Opinião

Smart contracts são desafiados pelo sistema jurídico

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24 de março de 2022, 13h23

O que a ciência do direito tem experenciado nos últimos anos deve ter deixado os juristas mais tradicionais e desavisados às voltas. A zona de intersecção entre o direito e a tecnologia tem ficado cada vez mais larga. Nessa intersecção, não são apenas as relações com os dados que mudaram; a era digital também atinge as relações contratuais. Tendo a tecnologia à disposição, numa sociedade que massifica relações jurídicas, os contratos não ficariam de fora desse processo.

A ideação dos smart contracts (contratos inteligentes) foi criada por Nick Szabo, em 1994, sendo possível encontrar os escritos de sua criatura a partir da publicação do artigo "Smart Contracts Formalizing and Securing Relationship" [1]. Para ilustrar sua ideia, o autor traça um paralelo entre os contratos inteligentes e uma máquina de venda automática (vending machines). Em verdade, o protótipo de contrato que permitiu criar vai muito além da logística de uma máquina de venda, permitindo que tenham por objeto qualquer bem valioso e controlado por meio digital.

Os contratos inteligentes podem ser conceituados como um programa codificado para reproduzir a lógica de acordo em um negócio, gerenciando ativos digitais em um ambiente seguro, como um blockchain. São, em suma, um meio de codificar termos de acordo, trazido para algoritmos num software.

E já que foi mencionado, o blockchain tem sido alvo de interesse e de investimentos cada vez mais crescentes, tendo ganhado ainda mais notoriedade durante a pandemia do Covid-19, diante da gestão de dados de saúde de absoluta importância, e recentemente na guerra entre a Rússia e a Ucrânia, tendo sido adotado como um meio para envio e troca de ativos financeiros. Essa tecnologia acaba sendo o melhor exemplo para esse "ambiente seguro" porque, embora tenha sido desenvolvida depois da ideia de Nick Szabo, sediou o primeiro protocolo de smart contracts [2].

O blockchain (cadeia de blocos) foi inventado em 2008, sendo caracterizado por ser um sistema de armazenamento de dados administrados de maneira descentralizada (distributed ledger), por meio da qual, sem intermediários, é possível gerenciar com eficiência ativos digitais. Uma informação lá depositada perpassa toda a rede de computadores, fator que a faz transparente e verificável. A partir do consenso, o blockchain permite que, uma vez autenticadas as informações pelos mineradores, seja incrementado um novo bloco na cadeia e esse bloco será vitalício, imutável e verificável. Essa configuração permite que, atendidas condições pré-determinadas, seja possível automatizar o cumprimento do acordo, com maior segurança e sem a necessidade de acionar terceiros.

Os smarts contracts, uma vez criados e operados num sistema como esse, seriam identificados como instrumento de acordo de custo inferior, por desprezarem a necessidade de advogado para ser realizado e executado; mais seguro, por se dar numa plataforma que impede alterações unilaterais fraudulentas (tamper proof) e a inadimplência, fazendo irrelevante que os pactuantes se conheçam e confiem um no outro (trustless); independente e autoexecutório (self-enforcement), por desprezarem o acionamento da Justiça para que o combinado seja executado; veloz, por usar um código de software que automatiza tarefas que seriam manuais e que poderiam ser travadas pela distância espacial entre os contratantes. Da forma como foram pensados, podem ser operacionalizados em blockchains públicos ou privados, sendo notório o grande desafio que é criar um blockchain público seguro, por demandar muita energia e possuir uma ampla superfície para ataques.

Um ponto que é de extrema importância destacar é que os smart contracts podem ou não traduzir uma espécie análoga de contrato legal. Eles foram criados como um caminho para reduzir a dependência à lei (ato normativo produzido pelo Estado) como instrumento para remediar conflitos. Diante da globalização e do aumento de transações entre sujeitos de países diversos, a utilização de leis domésticas como base para a construção de pactos acaba sendo um problema para realização de muitos negócios. As cláusulas estabelecidas num smart contract, por sua vez, são exigíveis pelos pactuantes que estejam em qualquer lugar do mundo.

Isso impõe que, em sua essência, a ideação dos contratos inteligentes não pretendia que eles fossem juridicamente vinculativos. Da forma como foram pensados, propiciam uma autonomia entre os pactuantes que desborda os limites da autonomia da vontade e se reaproxima da autonomia privada, cunhada sob forte influência do ideal liberal e do individualismo.

Essa distinção impõe que outras diferenciações sejam feitas. Os contratos inteligentes não representam uma transcrição dos contratos tradicionais, não os substituem. Há objetos de contratos tradicionais que sequer podem ser objeto de um contrato inteligente. Uma relação contratual que tenha por objeto uma obrigação de fazer personalíssima não pode, a priori, ser executado em blockchain, salvo se resolvido em perdas e danos. Mencione-se ainda que os contratos inteligentes que lidam com ativos reais  não apenas os digitais  ainda estão em estágios iniciais.

