Opinião

A Itália e a reforma penal da tutela dos bens culturais

Autores

  • Geo Magri

    é árbitro da Court of Arbitration for Art (Cafa) docente da Universidade Luigi Bocconi (Milão) e da Universitá degli Studi dell'Insubria (Como) —ambas na Itália— advogado doutor em Direito pela Universidade de Turim membro do Comitê Científico da coleção ProgettArte (série editorial voltada para o planejamento e organização cultural) e membro do comitê científico da Associazione Nazionale Artisti della Lirica (Assolirica) e da Deutsch-Italienische Juristenvereinigung da Sociedade Italiana de Direito e Literatura e da Associação Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française.

  • Marcílio Franca

    é membro do Comitê Jurídico da International Art Market Studies Association árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam Holanda) da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul docente da Universidade Federal da Paraíba ex-professor visitante das faculdades de Direito das Universidades de Pisa Turim e Ghent pós-doutor em Direito no Instituto Universitário Europeu (Florença Itália) e procurador-chefe da força-tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba.

25 de março de 2022, 6h43

Por meio da Lei nº 6, de 21 de janeiro de 2022, a república italiana ratificou a Convenção de Nicósia, do Conselho da Europa, sobre crimes contra o patrimônio cultural. A convenção, assinada em 19 de maio de 2017, visa prevenir e combater o tráfico ilícito e a destruição de bens culturais e, por via reflexa, o financiamento do terrorismo e do crime organizado, exortando os Estados-partes a criminalizar algumas condutas, como o roubo, a escavação ilícita, a importação ilegal, a falsificação de documentos, entre outras.

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Na sequência, o parlamento da Itália, em cumprimento à convenção, aprovou em a Lei nº 22, de 9 de março de 2022, que realiza uma profunda reforma na estrutura da tutela penal dos bens culturais, prevê a criação de novos tipos penais para além daqueles indicados na Convenção de Nicósia, e inclui um tendencial endurecimento do tratamento sancionador. A norma acaba de ser publicada na Gazzetta Ufficiale nº 68, de 22 de março de 2022 e seu artigo 7 prevê entrada em vigor imediata. Uma vez que estão em discussão no Congresso Nacional brasileiro alguns projetos de lei que cuidam do reforço da proteção do patrimônio cultural, quem sabe um exercício de reflexão sobre o Direito Comparado pode ser útil aos legisladores de Brasília.

Atualmente, a proteção penal do patrimônio cultural na Itália está dividida entre o Código dos Bens Culturais e da Paisagem, com a maior parte dos dispositivos, e o Código Penal, com alguns poucos tipos apenas. A reforma legislativa tem a pretensão de racionalizar essa tutela penal, deslocando-a do Código dos Bens Culturais e da Paisagem para o Código Penal, que passará a abrigar um novo título dedicado aos crimes contra o patrimônio cultural (Titolo VIII-bis Dei Delitti Contro il Patrimonio Culturale).

O novo título contém os seguintes tipos penais, muitos dos quais inexistentes no Brasil: Art. 518-bis. Furto di beni culturali; Art. 518-ter. Appropriazione indebita di beni culturali; Art. 518-quater. Ricettazione di beni culturali; Art. 518-quinquies. Impiego di beni culturali provenienti da delitto; Art. 518-sexies. Riciclaggio di beni culturali; Art. 518-septies. Autoriciclaggio di beni culturali; Art. 518-octies. Falsificazione in scrittura privata relativa a beni culturali; Art. 518-novies. Violazioni in materia di alienazione di beni culturali; Art. 518-decies. Importazione illecita di beni culturali; Art. 518-undecies. Uscita o esportazione illecite di beni culturali; Art. 518-duodecies. Distruzione, dispersione, deterioramento, deturpamento, imbrattamento e uso illecito di beni culturali o paesaggistici; Art. 518-terdecies. Devastazione e saccheggio di beni culturali e paesaggistici; e, por fim, o Art. 518-quaterdecies. Contraffazione di opere d’arte. Em seguida, há dispositivos sobre a exclusão da punibilidade, circunstâncias agravantes, confisco e extraterritorialidade.

A nova lei italiana não apenas prevê o aumento das penas em vigor para alguns crimes (receptação, apropriação indébita de bem cultural, lavagem de bem cultural, dano de bem cultural e autolavagem de bens culturais), como também introduz sérios agravantes na eventualidade de um crime comum ter como objeto um bem cultural — tudo isso concretizando os princípios constitucionais da proteção e valorização do patrimônio cultural.

A reforma, além do mais, tipifica as condutas de uso ilegal, importação e exportação de bens culturais, posse ilegal de bens culturais e sua falsificação. A Legge torna os crimes de roubo de bem cultural, destruição de bem cultural, dano de bem cultural e desfiguração de bens culturais ou paisagísticos tipos penais autônomos e quem os comete corre agora o risco de prisão por até 3 anos, além de multa de até dez mil euros. A legislação aprovada também introduz sanções contra falsificadores, autores de falsificações e aqueles que favorecem o comércio de obras falsificadas.

