Tribuna da Defensoria

Pena de multa e a pessoa assistida pela Defensoria Pública

Autores

  • Diego de Azevedo Simão

    é autor do livro "Lei de Execução Penal comentada e anotada" publicado pela editora D'Plácido. Defensor público em Rondônia. Mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Unir. Especialista em direito processual penal. Especialista em Direitos Humanos. Especialista em Direito de Execução Penal. Membro do Ibep (Instituto Brasileiro de Execução Penal). Membro do IDPR (Instituto de Direito Processual de Rondônia). Membro do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

  • Jaime Leônidas Miranda Alves

    é defensor Público do Estado de Rondônia. Ex-defensor público do Amapá mestrando em Direito pela Univali (Universidade do Vale do Itajaí) professor universitário. especialista em Direito Público pela PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e em Direito Constitucional pela Ucam (Universidade Cândido Mendes).

22 de março de 2022, 8h00

Apesar de, nos termos do artigo 1º da Lei de Execuções Penais, a execução de pena consistir em fase da persecução penal na qual são efetivadas as disposições da sentença condenatória, proporcionando "condições para a harmônica integração social do condenado e do internado", na prática, o que se observa, como regra, é um espaço de violação generalizada de direitos fundamentais da pessoa condenada.

Nessa testilha, a jurisprudência dos tribunais superiores em alguns temas ainda é frágil na tarefa de limitar a força do Estado contra as pessoas em cumprimento de pena, violando princípios caros como a dignidade e a legalidade.

Com efeito, um dos imbróglios envolvendo o reconhecimento de "benefícios" [1] no âmbito da execução penal diz respeito à necessidade de adimplemento da pena de multa a fim de que o Estado-juiz reconheça extinta a punibilidade do agente.

E essa discussão ganha uma nova dimensão ao se analisar a situação das pessoas cumprindo pena que são assistidas pela Defensoria Pública.

Explica-se.

Prevaleceu no âmbito do STJ (Tema Repetitivo 931) o entendimento de que na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária deve obstar o reconhecimento da extinção da punibilidade.

Esse entendimento, contudo, foi revisado, de modo que a jurisprudência do STJ passou a entender que as pessoas pobres e miseráveis impossibilitadas de pagar a sanção pecuniária não tenham obstada a extinção da punibilidade.

Ao reapreciar o Tema Repetitivo 931, o STJ firmou a seguinte tese: "Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade".

Conforme bem pontou o Rogério Schietti Cruz, relator no REsp 1.785.383/SP, que alterou a tese firmada no Tema Repetitivo 931 "[…], ineludível é concluir que o condicionamento da extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa transmuda-se em punição hábil tanto a acentuar a já agravada situação de penúria e indigência dos apenados hipossuficientes, quanto a sobreonerar pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal proteção do núcleo familiar (artigo 226 da Carta de 1988)" (REsp 1.785.383/SP, relator: ministro Rogério Schietti Cruz. J. e, 24/11/2021).

Assim, o atual parâmetro sobre o tema é o seguinte: regra: o inadimplemento da pena de multa obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade do agente; exceção: o inadimplemento da pena de multa não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade do agente, quando este comprovar a impossibilidade de pagamento da multa.

O que se sustenta nesse artigo é que, em se tratando de pessoa hipossuficiente assistida pela Defensoria Pública, deve-se dispensar a comprovação de impossibilidade de pagamento da pena de multa, incidindo presunção nesse sentido.

Essa linha de entendimento, inclusive, é compatível com as 100 Regras de Brasília, que estabelecem que a privação da liberdade, ordenada por autoridade pública competente, pode gerar dificuldades para exercer com plenitude perante o sistema de Justiça os restantes direitos dos quais é titular a pessoa privada da liberdade.

Ou seja, há vulnerabilidade apenas pelo fato de a pessoa estar com a liberdade cerceada. Além disso, estando assistida pela Defensoria Pública, resta evidente que a vulnerabilidade é multidimensional, vez que atinge, também, aspectos econômicos (o que torna evidente a impossibilidade de adimplemento da pena de multa).

