Opinião

Boa-fé objetiva: princípio de interpretação do comportamento das partes

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24 de março de 2022, 6h31

Muito já se discutiu sobre a mudança da boa-fé subjetiva para a objetiva. Da prevalência do dever de não agir com intenção de prejudicar ou tirar proveito (sem má-fé) para o dever de se comportar de forma correta com relação ao outro (não é dado a alguém tirar proveito da ignorância de outrem, esconder informações que alterariam o resultado do negócio jurídico, deixar de informar fatos relevantes e as mudanças nas circunstâncias e mesmo no interesse, entre outros comportamentos do gênero), a jurisprudência e a doutrina tiveram papel fundamental, levando ao desenvolvimento de regras de conduta inseridas em todas as áreas do direito.

No Código Civil a previsão da boa-fé objetiva, com regras para a sua realização, apresenta-se nos artigos 113 (inclusive com a obrigação de o intérprete verificar o comportamento das partes e privilegiar quem não redigiu as cláusulas do contrato); 187 (define como ilícito o ato que excede os limites impostos pela boa-fé) e 422 (obrigação de executar o contrato e agir posteriormente à sua conclusão conforme à boa-fé). Repare-se que, enquanto os artigos 187 e 422 são direcionados às partes e, consequentemente, indiretamente aos intérpretes, o 113 é ordem dada diretamente ao aplicador (mesmo árbitro ou magistrado).

O Código de Processo Civil de 2015 torna explícita a obrigação de boa-fé nos seguintes artigos: 5º e 6º (obrigação geral de boa-fé e de cooperação entre as partes) e 77 a 81 (deveres de honestidade e respeito, hipóteses de litigância de má-fé e suas consequências). Os artigos 5º, 6º e 77 a 79 são dirigidos primariamente aos litigantes (com o controle feito pelo juiz da causa) e os demais são destinados aos magistrados.

Todavia, o princípio da boa-fé tem sido tratado como modo de o juiz avaliar por si mesmo como deveria ser o resultado da relação jurídica, sem levar à mudança de mentalidade dos magistrados, a mesma esperada com relação aos sujeitos. No âmbito processual, a boa-fé tem sido usada para garantir respeito (mas, às vezes, submissão) ao judiciário, dando-se pouca relevância para o comportamento entre as partes. Assim, em vez de ser usado para interpretar a situação fática e processual e as responsabilidades das partes envolvidas, o princípio serve como ferramenta para juiz da causa decidir como acha adequado e diminuir a resistência dos afetados.

Cabe pensar em exemplo plausível. Duas partes realizam contrato para a construção e venda de imóveis em terreno particular. Um lado quer dar uso econômico à propriedade herdada, valiosa, mas que, parada, se torna insustentável, por causa da incidência de tributos, taxas e valor de manutenção. O outro tem a técnica necessária para o projeto e o capital para investir, mas não tinha acesso a terreno que gerasse o retorno desejado. Há, de pronto, o problema da assimetria de informação, pois os proprietários não dominam as condições técnicas e de mercado para o empreendimento. Espera-se que a contratada lhes informe adequadamente as condições e o risco do negócio e as possíveis mudanças de interesse.

No entanto, usando seu conhecimento, a contratada adia o empreendimento diversas vezes ao longo de anos. Comunica os contratantes que o momento não é o mais propício, que aguarda mudança nas condições de mercado e busca parceiros para baratear o empreendimento. Chega a alterar o terreno de modo a mantê-lo apto tanto ao negócio quanto à intermediação da venda. Mas o tempo passa, o prazo contratual se esvai, o mercado nunca chega às condições ideais e as propostas de parceria nunca são aceitas. A contratante fica sem poder usar a propriedade e sem o empreendimento, ainda que os custos de manutenção (cuidados e tributos) estejam a cargo da contratada. Esta, por sua vez, conseguiu o que queria: pagando os tributos e fazendo a manutenção (o que não compromete sua atividade ou seus ganhos com outros negócios), mantém o terreno na sua esfera de controle, podendo fazer a corretagem ou cumprir o contrato, se as condições de mercado estiverem a seu gosto.

Insatisfeitos com o inadimplemento, os contratantes procuram diversas vezes a contratada para renegociarem condições do contrato e prazos, interessados que estão no que fora avençado. Recebem sempre as mesmas respostas: o mercado não está bom, as propostas recebidas não foram condignas, mas estão atentos para, quando for a hora, repactuarem. Cansados de tentarem acordo após anos, os proprietários rompem as relações. Confortavelmente, a empresa inadimplente diz que, então, deve ser indenizada, em valor impraticável pelos contratantes.