No caso de crimes contra o patrimônio cultural serem cometidos em benefício de uma pessoa jurídica, a nova lei prevê ainda a aplicação ao ente das sanções administrativas, pecuniárias e inabilitantes previstas no Decreto Legislativo nº 231/2001, que disciplina a responsabilidade administrativa das pessoas jurídicas.

Na Itália, já há algum tempo, esperava-se um aumento das penalidades por saque, roubo e vandalismo de bens culturais. A legislação agora aprovada prescreve até dezesseis anos de prisão para quem devastar e saquear museus, arquivos, sítios arqueológicos e monumentos, mas também um bem paisagístico. Há ainda penas mais severas para quem rouba ou possui ilegalmente um objeto de arte, para os traficantes de bens culturais e para os ladrões de sepulturas terrestres e marítimas, que infelizmente são uma praga para o patrimônio cultural italiano. Numa outra seção, a  Lei n. 22/2022 prevê ainda pena de prisão de até dois anos e multa de quinhentos a dois mil euros para quem usar detector de metais em parque ou em área de interesse arqueológico (Art. 707-bis. Possesso ingiustificato di strumenti per il sondaggio del terreno o di apparecchiature per la rilevazione dei metalli).

Sem esquecer dos aspectos processuais, a norma também fortalece as ferramentas disponíveis para as autoridades de investigação, introduzindo a possibilidade de escutas telefônicas e atividades secretas de investigação no âmbito de alguns dos crimes do novo Titolo VIII-bis do Código Penal italiano. Também prevê prisão em flagrante e julgamento direto em caso de crimes contra o patrimônio cultural. A disposição visa, evidentemente, coibir e combater o tráfico de arte que, como é sabido, é uma das principais fontes de financiamento do terrorismo e do crime organizado. Não foi à toa que a norma recebeu elogios de membros da Comissão Bicameral Antimáfia do Parlamento Italiano.

Em suma, as novas regras prescrevem sanções que afetam profundamente o mercado de artes e antiguidades e visam coibir a circulação ilegal de bens culturais, ao permitir que o Estado utilize sofisticadas ferramentas de investigação da legislação antimáfia para garantir o confisco de bens ilícitos e proibir que empresas realizem atividades ilegais em detrimento do patrimônio cultural peninsular.

O Ministro da Cultura da Itália, Dario Franceschini saudou com entusiasmo a aprovação da nova legislação, afirmando que aquele era um "dia histórico" para a cultura italiana, já que a reforma não representa apenas um grande avanço na proteção do patrimônio cultural e na luta contra a o tráfico ilícito de obras de arte, mas também reafirma a centralidade da cultura nas escolhas políticas da Bota.

A reforma faz jus à memória e ao trabalho de Paolo Giorgio Ferri, o mítico procurador da república italiano, falecido em 14 de junho de 2020, que, com poucos recursos, muita coragem e uma legislação penal muito aquém da agora publicada, investigou o "Grande Saque" de antiguidades que ocorreu na Itália, a partir de 1970. Em quase vinte anos de investigação, com dois mil e quinhentos envolvidos, Ferri apurou que cerca de um milhão e meio de peças escavadas ilegalmente teriam ido parar em instituições prestigiosas como o Museu de Belas Artes de Boston, o Museu de Arte de Cleveland, o Museu J. Paul Getty, o Metropolitan de Nova York, o Museu de Arte da Universidade de Princeton e a Sotheby’s, graças ao poder e ao prestígio de marchands, antiquários e curadores inescrupulosos — alguns dos quais ele levou ao banco dos réus em midiáticos julgamentos. Mesmo depois de anos de complexas investigações internacionais, Ferri dizia que só conhecia 30% do que aconteceu e as poucas devoluções de bens culturais que a Itália conseguira significavam cerca de 3% do que havia sido retirado ilicitamente do país. A reforma pode mudar esse panorama.

Espera-se, sobretudo, que o reforço do sistema sancionatório de proteção do patrimônio cultural contribua para uma maior sensibilização dos cidadãos — de dentro e de fora da Itália — para a centralidade da cultura entendida como bem comum da humanidade. A aprovação de leis como essa é uma arma eficaz inclusive contra aqueles que, aproveitando-se de guerras e conflitos, pretendem saquear, danificar ou destruir o patrimônio cultural de Estados, povos e nações.

Autores

  • é árbitro da Court of Arbitration for Art (CAfA), docente da Universidade Luigi Bocconi (Milão) e da Universitá degli Studi dell'Insubria (Como), advogado, doutor em Direito pela Universidade de Turim, membro do Comitê Científico da coleção ProgettArte, série editorial voltada para o planejamento e organização cultural (editora Gioacchino Onorati - Aracne), membro do Comitê Científico da Associazione Nazionale Artisti della Lirica (Assolirica) e da Deutsch-Italienische Juristenvereinigung; da Sociedade Italiana de Direito e Literatura; da Associação Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française.

  • é árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam, Holanda), da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO, Genebra, Suíça) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul (Assunção, Paraguai), professor de Direito da Arte no Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), professor visitante do Departamento de Direito da Universidade de Turim, Itália (2017-2020), pós-doutorado em Direito no Instituto Universitário Europeu (EUI, Florença, Itália), presidente do Conselho Superior do ramo Brasileiro da International Law Association e membro do Comitê Jurídico da The Art Market Studies Association.

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