No que se refere à presunção de hipossuficiência da pessoa hipossuficiente assistida pela Defensoria Pública, o TJ-RO decidiu, em agravo em execução de relatoria do desembargador José Jorge Ribeiro da Luz, interposto pela DPE-RO: "Agravo de execução de pena. Extinção da punibilidade. Condenação concomitante. Pena de multa. Não adimplida. Distinguishing. Apenado notoriamente hipossuficiente. Agravo provido. 1. Na hipótese de condenação concomitante, a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade. 2. A circunstância do não adimplemento da multa pelo apenado notoriamente hipossuficiente, em que o valor foi inscrito na dívida pública, não pode impedir o reconhecimento da extinção de sua punibilidade. 3. Agravo que se dá provimento" (TJ-RO — EP: 08095705620218220000 RO 0809570-56.2021.822.0000, relator: desembargador José Jorge Ribeiro da Luz. Data de Julgamento: 25/11/2021).

A decisão referida foi acertada.

Isso porque, no caso de sentenciado pobre assistido pela Defensoria Pública, tal circunstância faz presumir a situação de hipossuficiência a autorizar a extinção da punibilidade, hipossuficiência que somente poderá ser afastada pelo Ministério Público. Vale dizer, deve o MP comprovar a inexistência da hipossuficiência econômica, a fim de que seja exigido do condenado o adimplemento da pena de multa como requisito para que se declare a extinção da sua punibilidade.

E não poderia ser diferente: se no CDC que regulamenta relações de consumo é prevista a inversão do ônus da prova em favor da parte vulnerável (artigo 6, VIII); se no CPC que disciplina processos que envolvem direitos disponíveis é permitida a redistribuição do ônus da prova (artigo 373, § 1º); se no caso de pessoa hipossuficiente a impossibilidade de pagamento da multa deve ser presumida; e, por último, se no processo penal o ônus da prova é da acusação (e isso se aplica aqui na execução penal), caberá ao Ministério Público, no caso de condenados miseráveis e assistidos pela Defensoria Pública, não apenas executar a pena de multa perante o juízo de execução penal, mas comprovar a existência de condições financeira por parte do assistido para o pagamento.

Isso porque a existência de recursos financeiros (ou seja a prova da ausência de hipossuficiência econômica) é facilmente materializável, bastando uma consulta aos sistemas à disposição do Ministério Público. De modo diverso, a prova sobre a impossibilidade de pagamento da pena de multa é prova de fato negativo (ausência de recursos financeiros), o que, pela própria logicidade das coisas, é extremamente difícil de ser realizada (afinal, é muito mais fácil comprovar a existência de patrimônio e de vínculo empregatício do que a sua ausência).

Não custa lembrar, ademais, que os precedentes sobre a necessidade de pagamento da pena de multa para a extinção da punibilidade foram construídos em casos de crimes financeiros e do colarinho branco, e não nos casos envolvendo a prática de crimes por pessoas pobres. É imprescindível, portanto, realizar o distinguishing entre a execução das penas de multas dos pobres e hipossuficientes assistidos pela Defensoria Pública (pobres que não pagam porque não podem e nem poderão pagar) daqueles casos de pessoas condenadas por crimes financeiros e de colarinho branco (que podem pagar e que deliberadamente não pagam).

Assim, é indiscutível que, em se tratando de pessoa condenada hipossuficiente, há de ser reconhecida a impossibilidade do pagamento da pena multa, nos termos do tema repetitivo 931 do STJ, a fim de autorizar a extinção da punibilidade, a não ser que o órgão ministerial comprove que o sentenciado não seja pessoa hipossuficiente.

 


[1] Termo semanticamente equivocado, devendo ser substituído por direitos, na medida em que o conceito de "benefícios" afasta a vinculação do Estado, convencional, constitucional ou legal à materialização desses direitos. Especialmente no âmbito da Execução Penal, o termo "benefícios" (em oposição a "direitos") acaba fragilizando o grau de exigibilidade dos direitos das pessoas cumprindo pena.

Autores

  • Brave

    é defensor público no estado de Rondônia, mestrando em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Unir, especialista em Direito Processual Penal, especialista em Direitos Humanos, membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (Ibep), membro do Instituto de Direito Processual de Rondônia (IDPR) e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

  • Brave

    é defensor público no estado de Rondônia, mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí, especialista em Direito Público e em Direito Constitucional e membro do Instituto de Direito Processual de Rondônia (IDPR).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!