Surge a questão da boa-fé: a empresa não agiu de má-fé, no sentido de tirar proveito indevido ou tentar prejudicar a outra parte. Porém, não revelou suas verdadeiras intenções e interesses e criou situação em que o risco do contrato se tornou exclusivo para os contratantes, pois ou começa a adimplir o contrato quando bem entender ou exige indenização se a outra parte não quiser manter o vínculo. O comportamento da contratada se enquadra na lógica da boa-fé subjetiva. Mas é evidente que viola a boa-fé objetiva.

Todavia, a real surpresa pode vir com o processo judicial e a incerteza sobre como o juiz utilizará a cláusula aberta da boa-fé objetiva. Se tratá-la com o conteúdo que levou à sua positivação no Código Civil, avaliará o comportamento das duas partes e distribuirá os prejuízos pelo risco do negócio equitativamente, com maior responsabilidade pela empresa, exatamente pelo seu domínio da situação, por não ter se esforçado para cumprir o contrato, por não ter sido clara em suas intenções e por ter agido de forma a dar impressão de querer negociar efetivamente novas condições para o contrato.

Porém, se não tiver incorporado a mudança de mentalidade implicada pelo princípio da boa-fé objetiva, a tendência do juiz é verificar apenas a ausência de má-fé expressa da contratada e resolver o problema em perdas e danos, sem se importar com a posição da contratante. E isso acontecerá recorrendo-se a conceitos e definições referentes ao princípio, mas fora de seus contextos e das implicações que condicionam a atividade cognoscitiva. No exemplo dado, o juiz pode construir argumento dizendo que a boa-fé objetiva obriga a considerar o comportamento das partes e, então, o comportamento dos contratantes deu a expectativa à contratada de que o negócio não seria desfeito, mantendo os efeitos do contrato mesmo que apenas uma das partes tenha adimplido suas obrigações.

O argumento é plausível, porque estruturalmente compatível com as normas jurídicas e com aspecto importante do princípio a ser aplicado. Mas ele é unilateral e interessado, porque construído para mascarar a decisão que pretende manter a mentalidade ultrapassada, tratando o comportamento das partes meramente na sua intenção de causar dano ou responsabilidade por algum prejuízo mensurável ou presumível (dolo ou culpa).

Caso a decisão seja a dada na hipótese, ela é equivocada, não porque não seja defensável (raríssimas são as situações em que não é possível encontrar algum conteúdo jurídico que forme premissa para se atingir qualquer conclusão já subjetivamente desejada). A decisão está errada porque usa as características da boa-fé objetiva para retornar à lógica da boa-fé subjetiva. Observe-se que a decisão hipotética consegue usar a boa-fé da contratante em seu prejuízo e a omissão da contratada acabou sendo-lhe benéfica. Ainda que a empresa não tinha tido a intenção de prejudicar ou tirar proveito escuso dos proprietários, ela não agiu como se espera de quem busca realmente ser claro, informar as intenções e realizar as obrigações avençadas.

Além disso, todo o risco do empreendimento ficou com os contratantes, a parte mais frágil (não domina as condições técnicas e de mercado do negócio jurídico). Com o fim da relação, tem que ser capaz de restabelecer o status quo ante, sem que as demais condições tenham sido apreciadas e sem que haja o estabelecimento do grau de responsabilidade da parte inadimplente. Esse resultado pela indenização adequada em razão do fato de as partes não terem pura e simplesmente agido de má-fé era típica da aplicação da lógica ultrapassada da boa-fé subjetiva aos negócios jurídicos: não houve má-fé, o negócio resolve-se em perdas e danos.

O desfecho é claramente contrário ao desejado pela ordem jurídica, ainda que com verniz de embasamento no direito. Os contratantes ficam em situação paradoxal: se desmancham o negócio, não são capazes de pagar a indenização; se permanecem, não sabem se, quando e em que condições o contrato será cumprido. Por outro lado, a contratada, se vê o contrato rompido, é indenizada, nada perdendo; se continua como parte no contrato, realiza o objeto apenas nas condições que lhe interessa. Ora, a boa-fé objetiva veio exatamente para acabar com situações como essa.

Ao aplicar os princípios, o intérprete tem a obrigação de buscar a sua lógica (sua gramática, diriam alguns filósofos), não ver neles o que gostaria de realizar. Os conteúdos dos princípios vinculam os magistrados, não são os magistrados que determinam os conteúdos dos princípios (como se fossem espaços vazios a serem preenchidos pelas decisões judiciais). No caso da boa-fé objetiva, ela não é princípio que dá ao juiz o poder de buscar o que acha ético, melhor ou pior no comportamento dos sujeitos ou sua visão sobre o direito, mas a obrigação de que as partes se comportem de forma honesta e transparente para que a relação jurídica se mantenha equânime, com cada um arcando proporcionalmente pelos resultados derivados.

Autores

  • é sócio da Martins Costa & Simon Advogados, doutor em Direito, Estado e Constituição (FD/UnB), professor substituto da FD/UnB e professor do UniCeub e da EDB/IDP (DF).

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