal negociada. É preciso tratá-la como categoria dogmática e como tal, identificar suas características em cotejo com as da pena.

Assim, para analisar a sanção penal negociada: 1) como uma espécie de pena;  ou 2) como espécie distinta de sanção penal, é preciso pensar nas diversas manifestações punitivas decorrentes de justiça negociada,  pois é possível perceber sanção premial não apenas em acordos de colaboração premiada, mas também na transação penal, na suspensão condicional do processo e no  acordo de não persecução penal.

O "prêmio" considerado como sanção é entendido, portanto, como "um mal menor imposto ao indivíduo que, depois do cometimento de uma conduta punível pelo direito penal, realiza contraconduta colaborativa destinada a diminuir ou elidir a pena prevista para o ilícito originariamente cometido"[8].

Do ponto de vista do elemento empírico/instrumental, a sanção penal negociada representa uma privação ou restrição a direitos do interessado em grau menor do que aquela que seria aplicada caso houvesse pena. A sanção premial do Direito Penal é um pouco diferente do que a gente pensa da sanção premial em outros ramos do Direito, porque se trata não propriamente de um prêmio, mas de uma redução de dano.

No que tange ao elemento comunicativo/simbólico, contudo, é mais acentuada a discrepância: a perspectiva comunicativa na sanção penal negociada é diferente do ato comunicativo da pena, porque se a pena representa uma censura, na sanção premial ela significa estimulo ao cumprimento da norma e tem uma manifesta função de prevenção geral positiva — (pra quem acredita nela). É que o atuar comunicativo na sanção penal negociada é diferente da pena porque na verdade ela representa para o seu destinatário um compromisso voluntário e futuro de fidelidade ao direito.

Há sanção penal sem culpabilidade?
A pena, portanto, é a imposição de um mal, em decorrência da prática de um ato ilícito específico (crime ou contravenção), determinada por uma sentença condenatória transitada em julgado. Sua incidência, como sanção, representa um juízo de desvalor feito por intermédio de devido processo legal e tem como pressuposto necessário um juízo de culpabilidade.

E talvez um dos princípios mais arraigados de um Estado de Direito é que não há pena sem culpabilidade. Caso se entenda que a sanção premial é uma espécie de subordinada pena, terminamos numa aporia: não há dúvidas que é possível estabelecer sanções penais negociadas sem culpabilidade (o que é mais evidente em transações penais e acordos de não persecução penal). Caso sanções premiais sejam subespécie de pena, teríamos que afirmar que há pena sem culpabilidade, o que vulneraria os princípios nulla poena sine culpa  e nulla culpa sine judicio. 

Se mantivermos íntegro o princípio de que não pode haver pena sem culpabilidade, e entendermos a sanção penal negociada como espécie de pena, teríamos que admitir que não há sanção penal negocidada sem culpabilidade. Se a relação é de espécie-gênero, os modelos pelos quais se negocia sanções seriam todos inconstitucionais, pois não passam pelo exame sobre a culpabilidade.

Assim, para se entender uma sanção penal negociada como uma espécie de pena, ela precisaria passar pela barreira — e aqui parece intransponível — da existência de pena negociada sem culpabilidade. Mas aqui poderia ser feito um aparte: em acordos de colaboração premiada, a sanção penal negociada é submetida ao crivo do Poder Judiciário e à formação de culpa num processo judicial, e poderia, neste aspecto, atender à premissa de que só há pena sem culpabilidade.

A questão é que, se tratarmos de sanções penais negociadas como categoria dogmática, para que se preserve o caráter sistemático de um sistema penal, é preciso conferir unidade e ordenação a tais institutos, para que o tratamento normativo das sanções negociadas não subverta os princípios e os fins do Direito Penal[9].

Não se pode entender que alguns tipos de sanção penal negociada sejam espécie de pena e outras sejam categorias distintas de sanção penal, pois assim seria necessário recorrer a subterfúgios argumentativos, como a criação de sanções penais negociadas sui generis, ou o já conhecido recurso de se entender sanções penais negociadas lato sensu  e stricto sensu.

Assim, examinando penas negociadas como categoria dogmática, que demandam tratamento uniforme — seja decorrente de transação penal, acordo de não persecução penal ou acordo de colaboração premiada – conclui-se que sanções penais negociadas não são pena: 1) Porque o elemento empírico/instrumental (mal imposto) decorrente da sanção penal negociada é menos grave do que aquele relativo à pena; 2) Porque o elemento comunicativo/simbólico é diferente, já que na sanção penal negociada, para além da desaprovação de um a conduta, representa um compromisso de fidelidade ao Direito. 3) Porque a pena pressupões culpabilidade, e há sanções penais negociadas sem culpabilidade.


[1] WUNDERLICH, Alexandre, Sanção premial diferenciada" após o pacote "anticrime". Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jan-09/wunderlich-sancao-premial-diferenciada-pacote-anticrime. Acesso em 30/06/2020

[2] GRECO, Luis. Opõe-se o princípio de culpabilidade à penalização de pessoas jurídicas? – Reflexões sobre a conexão entre pena e culpabilidade. In. Greco, Luis. As razões do Direito penal: quatro estudos. São Paulo, Marcial Pons, 2019, p. 70. 

[3] FEINBERG, Joel. The expressive function of punishment. The Monist. Chicago, v. 49, 3. ed., p. 397-423, jul. 1965, p. 98

[4] FERRAJOLI. Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 257

[5] Atualmente, há uma tendência de se prescindir da ideia de reprovação como elemento central da culpabilidade, que passa a ser relacionada com uma função social preventiva, comunicativa, ou com a finalidade de proteção de bens ou interesses juridicamente relevantes. (MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. O novo conceito material de culpabilidade: o fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana. São Paulo, Tirant lo Blanch, 2019)

[6]  GUZMAN DALBORA, José Luis, Las medidas de seguridad. Distinción y relaciones entre penas y medidas de seguridad. In: PRADO (org) Direito Penal Contemporâneo: Estudos em homenagem ao professor Cerezo Mir. São Paulo, RT, 2007, p. 81  

[7] SPOSATO, Karyna Batista. O Direito Penal Juvenil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p.133

[8] PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada – Legitimidade e Procedimento – Aspectos Controvertidos do Instituto da Colaboração Premiada de Coautor de Delitos como Instrumento de Enfrentamento do Crime Organizado. 3ª Edição. Curitiba: Juruá, 2016, p. 31.

[9] De Lorenzi, Felipe da Costa, Pena criminal, sanção premial e a necessária legalidade dos benefícios da colaboração premiada: aportes para uma teoria geral da justiça penal negociada. Revista de Estudos Criminais, v. 19, n. 79, 2020, p. 160

Autores

  • é advogado sócio do escritório Sebastian Mello, Marambaia e Lins Advogados. Professor de Direito Penal da Graduação e Pós-Graduação (mestrado e doutorado) da UFBA (Universidade Federal da bahia). Mestre e Doutor em Direito pela UFBA.

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