As cláusulas de um contrato inteligente são construídas com códigos em que "se" algo acontece, "então" aquela deve ser a consequência. Essa logística é denominada de dry code. As cláusulas são construídas de maneira rígida, lógica e previsível. Cada condição estabelecida aumenta a complexidade e, por conseguinte, a superfície de ataque ao código. Por outro lado, quanto menor o número de cláusulas, mais será necessário um mediador humano para sanar as lacunas. O que foi formulado para ser um facilitador de negócios, mais métrico e menos burocrático, pode se convolar num problema que dispenda maiores aportes econômicos e até a atuação da jurisdição.

Por trás deste escrito, há uma cética na possibilidade de traduzir a linguagem jurídica para a computacional. A linguagem é veículo de expressão das ciências e cada uma possui a sua. Com isso não se nega a comunicabilidade entre as linguagens, mas se destaca que os sotaques podem ser tão fortes que impeçam algumas pronúncias  se me permitem a analogia . A linguagem jurídica hodierna exige em muito a dialeticidade entre interlocutores e os computadores não têm essa capacidade. Eis uma importante questão: como traduzir a complexidade da cláusula rebus sic stantibus, tão formidável às relações contratuais, para a linguagem computacional?

Uma experiência contratual com base em dry code pode produzir resultados problemáticos. Acaso o programador se equivoque na elaboração das cláusulas ou não disponha um código para uma hipótese que depois se constatou necessária, a reversão da negligência demandaria uma atuação acordada entre as partes para reverter o quadro, o que é denominado de assinatura múltipla (multisig[3]. Acaso não seja obtido esse acordo, seria necessário considerar os atos legislativos ou até acionar diretamente a jurisdição, cenário que exclui alguns dos benefícios apontados na criação dos smart contracts. A ausência de flexibilidade também é um problema porque, por vezes, a ambiguidade das cláusulas é justamente o caminho necessário para que a execução do contrato seja possível.

Paralelo a isso, imaginar a possibilidade de executar inclusive contratos elaborados ao alvedrio da lei imporia negar a sua natureza de negócio jurídico, hipótese falha por se tratar de espécie de fato jurídico e que, por isso, trata de um acontecimento da vida que tem relevância para o Direito. Se tem relevância, não pode ficar à margem dele.

Esse panorama impõe a conclusão de que, no sistema jurídico brasileiro, os smart contracts só devem ser utilizados de maneira associada à lei. Inclusive, trazendo cláusulas que permitam a tomada de saídas para além da automação, cláusulas denominadas de wet code. Isso seria implementado através da disposição de parte (da cláusula ou do contrato) redigida em linguagem natural e outra parte em linguagem computacional, criando uma espécie de contrato híbrido.

A questão é que, nesse cenário, convola-se numa via menos econômica e menos rápida, podendo estar adstrito a uma legislação doméstica ou a uma jurisdição, fazendo cair por terra muitas das características que tornam os contratos inteligentes uma opção interessante.

Para definir os contratos que utilizam a associação da tradição e da tecnologia aqui mencionada, tem-se feito referência aos smart legal contracts, alternativa que utiliza os contratos inteligentes e as bases dos contratos tradicionais de maneira complementar. Com isso, tem-se criado contratos inteligentes com base na lógica jurídica e não apenas na lógica negocial [4]. Também têm sido criadas alternativas para gerenciar eventuais litígios, existindo plataformas para realização de arbitragem que cubra o ciclo de vida da transação comercial, da criação do contrato arbitral até a dissolução da disputa (como exemplo, cite-se kleros[5].

É inimaginável que agentes possam contratar ao alvedrio do Direito e de suas significantes, como a linguagem. Os contratos são instrumentos de comunicação de interesses. Experenciar uma categoria de contratos que não abram espaço para a comunicação fustiga a sustentabilidade do próprio negócio.


[1] É possível encontrar o texto do artigo neste link: http://myinstantid.com/szabo.pdf. Acesso em 09 mar. 2022.

[2] O Ethereum é a plataforma de blockchain mais popular para contratos inteligentes até o momento.

[3] Um tema interessante a ser discutido é a responsabilidade do programador nessas hipóteses.

[4] A título de exemplo de mecanismos de realização dessa ideia, cite-se a Plataforma Jur, que permite adquirir modelos de contratos ou criar smart legal contracts A plataforma não utiliza a tecnologia blockchain, mas a vChain.

[5] É possível conhecer uma plataforma que realiza arbitragem no seguinte link: https://kleros.io/. Acesso em 11 de fev. 2022.

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