Pena de multa e a pessoa assistida pela Defensoria Pública
22 de março de 2022, 8h00
Apesar de, nos termos do artigo 1º da Lei de Execuções Penais, a execução de pena consistir em fase da persecução penal na qual são efetivadas as disposições da sentença condenatória, proporcionando "condições para a harmônica integração social do condenado e do internado", na prática, o que se observa, como regra, é um espaço de violação generalizada de direitos fundamentais da pessoa condenada.
Nessa testilha, a jurisprudência dos tribunais superiores em alguns temas ainda é frágil na tarefa de limitar a força do Estado contra as pessoas em cumprimento de pena, violando princípios caros como a dignidade e a legalidade.
Com efeito, um dos imbróglios envolvendo o reconhecimento de "benefícios" [1] no âmbito da execução penal diz respeito à necessidade de adimplemento da pena de multa a fim de que o Estado-juiz reconheça extinta a punibilidade do agente.
E essa discussão ganha uma nova dimensão ao se analisar a situação das pessoas cumprindo pena que são assistidas pela Defensoria Pública.
Explica-se.
Prevaleceu no âmbito do STJ (Tema Repetitivo 931) o entendimento de que na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária deve obstar o reconhecimento da extinção da punibilidade.
Esse entendimento, contudo, foi revisado, de modo que a jurisprudência do STJ passou a entender que as pessoas pobres e miseráveis impossibilitadas de pagar a sanção pecuniária não tenham obstada a extinção da punibilidade.
Ao reapreciar o Tema Repetitivo 931, o STJ firmou a seguinte tese: "Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade".
Conforme bem pontou o Rogério Schietti Cruz, relator no REsp 1.785.383/SP, que alterou a tese firmada no Tema Repetitivo 931 "[…], ineludível é concluir que o condicionamento da extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa transmuda-se em punição hábil tanto a acentuar a já agravada situação de penúria e indigência dos apenados hipossuficientes, quanto a sobreonerar pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal proteção do núcleo familiar (artigo 226 da Carta de 1988)" (REsp 1.785.383/SP, relator: ministro Rogério Schietti Cruz. J. e, 24/11/2021).
Assim, o atual parâmetro sobre o tema é o seguinte: regra: o inadimplemento da pena de multa obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade do agente; exceção: o inadimplemento da pena de multa não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade do agente, quando este comprovar a impossibilidade de pagamento da multa.
O que se sustenta nesse artigo é que, em se tratando de pessoa hipossuficiente assistida pela Defensoria Pública, deve-se dispensar a comprovação de impossibilidade de pagamento da pena de multa, incidindo presunção nesse sentido.
Essa linha de entendimento, inclusive, é compatível com as 100 Regras de Brasília, que estabelecem que a privação da liberdade, ordenada por autoridade pública competente, pode gerar dificuldades para exercer com plenitude perante o sistema de Justiça os restantes direitos dos quais é titular a pessoa privada da liberdade.
Ou seja, há vulnerabilidade apenas pelo fato de a pessoa estar com a liberdade cerceada. Além disso, estando assistida pela Defensoria Pública, resta evidente que a vulnerabilidade é multidimensional, vez que atinge, também, aspectos econômicos (o que torna evidente a impossibilidade de adimplemento da pena de multa).
No que se refere à presunção de hipossuficiência da pessoa hipossuficiente assistida pela Defensoria Pública, o TJ-RO decidiu, em agravo em execução de relatoria do desembargador José Jorge Ribeiro da Luz, interposto pela DPE-RO: "Agravo de execução de pena. Extinção da punibilidade. Condenação concomitante. Pena de multa. Não adimplida. Distinguishing. Apenado notoriamente hipossuficiente. Agravo provido. 1. Na hipótese de condenação concomitante, a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade. 2. A circunstância do não adimplemento da multa pelo apenado notoriamente hipossuficiente, em que o valor foi inscrito na dívida pública, não pode impedir o reconhecimento da extinção de sua punibilidade. 3. Agravo que se dá provimento" (TJ-RO — EP: 08095705620218220000 RO 0809570-56.2021.822.0000, relator: desembargador José Jorge Ribeiro da Luz. Data de Julgamento: 25/11/2021).
A decisão referida foi acertada.
Isso porque, no caso de sentenciado pobre assistido pela Defensoria Pública, tal circunstância faz presumir a situação de hipossuficiência a autorizar a extinção da punibilidade, hipossuficiência que somente poderá ser afastada pelo Ministério Público. Vale dizer, deve o MP comprovar a inexistência da hipossuficiência econômica, a fim de que seja exigido do condenado o adimplemento da pena de multa como requisito para que se declare a extinção da sua punibilidade.
E não poderia ser diferente: se no CDC que regulamenta relações de consumo é prevista a inversão do ônus da prova em favor da parte vulnerável (artigo 6, VIII); se no CPC que disciplina processos que envolvem direitos disponíveis é permitida a redistribuição do ônus da prova (artigo 373, § 1º); se no caso de pessoa hipossuficiente a impossibilidade de pagamento da multa deve ser presumida; e, por último, se no processo penal o ônus da prova é da acusação (e isso se aplica aqui na execução penal), caberá ao Ministério Público, no caso de condenados miseráveis e assistidos pela Defensoria Pública, não apenas executar a pena de multa perante o juízo de execução penal, mas comprovar a existência de condições financeira por parte do assistido para o pagamento.
Isso porque a existência de recursos financeiros (ou seja a prova da ausência de hipossuficiência econômica) é facilmente materializável, bastando uma consulta aos sistemas à disposição do Ministério Público. De modo diverso, a prova sobre a impossibilidade de pagamento da pena de multa é prova de fato negativo (ausência de recursos financeiros), o que, pela própria logicidade das coisas, é extremamente difícil de ser realizada (afinal, é muito mais fácil comprovar a existência de patrimônio e de vínculo empregatício do que a sua ausência).
Não custa lembrar, ademais, que os precedentes sobre a necessidade de pagamento da pena de multa para a extinção da punibilidade foram construídos em casos de crimes financeiros e do colarinho branco, e não nos casos envolvendo a prática de crimes por pessoas pobres. É imprescindível, portanto, realizar o distinguishing entre a execução das penas de multas dos pobres e hipossuficientes assistidos pela Defensoria Pública (pobres que não pagam porque não podem e nem poderão pagar) daqueles casos de pessoas condenadas por crimes financeiros e de colarinho branco (que podem pagar e que deliberadamente não pagam).
Assim, é indiscutível que, em se tratando de pessoa condenada hipossuficiente, há de ser reconhecida a impossibilidade do pagamento da pena multa, nos termos do tema repetitivo 931 do STJ, a fim de autorizar a extinção da punibilidade, a não ser que o órgão ministerial comprove que o sentenciado não seja pessoa hipossuficiente.
[1] Termo semanticamente equivocado, devendo ser substituído por direitos, na medida em que o conceito de "benefícios" afasta a vinculação do Estado, convencional, constitucional ou legal à materialização desses direitos. Especialmente no âmbito da Execução Penal, o termo "benefícios" (em oposição a "direitos") acaba fragilizando o grau de exigibilidade dos direitos das pessoas cumprindo pena.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!